Quando o TCU produz regras setoriais, o controlador substitui o regulador
18 de abril de 2018, 6h07
É tarefa das agências reguladoras dos setores de infraestrutura, além da função normativa, estruturar, implementar e fiscalizar as relações contratuais entre o Estado e a iniciativa privada destinadas a viabilizar empreendimentos públicos. A regulação administrativa, portanto, dá-se tanto através da produção de normas como por meio dos editais de licitação e contratos.
O TCU, além de controlar a gestão da infraestrutura quando realizada diretamente, por meio de autarquias comuns e/ou empresas públicas, tem exercido intensa fiscalização também sobre o modelo de intervenção indireta — contratos públicos de parceria regulados por agências.
Tem o TCU, ao fiscalizar os setores de infraestrutura, atuado em conformidade com suas competências legais e constitucionais?
Tomando-se como referência a função constitucional do TCU de exercer o “controle de contas”, causa certa dúvida de conformidade jurídica ver a intensidade do controle exercido pelo tribunal sobre a atividade finalística das agências reguladoras, já que estas operam a intervenção indireta do Estado.
Na doutrina, as posições variam desde quem entende, como Luís Roberto Barroso, que o Tribunal de Contas não poderia interferir na atividade-fim das agências, por não implicar dispêndio direto de recursos, até quem defende, como Benjamin Zymler, ser o TCU o órgão que detém melhores condições para desenvolver uma visão sistêmica do modelo regulatório brasileiro e, portanto, competente para fazer o controle externo da regulação.
Eduardo Jordão defende a moderação do controle, a fim de evitar que as prognoses incertas do administrador sejam substituídas pelas prognoses igualmente incertas do controlador. É uma versão contemporânea do clássico pensamento de Victor Nunes Leal, manifestado em relação aos limites do controle judicial da administração pública, segundo o qual, no estudo do controle do poder discricionário, a doutrina tem de utilizar instrumentos de precisão, para não vestir um santo com a roupa do outro, substituindo o arbítrio administrativo pelo arbítrio judiciário.
No mês de fevereiro, o TCU proferiu duas decisões importantes e impactantes em relação a setores regulados.
No Acórdão 290/2018-Plenário, referendou medida cautelar para determinar à ANTT a mudança de critérios aplicados em reajustes de pedágios, especificamente em virtude do impacto advindo da Lei 13.103/2015 (conhecida como Lei dos Caminhoneiros).
No caso, a ANTT autorizara a revisão tarifária por entender que a lei nova havia aumentado significativamente os limites de tolerância do peso bruto transmitido pelos eixos dos veículos, o que implicaria aumento dos custos de manutenção das rodovias, a ser suportado pelas concessionárias.
Acontece que o TCU apontou haver uma inconsistência nas premissas da agência, que consistiria no fato de a ANTT ter desconsiderado outras normas (do Contran) que já haviam aumentado, em parte, os limites de peso, fazendo com o que o impacto da lei fosse bem menor do que aquele que embasara a revisão. No caso, parece emergir uma faceta muito interessante do controle: a cooperativa. O TCU, em certa medida, auxiliou a agência, colocando na mesa dados e informações que, aparentemente, estavam fora do radar do regulador.
Mas o TCU foi mais adiante e determinou a revisão dos parâmetros utilizados pela ANTT para estimar o aumento dos custos, não aceitando, por exemplo, que fosse utilizada como referência a tabela de custos médios gerenciais do Dnit. Não só determinou que a agência refizesse certos estudos como também impôs a adoção de certos critérios.
Curioso observar que o ministro relator, no final do seu voto, depois de determinar o afastamento de todos os critérios adotados pela agência, agora em substituição ao regulador, ressalta que a função de fazer estudos, efetivar reajustes tarifários, criar novas metodologias de cálculos de reajustes, enfim, regular e supervisionar as atividades referentes à infraestrutura de transportes no Brasil pertence à ANTT.
Em outro caso bem relevante e até inusitado, o tribunal determinou a suspensão dos efeitos, em sede de medida cautelar (Acórdão 308/2018-P), de resolução da Antaq, de 2015, que disciplina requisitos para o afretamento de embarcação estrangeira, sob o fundamento de que o ato da agência teria extrapolado os limites previstos em lei e na Constituição para o exercício de poder normativo, ao exigir mais do que a lei permitiria.
Inusitado, primeiro, por ter o Plenário contrariado integralmente a posição da unidade técnica, que se posicionou de forma contrária à concessão da medida, tanto por não vislumbrar periculum in mora, já que a norma está em vigor desde 2015, como por entender não ter a Antaq agido fora dos limites de sua competência.
Além disso, nem a unidade técnica nem o Plenário expuseram, de forma clara, o fundamento da competência do TCU para determinar a suspensão dos efeitos de uma norma. No acórdão, consta apenas o argumento do ministro Benjamin Zymler no sentido de que a natureza jurídica de serviço público de transporte aquaviário atrai a incidência do Direito Administrativo e a competência do TCU. Mas sob o comando de qual dos incisos do artigo 71 da Constituição, onde estão elencadas as competências da corte de contas, estaria agindo o TCU nesse caso? A resposta a essa pergunta não parece assim tão óbvia.
E mais: o TRF da 1ª Região, analisando exatamente a mesma resolução, entendeu que a agência atuara em conformidade com os limites do poder normativo. Considerando o nosso sistema de jurisdição una, qual decisão vale, afinal? A do Judiciário ou a do TCU?
Não é propósito deste texto discutir o mérito das questões tratadas nos julgamentos referidos. Mas apenas chamar a atenção para o fato de que, nos dois casos, parece ter o TCU substituído os reguladores, seja produzindo ou barrando regulações setoriais específicas.
*Este texto é parte integrante de um relatório sobre os principais julgamentos do TCU no mês de fevereiro, produzido no âmbito da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP).
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!