Opinião

Alguns aspectos sobre o novo regulamento de licitações e contratos da Petrobras

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17 de abril de 2018, 16h16

Cerca de 18 anos. Foi esse o (impressionante) lapso temporal que mediou a edição da Emenda Constitucional 19, de 4 de junho de 1998, a qual deu nova redação ao parágrafo 1º do artigo 173 da Constituição da República, e a edição da Lei 13.303, de 30 de junho de 2016, conhecida como o estatuto jurídico das empresas estatais no Brasil. Desde 1998, portanto, embora a Constituição aludisse à superveniência de lei que disporia, dentre outros temas, sobre “licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública” (conferir artigo 173, parágrafo 1º, inciso III), no âmbito das empresas estatais, essa matéria só veio a contar com balizas legislativas recentemente.

De um lado, a omissão do legislador por tanto tempo não chegou a implicar que, nesse ínterim, as empresas estatais exploradoras de atividade econômica se mantivessem aprisionadas às exigências mais rigorosas da Lei 8.666/1993. Do ponto de vista normativo, isso seria incompatível com a previsão do artigo 173, parágrafo 1º, inciso II, da CRFB/88, que sujeita tais entidades ao regime jurídico das empresas privadas. Também do ponto de vista operacional, isso seria inviável, diante da necessidade de um arranjo diferenciado para as compras e contratações das estatais. Faz-se necessário um modelo que compatibilize a dimensão pública dessas empresas com a agilidade e a dinâmica próprias da iniciativa privada, seara na qual, inclusive, elas precisam competir.

Mas a omissão do legislador foi extremamente deletéria. Implicou enorme insegurança jurídica e um sem-número de custos associados a esse estado irresponsável de indefinição. De certa forma, a doutrina e a jurisprudência buscaram preencher a lacuna legislativa por intermédio de uma clivagem aparentemente simples, mas pouco operacional, pautada na separação entre os conceitos de atividade-fim e atividade-meio. Segundo se passou a ensinar e repetir nas salas de aula e nos tribunais, tais empresas estariam liberadas do dever de licitar quanto às atividades diretamente relacionadas a seu objeto social, sem prejuízo da observância dos princípios gerais aplicáveis à administração pública. Já no tocante a atividades-meio, como serviços de limpeza, almoxarifado e segurança, incidiria a exigência de licitação.

Apesar do esforço hermenêutico, jamais se logrou definir um horizonte minimamente seguro e claro para a diferenciação dos tipos de atividades desempenhados pelas estatais. Mais do que isso: dizer que certa contratação se sujeita, previamente, à exigência ou não de licitação é dizer pouco demais. Ainda que se sujeite, o procedimento pode e deve ser atenuado diante do regime privado a que submetidas as entidades. E, ainda que não se sujeite, a contratação permanece adstrita à observância dos princípios reitores da administração pública, fixados no caput do artigo 37 da Constituição.

É verdade que, em paralelo às construções doutrinárias e jurisprudenciais, algumas entidades passaram a atuar de acordo com regulamentos próprios, como o Decreto 2.745/98, que, em atenção ao disposto no artigo 67 da Lei 9.478/1997 (hoje revogado), veiculou o Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras). Buscou-se disciplinar em maior grau de detalhe a atividade da estatal. Mesmo a edição de um regulamento, contudo, não foi suficiente para solucionar a questão da constante insegurança jurídica que rodeava o regime de contratações da companhia. Tanto assim que a norma chegou a ser questionada pelo Tribunal de Contas da União. Em 2015, o TCU, ao analisar um conjunto de obras contratadas pela Petrobras, verificou diversas fragilidades do regulamento vigente à época. A corte ressaltou, por exemplo, a inexistência de uma regra geral sobre o modo de discriminação dos preços apresentados pelos licitantes. Ato contínuo, determinou que a Petrobras exigisse maiores detalhes sobre os preços ofertados, bem como implementasse diversas outras alterações em seus procedimentos licitatórios, a fim de privilegiar os princípios da segurança jurídica, do julgamento objetivo, da isonomia, da eficiência e da obtenção da melhor proposta1.

Diante desse cenário, pode-se afirmar que a promulgação da Lei 13.303/2016 — a Lei das Estatais —, embora tardia, merece ser celebrada. Ela traz a esperança de maior segurança jurídica e racionalidade na atuação das estatais exploradoras de atividades econômicas. Inclusive, dentre as várias disposições trazidas pelo diploma, previu-se a obrigação de as empresas públicas e as sociedades de economia mista publicarem regulamentos internos de licitações e contratos compatíveis com o disposto em seus artigos. Justamente nesse sentido, foi publicado no Diário Oficial da União do dia 15 de janeiro de 2018 o novo Regulamento de Licitação e Contratos da Petrobras (RLCP), que trouxe importantes alterações quanto aos procedimentos de contratação da estatal. O presente artigo busca destacar três delas.

Em primeiro lugar, quanto ao compliance. Uma inovação de especial relevância é a previsão expressa de mecanismos de conformidade, a partir do artigo 3º do RLCP. Na realidade, o Programa Petrobras de Prevenção à Corrupção (PPPC) é aplicado pela Petrobras desde 2015, mas a petrolífera inovou ao formalizar procedimentos anticorrupção no seu próprio regulamento interno. O programa prevê mecanismos de prevenção, detecção e correção de atos ímprobos, não condizentes com as diretrizes da companhia. Dentre eles, destaca-se o chamado due diligence de integridade (DDI) de seus potenciais contratados.

O DDI tem início com a coleta de informações relacionadas à idoneidade da empresa e dos integrantes de seu quadro societário, obtidas por meio de declarações da contraparte e/ou de outras fontes confiáveis. A partir delas, é atribuído grau de risco de integridade baixo, médio ou alto às partes interessadas em contratar com a Petrobras. E, caso avaliada no grau de risco alto, a empresa será, via de regra, impedida de contratar com a companhia. Ou seja, fez-se da conformidade um requisito adicional a ser observado por quem almeje contratar com a Petrobras. Não está claro, de toda forma — até porque o ponto não foi tratado na Lei 13.303/2016 —, como essa impossibilidade de contratação ex ante será posta em prática pela entidade.

Em segundo lugar, quanto à publicidade. Outro ponto de destaque no RLCP é a maior preocupação do regulamento com a transparência, consubstanciada na determinação de publicização dos instrumentos convocatórios. O artigo 65 do RLCP é expresso ao estabelecer que todos os editais devem ser devidamente publicados tanto no Diário Oficial da União quanto em portal eletrônico. Com isso, supera-se qualquer possibilidade de sigilo em certames, na linha do que previa a extinta modalidade de licitação carta-convite2.

Realmente, segundo tal modalidade, cabia à Petrobras escolher previamente no mínimo três concorrentes, o que, em alguns casos, gerava questionamentos acerca de uma significativa redução da competitividade. Já de acordo com a normativa atual, caso a estatal opte por fazer processo licitatório restrito aos pré-qualificados3, deverá publicar um aviso prévio informando sua decisão e concedendo um prazo para que os interessados tenham a oportunidade de se pré-qualificar. Sem dúvida, o novo procedimento prestigia a publicidade e a transparência nas contratações com as partes interessadas.

Em terceiro lugar, quanto à consensualidade. Realmente, merecem destaque as novas atribuições conferidas à comissão de negociação da empresa. Durante a vigência do regulamento anterior, era facultativa a negociação das alterações por uma comissão de negociação, sujeita ao juízo de conveniência da companhia (item 5.2.1.1). Agora, conforme previsto nos artigos 123 e 147 do RLCP, nas hipóteses previstas em procedimento interno, uma comissão de negociação deverá, necessariamente, conduzir as contratações diretas celebradas pela Petrobras, bem como eventuais modificações contratuais. As novas disposições, portanto, reconhecem a importância de um órgão interno com expertise para lidar com a atividade negocial da companhia de forma isenta e capacitada. São medidas que, a toda evidência, alinham-se ao dever de eficiência esperado na atuação da administração pública em geral — inclusive, e especialmente, de suas estatais.

Há razões para acreditar que o novo RLCP implicará importantes mudanças na política de licitações e contratações da Petrobras. Trata-se de um ato normativo abarcante, editado à luz de diploma que é sem dúvida um divisor de águas no ordenamento jurídico brasileiro — isto é, a Lei das Estatais —, e que se revela sensível a preocupações atuais, como questões de integridade, transparência e consensualidade. A propósito, a previsão de que sua vigência será gradativa nas diferentes regiões do país4 é indício dos impactos que o RLCP provocará. Não se ignora que, apenas com a sua aplicação prática, será possível identificar quais os efeitos gerados pelas novas regras e se elas, de fato, são adequadas para conduzir a um cenário de maior segurança jurídica e eficiência. Mas romper com práticas que se revelaram nocivas e buscar arranjos institucionais com melahores incentivos é sempre positivo.


1 Acórdão 621/2015-TCU-Plenário e Acórdão 1.441/2015-TCU-Plenário.
2 A propósito, a modalidade carta-convite foi objeto de diversos questionamentos no Tribunal de Contas da União, especialmente no âmbito de violações ao princípio da impessoalidade no certame licitatório. Confira-se, a título de exemplo, o seguinte trecho do Acórdão 414/2018: “No que se refere à alegação de que as empresas convidadas eram selecionadas por meio de sistema que as qualificava, não se questionou a qualificação das empresas, mas o direcionamento da lista de empresas selecionadas, de forma a convidar somente empresas do grupo cartelizado, ou simpatizantes, favorecendo a perpetração do ilícito. Tudo isso é demonstrado no tópico 'III' desta Instrução, mediante diversas delações e depoimentos, além de excerto de planilha referente à distribuição das obras da Petrobras entres essas empresas” (TCU Acórdão 414/2018 – Plenário; relator Benjamin Zymler; j. em 7/3/2018).
3 Nesse caso, trata-se da pré-qualificação subjetiva, que consiste na qualificação prévia de fornecedores interessados em contratar com a Petrobras antes mesmo da abertura do certame licitatório. Além disso, o novo RLCP também prevê espécie de pré-qualificação objetiva, em que o produto será pré-qualificado para futuras licitações.
4 O novo regulamento produzirá efeitos de modo progressivo por Unidades Organizacionais na forma do seguinte cronograma: a partir de 5 de fevereiro, o RLCP será aplicado nas Unidades do Espírito Santo, a partir de 2 de abril nas Unidades do Rio de Janeiro, e a partir de 15 de maio nas demais unidades. Fonte: http://www.petrobras.com.br/fatos-e-dados/nova-legislacao-trara-mudancas-aos-nossos-processos-de-contratacao.htm. Acessado em 19/3/2018.

 

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