Tribuna da Defensoria

A Defensoria e o prazo em dobro nos procedimentos do ECA

Autor

  • Diogo Esteves

    é defensor público do Estado do Rio de Janeiro doutorando e mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

17 de abril de 2018, 10h39

Tendo o objetivo de aprimorar os procedimentos relacionados à destituição do poder familiar e à adoção de crianças e adolescentes, recentemente foi editada a Lei 13.509/2017, que promoveu alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), na Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei 5.452/1943) e no Código Civil (Lei 10.406/2002).

Dentre as modificações efetuadas pela Lei 13.509/2017, passou o artigo 152, § 2º do ECA a determinar que os prazos relativos aos procedimentos regulados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente sejam contados em dias corridos, afastando a regra geral de contagem dos prazos processuais em dias úteis (artigo 219 do CPC/2015). Além disso, o artigo 152, §2º do ECA passou a vedar a contagem duplicada dos prazos processuais para a Fazenda Pública e o Ministério Público, afastando a aplicabilidade dos artigos 180 e 183 do CPC/2015 em relação aos procedimentos estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente. In verbis:

Art. 152. Aos procedimentos regulados nesta Lei aplicam-se subsidiariamente as normas gerais previstas na legislação processual pertinente.
…………………………………………………………….
§ 2º Os prazos estabelecidos nesta Lei e aplicáveis aos seus procedimentos são contados em dias corridos, excluído o dia do começo e incluído o dia do vencimento, vedado o prazo em dobro para a Fazenda Pública e o Ministério Público.

Importante observar que o artigo 152, §2º do ECA (incluído pela Lei 13.509/2017) não faz qualquer menção à Defensoria Pública, vedando a contagem duplicada dos prazos processuais somente em relação à Fazenda Pública e ao Ministério Público.

Contudo, mesmo diante da taciturnidade do dispositivo, parcela da doutrina[1] e da jurisprudência[2] vêm sustentando que a vedação contida no artigo 152, §2º do ECA seria também aplicável à Defensoria Pública, diante da diretiva de celeridade que teria fundamentado a edição da Lei 13.509/2017.

No entanto, não podemos deixar que o absinto da celeridade entorpeça nosso juízo e contamine a hermenêutica jurídica.

Primeiramente, devemos observar que a Lei 13.509/2017 possui origem em dois projetos de iniciativa parlamentar: (i) o PL 5.850/2016, apresentado pelo deputado Augusto Coutinho (SD-PE), que pretendia aprimorar o processo de adoção, alterando os artigos 39, 101, 157, 158, 161, 162 e 163 do ECA; e (ii) o PL 6.924/2017, apresentado pela deputada Carmen Zanotto, que dispunha sobre medidas de proteção, adoção e prazos processuais, pretendendo a alteração dos artigos 12, 13, 19, 23, 28, 32, 39, 42, 46, 47, 50, 51, 52, 52-B, 52-C, 92, 151, 152, 161, 166, 170-A, 197-C do ECA.

Originalmente, o artigo 1º do PL 6.924/2017 previa expressamente a vedação da contagem duplicada dos prazos processuais para a Fazenda Pública, o Ministério Público e a Defensoria Pública:

Art. 152.
…………………………………………………………….
§2º Os prazos estabelecidos nesta Lei e aplicáveis aos seus procedimentos são contados em dias corridos, excluindo-se o dia do começo e incluindo o dia do vencimento, sendo vedado o prazo em dobro para a Fazenda Pública, o Ministério Público e a Defensoria Pública.

Em virtude do requerimento de apensação 5.909/2017, formulado no dia 02/03/2017, o PL 6.924/2017 foi apensado ao PL 5.850/2016, por determinação da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados.

Após a “rica oportunidade de discussão de regras para a adoção e, em consulta com órgãos governamentais, autoridades e especialistas no tema”[3] foi construído coletivamente um Substitutivo (PL 5.850/2016-A), apresentado pelo relator da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania deputado Sóstenes Cavalcante.

Como decorrência do próprio processo deliberativo ocorrido no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça, o Poder Legislativo ponderou pela retirada da Defensoria Pública da regra de vedação imposta pelo artigo 152, §2º do ECA. Como resultado, o Projeto de Lei Substitutivo seguiu para votação contendo a seguinte redação:

Art. 152.
…………………………………………………………….
§2º Os prazos estabelecidos nesta Lei e aplicáveis aos seus procedimentos são contados em dias corridos, excluindo-se o dia do começo e incluindo o dia do vencimento, sendo vedado o prazo em dobro para a Fazenda Pública e o Ministério Público.

Posteriormente, a redação constante do Projeto Substitutivo restou aprovada pelo Congresso Nacional e seguiu para sanção presidencial, sendo aprovada atual regra do artigo 152, §2º do ECA.

Pela análise do processo legislativo de elaboração da Lei 13.509/2017 resta evidenciada a intenção do legislador de excluir a Defensoria Pública da regra de vedação imposta pelo artigo 152, §2º do ECA. Não subsiste na hipótese omissão ou esquecimento legislativo; na verdade, há silêncio eloquente do legislador, que deliberou por não vedar a contagem duplicada dos prazos processuais em relação à Defensoria Pública.

Por essa razão, não pode o intérprete contrariar a vontade do próprio Poder Legislativo e conferir ao dispositivo interpretação extensiva diversa daquela pretendida no momento da elaboração da norma.

A prerrogativa da contagem duplicada dos prazos processuais se encontra fundamentalmente apoiada em três pilares existenciais básicos: (i) o grande volume de trabalho da Defensoria Pública; (ii) a histórica deficiência estrutural do serviço jurídico-assistencial público; e (iii) o princípio da indeclinabilidade das causas[4]. Justamente por conta dessas peculiaridades do salaried staff model brasileiro, o Poder Legislativo entendeu que a retirada da prerrogativa de prazo em dobro em relação à Defensoria Pública nos procedimentos do ECA poderia prejudicar ou inviabilizar o trabalho desenvolvido pela Instituição na combativa defesa dos direitos das crianças e adolescentes.

Importante observar, outrossim, que essa não é a única hipótese em que o legislador estabeleceu espécie de contagem diferenciada dos prazos processuais para a Defensoria Pública. No âmbito processual penal também a DP possui direito à contagem duplicada, enquanto o Ministério Público possui apenas direito ao prazo simples. Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a desproporcionalidade estrutural existente entre a Defensoria Pública e o Ministério Público justificaria a diferenciação[5]. Como ressaltado pelo ministro Carlos Veloso: “há desigualdade entre o pobre, o miserável, o necessitado, em sentido legal, que é defendido por Defensor Público que integra uma Defensoria desaparelhada, existente apenas no papel, porque ainda não estruturada, ainda não implantada em termos reais, que não dispõe de máquina de escrever, de papel e em que o Defensor, pessimamente remunerado, tem que buscar noutras fontes a sua subsistência, e uma acusação organizada, um Ministério Público com integrantes recrutados mediante concurso público de provas e títulos, com uma Procuradoria-Geral de Justiça muito bem organizada, com servidores competentes, material de escritório, computadores etc.” [6].

Exatamente por conta da diferença estrutural, entendeu o Supremo Tribunal Federal que seria razoável reconhecer a prerrogativa da contagem em dobro dos prazos processuais à defesa desaparelhada, como forma de permitir a adequada atuação em face da organizada e estruturada acusação. O mesmo raciocínio foi aplicado pelo legislador durante o processo deliberativo da Lei 13.509/2017, sendo excepcionada a contagem duplicada dos prazos em relação à Fazenda Pública e ao Ministério Público, e mantida a prerrogativa em relação à Defensoria Pública.

Por fim, mesmo que o legislador tivesse adotado caminho diverso e tivesse optado por afastar expressamente a aplicabilidade do prazo em dobro também em relação à Defensoria Pública (fato que, repita-se, não ocorreu), não poderia lei ordinária excepcionar prerrogativa estabelecida por lei complementar.

No caso do Ministério Público e da Fazenda Pública, a contagem duplicada dos prazos está prevista apenas em lei ordinária (artigos 180 e 183 do CPC/2015), e não como prerrogativa de agentes públicos em lei orgânica nacional específica[7]. Portanto, a exceção ao prazo em dobro prevista no artigo 152, §2º do ECA se afigura perfeitamente válida; afinal, temos uma lei ordinária (Lei 13.509/2017) excepcionando outra lei ordinária (Lei 13.105/2015 – NCPC).

Em relação à Defensoria Pública, por outro lado, a contagem duplicada dos prazos possui previsão específica na Lei Complementar 80/1994. Sendo assim, por incidência do critério hierárquico, não poderia o artigo 152, § 2º da Lei 11.105/2015 prevalecer sobre os artigos 44, I, 89, I e 128, I, da LC 80/1994[8].

Em síntese conclusiva, portanto, a regra de vedação prevista no artigo 152, §2º do ECA não deve ser extensivamente aplicada em relação à Defensoria Pública, que conserva o direito à contagem duplicada dos prazos processuais nos procedimentos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, nos termos dos artigos 44, I, 89, I e 128, I da LC 80/1994[9].


[1] “A Defensoria Pública goza de prazo em dobro nos procedimentos do ECA, por força da previsão do art. 128, I, da LC 80/94? A questão é altamente polêmica, mas penso que não. Mesmo se sabendo das deficiências estruturais do órgão, não há motivo razoável para se admitir prazo em dobro para a Defensoria Pública e se negar a mesma prerrogativa ao MP e à Fazenda Pública. O tratamento legal e jurisprudencial para Defensoria e MP tem preconizado justamente a paridade de armas, ou seja, a isonomia entre as Instituições, não havendo sentido em se excepcionar a situação no caso do ECA. Parece-me claro que o objetivo do legislador foi o de imprimir celeridade aos procedimentos do ECA, sendo isso incompatível com prazo em dobro para qualquer Instituição, por mais relevante que seja seu trabalho. Vale ressaltar que a jurisprudência entende que, mesmo sem previsão expressa, é possível afastar o prazo em dobro para a Defensoria Pública em alguns procedimentos norteados pela celeridade. É o caso, por exemplo, dos Juizados Especiais, onde prevalece o entendimento de que não se aplica o prazo em dobro para a Defensoria Pública mesmo sem que haja dispositivo vedando textualmente. Esse mesmo raciocínio poderá ser aplicado para os procedimentos do ECA.” (CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à Lei 13.509/2017. Dizer o Direito. Disponível em: <http://www.dizerodireito.com.br/2017/11/comentarios-lei-135092017-que-facilita.html>. Acesso em: 10-03-2018)

[2] TJ/MG – 8ª Câmara Cível – Apelação 0908401-63.2014.8.13.0024 – Relator Des. Teresa Cristina da Cunha Peixoto.

[3] CAVALCANTE, Sóstenes. Relatório da Comissão de Constituição e Justiça e da Cidadania, 2017, pág. 03.

[4] ESTEVES, Diogo. SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios Institucionais da Defensoria Pública, 2ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 660/663.

[5] “Direito Constitucional e Processual Penal. Defensores Públicos: prazo em dobro para interposição de recursos (§ 5º do artigo 5º da Lei 1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei 7.871, de 08.11.1989). Constitucionalidade. Habeas Corpus. Nulidades. Intimação pessoal dos Defensores Públicos e prazo em dobro para interposição de recursos. 1. Não é de ser reconhecida a inconstitucionalidade do § 5º do artigo 5º da Lei 1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei 7.871, de 08.11.1989, no ponto em que confere prazo em dobro, para recurso, às Defensorias Públicas, ao menos até que sua organização, nos Estados, alcance o nível de organização do respectivo Ministério Público, que é a parte adversa, como órgão de acusação, no processo da ação penal pública. 2. Deve ser anulado, pelo Supremo Tribunal Federal, acórdão de Tribunal que não conhece de apelação interposta por Defensor Público, por considerá-la intempestiva, sem levar em conta o prazo em dobro para recurso, de que trata o § 5º do artigo 5º da Lei 1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei 7.871, de 08.11.1989. 3. A anulação também se justifica, se, apesar do disposto no mesmo parágrafo, o julgamento do recurso se realiza, sem intimação pessoal do Defensor Público e resulta desfavorável ao réu, seja, quanto a sua própria apelação, seja quanto à interposta pelo Ministério Público. Habeas Corpus deferido para tais fins, devendo o novo julgamento se realizar com prévia intimação pessoal do Defensor Público, afastada a questão da tempestividade da apelação do réu, interposto dentro do prazo em dobro.” (STF – Pleno – HC 70514/RS – Relator Min. SYDNEY SANCHES, decisão: 22-03-1994)

[6] Voto proferido pelo Min. CARLOS VELLOSO / STF – Pleno – HC 70514/RS – Relator Min. SYDNEY SANCHES, decisão: 22-03-1994.

[7] A Lei 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) e a Lei Complementar 73/1993 (Lei Orgânica da Advocacia Geral da União) não preveem qualquer espécie de contagem diferenciada dos prazos para os membros do Ministério Público e da Advocacia Geral da União.

[8] “É de se sustentar, portanto, que a lei complementar é um tertium genus interposto, na hierarquia dos atos normativos, entre a lei ordinária (e os atos que têm a mesma força que esta – a lei delegada e o decreto-lei) e a Constituição (e suas emendas). Não é só, porém, o argumento de autoridade que apoia essa tese; a própria lógica o faz. A lei complementar só pode ser aprovada por maioria qualificada, a maioria absoluta, para que não seja, nunca, o fruto da vontade de uma minoria ocasionalmente em condições de fazer prevalecer sua voz. Essa maioria é assim um sinal certo da maior ponderação que o constituinte quis ver associada ao seu estabelecimento. Paralelamente, deve-se convir, não quis o constituinte deixar ao sabor de uma decisão ocasional a desconstituição daquilo para cujo estabelecimento exigiu ponderação especial.” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo, São Paulo: Saraiva, 1995, p. 236/237). Em sentido semelhante: ATALIBA, Geraldo. República e Constituição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985 / BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 2014 / MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 2014 / SAMPAIO, Nelson de Souza. O processo legislativo, Belo Horizonte: Del Rey, 1996.

[9] Nesse sentido: “Uma das novidades do CPC-2015 foi o estabelecimento de contagem de prazo em dias úteis e contagem em dobro de prazos para a Fazenda Pública (o MP já dispunha dessa prerrogativa). A Lei 13.509/2017 inseriu o §2º ao artigo 152 para se afastar dessa sistemática. Nos procedimentos previstos no Estatuto, a contagem de prazo se faz em dias corridos e sem contagem de prazo em dobro para Ministério Público e Fazenda Pública. Curioso observar que a regra não faz menção à Defensoria Pública. A lógica é a mesma, dar prioridade e agilidade na tramitação desses processos. Por esse raciocínio, seria possível concluir que a Defensoria Pública tampouco teria direito à contagem em dobro de prazos. No entanto, a questão é mais complexa, pois não é possível aplicar por analogia a regra à Defensoria Pública, já que estamos diante de uma prerrogativa institucional. Não se pode admitir interpretação extensiva que reduza prerrogativas da carreira. Assim, ainda que de forma assistemática, consideramos que a prerrogativa de prazo em dobro para a Defensoria Pública está intacta.” (BARROS, Guilherme Freire de Melo. Direito da Criança e do Adolescente, 7ª edição, Salvador: JusPodivm, 2018, p. 290)

Autores

  • é defensor público do estado do Rio de Janeiro, mestre em Sociologia e Direito pela UFF. Professor da Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro - FESUDEPERJ e de cursos preparatórios para a carreira da Defensoria Pública. Membro da Banca do XXV Concurso para Ingresso na Carreira de Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro.

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