Direito Comparado

O fosso da Nutella e os limites da produção de alimentos em diferentes países

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

18 de abril de 2018, 8h00

Spacca
Uma questão econômica e política ligada a um alimento muito popular ameaça converter-se em um problema jurídico na União Europeia. Ela atende pela sugestiva expressão alemã Nutellagraben — fosso da Nutella.

O que vem a ser isso? Precisamente, uma polêmica envolvendo uma marca italiana de creme de avelã que leva cacau e leite em sua composição, a famosa Nutella, fabricada desde 1963 pela Ferrero, uma empresa sediada em Alba. A palavra “fosso” alude a uma divisão simbólica, literalmente a um fosso, entre países ricos e pobres no âmbito da União Europeia.

A discórdia nasceu da revolta de consumidores da Hungria, que alegam ser a Nutella vendida nos mercados de Viena, na rica Áustria, mais cremosa do que a encontrada nas gôndolas de Budapeste. A indignação dos húngaros chegou às altas esferas governamentais, a ponto de o primeiro-ministro, Viktor Orban, recentemente reeleito, declarar que esse é um dos maiores escândalos da história recente do país.

Essa rebelião dos consumidores também chegou à República Tcheca, à Eslováquia e à Polônia, embora não se limite à Nutella. Nesses países, todos do antigo espaço político da Cortina de Ferro (zona de influência da União Soviética até o fim da Guerra Fria), as reclamações também se dirigem contra a assimetria de qualidade da Coca-Cola e de waffles “napolitanos” da fábrica austríaca Manner.

A polêmica traz consigo o problema sempre complexo da discriminação entre ricos e pobres, o que não é extraordinário mesmo na Europa. A defesa dos fabricantes, ao menos segundo a imprensa, radica-se em três pontos, embora não necessariamente coerentes entre si.

O primeiro diz respeito à pura e simples negação do problema: os ingredientes seriam os mesmos, e a receita dos produtos é universal. Essa é a resposta da fábrica Manner. O segundo está na necessidade de adaptação do produto ao gosto local, o que implicaria alguma variação no sabor, sem comprometimento da fórmula do produto.

O terceiro é um argumento pouco comentado às claras: a assimetria econômica entre a Europa Ocidental e a Europa Oriental conduz a remunerações mais baixas e, por consequência, os produtos da Europa do leste são mais baratos e de menor qualidade, dado que os fabricantes substituem alguns ingredientes por outros similares, com menor custo, a fim de manter a competitividade de suas operações. Exemplo disso está nos biscoitos “amanteigados” da fabricante alemã Bahlsen. Em alguns países, particularmente do leste, esses biscoitos não levavam manteiga em sua composição, mas óleo de palma, ingrediente vegetal bem mais barato que o derivado do leite.

O caso europeu é particularmente sensível por conta da menor liberdade dos fabricantes de conduzir suas políticas industriais sem considerar os regulamentos da União Europeia. Considerando-se, no entanto, Estados soberanos alheios ao Direito europeu, como seriam Austrália, Brasil e Estados Unidos, a situação torna-se mais complexa. O chocolate, um produto tão ou mais popular quanto a Nutella, tem seus padrões de identidade e qualidade definidos pela Resolução RDC 264, de 22 de setembro de 2006, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa):

“2.1. Chocolate: é o produto obtido a partir da mistura de derivados de cacau (Theobroma cacao L.), massa (ou pasta ou liquor) de cacau, cacau em pó e ou manteiga de cacau, com outros ingredientes, contendo, no mínimo, 25 % (g/100 g) de sólidos totais de cacau. O produto pode apresentar recheio, cobertura, formato e consistência variados”.

Essa definição da agência reguladora é, por sua vez, baseada em um protocolo da Organização Mundial da Saúde, vinculada à Organização das Nações Unidas, a Norma para Chocolate e Produtos de Chocolate, inserida no Codex Alimentarius, item 2.1.4, segundo a qual o “chocolate com leite” deve conter um mínimo de 25% de “extrato seco de cacau”.

Esses padrões variam internacionalmente. O Brasil optou por níveis mínimos, o que, em certa medida, permite aumentar a presença de açúcar e gorduras vegetais no chocolate, com efeitos no sabor e na qualidade do produto. Essa situação levou à apresentação de projetos de lei na Câmara dos Deputados e no Sendo para aumentar os níveis mínimos de cacau no chocolate brasileiro, que são mais baixos do que em outros países do mundo.

Perceba-se que a polêmica do “fosso da Nutella” não se reconduz facilmente a problemas de rotulagem. A discrepância entre o conteúdo e o que está no rótulo é uma questão ordinária e que encontra solução na maior parte dos ordenamentos jurídicos. Igualmente diversa é a situação de um rótulo com déficit informacional aos consumidores, matéria que também já foi objeto de litígios e hoje ocupa espaço nos debates parlamentares. Deve-se também distinguir o “fosso da Nutella” da presença de ingredientes nocivos à saúde, o que não foi posto em causa pelas autoridades da Europa do leste. O núcleo da alegação apresentada pelos dirigentes dos países mais pobres da Europa está na assimetria de tratamento entre consumidores dentro do espaço europeu por idênticos fabricantes de um mesmo produto.

Teresa Ancona Lopez, em artigo publicado na Revista de Direito Civil Contemporâneo, explorou adequadamente o problema da segurança alimentar, conceito que já foi devidamente normatizado pela Lei 11.346/2006 (Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional), em cujo artigo 3º se encontra esta definição: “Entende-se por segurança alimentar e nutricional a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, respeitando, inclusive, a diversidade cultural e os quesitos de sustentabilidade”.

Segundo a autora, os standards mais elevados de segurança alimentar no mundo, influenciados pelo Direito do Consumidor, baseiam-se nas seguintes diretrizes: a) transparência nas relações de consumo; b) boa-fé de fornecedores e consumidores; c) informação expressa e detalhada sobre o alimento; d) rotulagem detalhada do conteúdo; e) rotulagem da origem ou da procedência dos gêneros alimentícios; f) embalagens que correspondam ao conteúdo, pois servem de publicidade e informação ao consumidor; g) uso do princípio da precaução quando a hipótese de risco é capaz de levar a danos graves e irreversíveis para o consumidor de qualquer alimento[1]. Em nenhuma dessas hipóteses enquadra-se o problema do “fosso da Nutella”. Até mesmo no conceito genérico de boa-fé entre os contratantes, seria algo forçado de se supor.

O retorno às condicionantes econômicas de cada país, descartadas a negação pura e simples da assimetria de ingredientes e ainda a adaptação ao “paladar nacional”, termina por ser tautológico. O biscoito, o creme de avelã e o refrigerante levam a mesma marca em cada país, mas variam — embora não de modo considerável — em elementos como textura, sabor e composição. E como essa circunstância não se amolda a um risco à segurança alimentar, dá-se a ação paralisante da anomia, a ponto de as autoridades europeias haverem declarado o interesse em estudar juridicamente o caso.

Abstraindo-se os contornos europeus do “fosso da Nutella”, é muito conveniente um exercício de “tropicalização” da matéria. Apesar das dimensões continentais do país, não há — ao menos em fontes disponíveis digitalmente — notícias de algo semelhante ao “fosso da Nutella” entre regiões ricas e pobres no Brasil. O problema estaria no fosso internacional.

O uso do condicional não é sem causa. Parecem inexistir elementos de prova, especialmente baseadas na empiria, que demonstrem haver algo como Nutellagraben em marcas e produtos alimentícios produzidos no Brasil e no exterior pelos mesmos fabricantes — salvo, é claro, o senso comum.

Feita essa ressalva, a discussão do fosso dos produtos alimentícios nacionais e seus congêneres estrangeiros. No caso do chocolate, os projetos de lei não afetam uma marca, e sim o próprio conceito do que seja chocolate. Aumentar a quantidade de cacau é uma maneira de elevar os padrões de qualidade do que se comercializa e se consume no Brasil sob essa denominação. Discutir, porém, se há um Nutellagraben é algo mais complexo e esbarra nos limites da anomia. As explicações para essa disparidade (repita-se, aparente) podem ser encontradas no campo concorrencial e na própria disparidade de condições do mercado consumidor. O segundo argumento é o que se vem utilizando na Europa, ainda que com enormes ressalvas na Europa do leste.

O primeiro argumento, contudo, talvez seja mais relevante: o brasileiro é extremamente limitado em suas opções de compra. Seriam tais limitações derivadas de deficiências regulatórias no âmbito concorrencial ou tudo não passa de uma mera assimetria de nosso mercado em relação ao de países mais ricos?

A resposta a essas perguntas não as têm os europeus, ao menos até agora. Quem sabe não seja o momento de ao menos começar a discutir esses temas no Brasil?


[1] ANCONA LOPEZ, Teresa. Segurança alimentar: riscos e exigências. Revista de direito civil contemporâneo, v. 11, p. 33-54, abr./jun. 2017.

Autores

  • Brave

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!