Contas à Vista

Quem controla o controlador? Considerações sobre as alterações na Lindb

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

17 de abril de 2018, 8h00

Spacca
Surgiu no horizonte normativo um bom debate acadêmico envolvendo o Direito Financeiro, que, espera-se, não se transforme em uma partida de futebol com torcidas apaixonadas de cada lado, o que impede o debate racional sobre o que está em jogo. Trata-se do Projeto de Lei 7.448/2017, que insere 11 artigos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb).

É bem verdade que o fato de ter sido apresentado pelo PSDB de Minas Gerais já cria uma prevenção em grande parte dos envolvidos, partidarizando o debate. Ouvi de eminentes colegas algo como: “Deve ter alguma coisa por detrás; jamais cumpriram os gastos mínimos com saúde e educação em MG”. Porém, como regra, os projetos de lei têm que ser apresentados por um parlamentar, que será filiado a um partido político. Logo, se esse PL tivesse sido apresentado pelo PT, DEM, MDB ou qualquer outra sigla, as reações poderiam ser as mesmas, apenas com os sinais trocados.

O importante é analisarmos o que está sendo discutido, a despeito de ter sido apresentado pelo PSDB de MG, e isso ser indelével.

Sob certo aspecto o debate se insere na velhíssima questão sobre quem controla o controlador. Montesquieu, em sua obra O Espírito das Leis, de 1748, afirmava que o ideal de funcionamento do Estado é que “o poder freie o poder”, pois “a experiência eterna mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites”. Esse é um debate importantíssimo para a democracia e, mais ainda, para o efetivo exercício republicano de controle do poder. Nesse sentido, o texto proposto apresenta instrumentos para controlar as decisões das “esferas administrativa, controladora e judicial”, conforme se vê em várias partes do referido PL — e isso é muito positivo. Claro que a redação do texto poderia ser outra, mais precisa em seus termos, porém é o que existe após a fase legislativa (e pode ser consultado aqui), pois aguarda a sanção ou veto presidencial.

Nas sociedades atuais, quem controla o poder não é apenas outro poder, mas o Direito, tendo por base a Constituição. Se houvesse uma verdadeira cultura constitucional em nosso país, a alteração proposta por esse PL seria desnecessária, pois redundante. O que se propõe é alterar a Lindb, que é o mesmo e velho Decreto-lei 4.657/42, antigamente conhecido como Lei de Introdução ao Código Civil, que apenas mudou de nome pela Lei 12.376/10.

Registra-se desde já certo mal-estar civilizacional na leitura do texto, pois, subjacente a ele, identifica-se um país conflagrado, onde não mais se respeita a autoridade administrativa, e no qual todos são culpados até prova em contrário.

As normas propostas, a meu ver, apontam fórmulas para dar mais segurança jurídica à sociedade, no meio de toda essa conflagração. Em um país onde fossem respeitadas as leis e os atos administrativos, esse PL seria desnecessário. Mas o Direito é um produto cultural, e labora sobre a realidade existente, o que torna o PL não só relevante, mas também necessário. Mesmo o debate jurídico que se vê ao longo dos últimos dias sobre esse PL é visceral, quase como uma tomada de posição teológica, entre os bons e os maus. Não pode ser assim. Tal procedimento só aumentará o fluxo de cérebros e de capitais brasileiros rumo ao exterior — o que representa nosso futuro enquanto país. É necessário retornamos à normalidade jurídica, completamente nocauteada nos últimos anos, mantendo o combate às irregularidades encontradas, na forma da lei, sem messianismo.

Vamos à análise dos 11 artigos propostos pelo PL, nos estreitos limites desta coluna mensal.

A proposta de artigo 20 determina que “nas esferas administrativa, judiciais e de controladoria” não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos, sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. A despeito de conter um forte viés consequencialista, o que é negativo, não se vê no texto nada que obrigue o administrador a pautar sua decisão dessa forma, havendo apenas o dever de motivação da decisão, que é uma decorrência do Estado de Direito. Fórmulas genéricas, como a de que “decido com base no interesse público” devem ser justificadas e devidamente motivadas para que seja possível à sociedade avaliar as efetivas razões daquele ato.

Na atividade advocatícia tributária já tive a oportunidade de ver auto de infração fundamentado no Manifesto Comunista de Marx e Engels — é a mais pura verdade, embora pareça Kafka na veia. Seguramente, havia clara motivação, que não logrou êxito. O artigo 20, caso estivesse em vigor, teria sido plenamente cumprido nessa hipótese.

O texto do artigo 20 não contém nenhuma obrigação de decidir de forma consequencialista, o que equivaleria ao despautério tributário acima relatado. O que ele introduz é uma obrigação de motivar e justificar o ato administrativo praticado, na linha do artigo 93, IX da CF[1] e o artigo 11 do CPC[2], ambos dirigidos ao Poder Judiciário, que apontam para a necessária fundamentação que todos os julgamentos devem ter.

A proposta de artigo 21 segue a mesma linha de exigir que haja a efetiva motivação da decisão efetuada, indicando de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas. Isso é feito corriqueiramente, sendo excepcional seu descumprimento. Como regra, qualquer decisão indica as consequências do ato, tais como sua invalidação ou as penas aplicáveis. O que o PL busca é que isso ocorra em toda decisão que “decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa”, o que potencializará o trabalho envolvido. O parágrafo único desse artigo é, em grande parte, esvaziado pela expressão “quando for o caso” nele contida, o que, na prática, acabará por torná-lo letra morta.

O caput do artigo 22 do PL trata de hermenêutica aplicada ao Direito Público, determinando que o administrador leve em consideração, em sua decisão, “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo”, devendo ser consideradas ainda “as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente”. A despeito de se identificar o mesmo perfil consequencialista criticado na análise do artigo anterior, não há nada que obrigue o gestor a perseguir os resultados acima do Direito — o que caracteriza a análise consequencialista. O que se lê no texto é a busca da impregnação do ato administrativo por dados fáticos, que devem ser expostos na motivação, a qual deve ser clara e pública, não sendo suficiente declarar que se decide com base no “interesse público” — é necessário motivar, à luz dos fatos evidenciados.

Como acima referido, trata-se de um texto que, em tempos normais, seria considerado inócuo e despiciendo, mas nos dias que correm é travada uma batalha acerca de sua vigência, embora, seguramente, pudesse ser mais preciso nos termos de sua redação.

Os parágrafos do artigo 22 tratam de dosimetria das penas, algo como critérios atenuantes e agravantes para serem levados em consideração nas decisões proferidas.

A proposta de artigo 23 está embasada no princípio da segurança jurídica, o que é cediço no âmbito constitucional. Porém inova ao determinar que haja obrigatoriamente um regime de transição para serem adotadas as novas regras, o que é positivo em várias situações concretas. Não sendo estabelecida tal transição, e ela sendo necessária, é criado um direito de negociação entre o administrado e a autoridade administrativa, que, ao fim e ao cabo, pode resultar em nada além do direito de negociar — não de se obter um regime de transição. Esse aspecto da norma proposta tem por base o direito de petição, ou seja, requer-se o que bem entender, e o administrador deferirá ou não, com base no direito posto.

O PL, inclusive, detalha de forma mais minudente no artigo 26 como podem ocorrer tais termos de compromisso, os quais podem até mesmo envolver o Poder Judiciário “para o fim de excluir a responsabilidade pessoal do agente público por vício do compromisso”. Em diversas áreas de interligação entre o poder público e os particulares identifica-se um verdadeiro pavor decisório por parte de autoridades administrativas. Ouvi relatos de servidores públicos sendo ameaçados caso autorizassem o licenciamento ambiental de determinado empreendimento. Para essas situações, a norma proposta é benéfica, pois amparará o servidor público incumbido de realizar o ato administrativo, salvaguardando-o desse tipo de ameaças, salvo se identificado enriquecimento ilícito ou crime.

Nesse mesmo sentido é alvissareiro o artigo 28 proposto pelo PL. Nos termos do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição[3], estabelece que a responsabilidade será pessoal do servidor público em casos de dolo ou erro grosseiro, não sendo como tal considerado aquele em que a decisão ou a opinião for baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, em orientação geral ou, ainda, em interpretação razoável, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita por órgãos de controle ou judiciais. Ou seja, não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa — o Direito proíbe isso, e meu colega de ConJur Lenio Streck martela isso todos os dias acerca das decisões judiciais —, não há razão para ser diferente nas decisões administrativas.

Logo, se a decisão for fundamentada, mesmo que em decisões jurisprudenciais não pacificadas, e com base doutrinária, não haverá erro grosseiro. Se esse servidor precisar se defender em juízo, as despesas com sua defesa serão pagas pelo erário. Se for comprovado judicialmente o dolo ou o erro grosseiro, o servidor indenizará os gastos públicos efetuados; caso contrário, nada ressarcirá. Isso está na Constituição (repito: artigo 37, parágrafo 6º). O texto não diferencia o servidor-bagrinho do servidor-tubarão — todos terão direito ao custeio de sua defesa. Isso alcança desde o motorista servidor público, que dirige um carro público e se envolve em uma batida de trânsito, até o presidente da República. O texto poderia ter excluído aqueles que exercem certas funções, mas não o fez. De lege ferenda, outras alternativas poderiam ser apresentadas, mas não constam do texto.

A proposta de artigo 24 lembrou-me um velho e querido mestre que já se foi, Limongi França. Trata-se de uma questão de direito intertemporal, pois obriga que na análise do caso concreto sejam levadas em consideração as orientações gerais da época em que ele ocorreu e se consolidou. Parece-me uma proposta óbvia, que em várias áreas do Direito são consideradas bastante assentes, fruto do brocardo jurídico tempus regit actum (o tempo rege o ato). Nenhuma novidade.

O texto do artigo 25 é mais complexo[4], pois envolve Direito Processual e eficácia da sentença. Pelo que se depreende da redação, é uma ação declaratória que o ente público poderá propor para obter a declaração de “validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa“. Só em países com baixa estima por seus administradores se poderia pensar em algo semelhante, uma vez que inverte toda a lógica de validade do ato administrativo. A inspiração local, tudo indica, advém da ação declaratória de constitucionalidade, monstrengo introduzido na Constituição pela Emenda Constitucional 3/93, prevendo, inclusive, os mesmos efeitos sentenciais. Outra inspiração parece ser a ação civil pública. Trata-se de uma opção jurídico-política a adoção dessa alternativa, concedendo ao ente público o direito de defender suas decisões. Na prática, várias delas já desembocam no Poder Judiciário, levadas pelas partes privadas envolvidas.

O artigo 29 trata da possibilidade de ser feita consulta pública em caso de edição de certos atos normativos, o que, como mencionado, é uma faculdade bem-vinda, e não uma obrigação. Labora na linha do que determina o Decreto 8.243/14, que instituiu a Política e o Sistema Nacional de Participação Social.

Por fim, a proposta de artigo 30 é muito mais um repto, uma conclamação, do que uma verdadeira norma com efeitos cogentes. Determina que as autoridades públicas devam atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas — o que é de todo benfazejo.

Enfim, em brevíssimas palavras em razão da limitação do espaço, e correndo o risco de desagradar a todos os lados envolvidos, listei aspectos positivos e negativos do PL, que deve ser analisado com prudência, e não como uma final de campeonato de futebol, ou como se o mundo fosse acabar a partir de sua aprovação. Estou seguro que o texto poderia ser melhorado, mas é o que resultou do Congresso Nacional e aguarda sanção ou veto.

O tema sobre quem controla o controlador ainda merece muita atenção no Direito brasileiro.


[1] CF 88, artigo 93: IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.
[2] Novo CPC: Artigo 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.
[3] CF, Artigo 37, § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
[4] Artigo 25. Quando necessário por razões de segurança jurídica de interesse geral, o ente poderá propor ação declaratória de validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, cuja sentença fará coisa julgada com eficácia erga omnes. §1º A ação de que trata o caput será processada conforme o rito aplicável à ação civil pública. §2º O Ministério Público será citado para a ação, podendo abster-se, contestar ou aderir ao pedido. §3º A declaração de validade poderá abranger a adequação e a economicidade dos preços ou valores previstos no ato, contrato ou ajuste.

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    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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