Opinião

Garantias fundamentais não podem ser violadas para satisfazer desejo do juiz

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17 de abril de 2018, 6h31

A redemocratização do Brasil, após mais de duas décadas de regime militar, e a superação do positivismo jurídico tiveram papel decisivo na estruturação de um Direito Constitucional para além da compreensão de uma Constituição meramente política e vinculada aos interesses legislativos e administrativos. A Constituição, além de exigir uma efetiva compatibilidade das leis, estabelece limites ao legislador, ao administrador e também ao intérprete da lei, impondo-lhes deveres e limites inexoráveis de atuação.

O marco do pós-positivismo reintroduziu as ideias (e os ideais) de justiça e legitimidade nos diversos níveis do poder estatal. Isso significa dizer que o Direito, dantes compreendido como uma ciência “pura” e isolada de outros conhecimentos, passa a comungar com a realidade histórico-social, propiciando um sentimento constitucional. Mais que isso, passa a proporcionar instrumentos que possibilitam as mudanças reivindicadas pela sociedade e de direitos expressamente garantidos no texto constitucional. Quer dizer, no Estado Constitucional de Direito, a lei passa a ser um instrumento de realização do Estado, oportunizando mecanismos de promoção/concretização das reivindicações sociais perante a inércia do Executivo e/ou do Legislativo, como, por exemplo, o mandado de injunção, o mandado de segurança coletivo e a ação civil pública, para citar alguns.

Como resposta a essas transformações, o foco de toda a atenção se volta ao Judiciário e isso se dá, aponta Streck (2014, p. 138), em função da perda da “liberdade da conformação do legislador em favor do controle contramajoritário feito pela jurisdição constitucional”, ou seja, há uma nítida diminuição do “poder” da vontade geral (Legislativo) e um aumento do espaço da jurisdição, e o principal motivo dessa diminuição de poder recai sobre a inércia do Legislativo e do Executivo diante das garantias constitucionais que por eles são negligenciadas, permitindo que o Judiciário assuma uma postura mais ativa, com o propósito de concretizar os reclames da sociedade.

Diante dessa autonomização do Direito, do fortalecimento da atividade jurisdicional e a consequente diminuição da influência dos demais poderes, bem como diante da incompletude da lei, que por vezes não consegue abranger todas as situações possíveis, evidencia-se, como defende Streck (2010), a necessidade de se encontrar mecanismos de controle do epicentro da tensão entre jurisdição e legislação: as decisões judiciais. Isto é, com essa autonomização do Direito, adquirida no Estado Constitucional, juízes e tribunais (e, mais do que nunca, os tribunais constitucionais) têm encontrado dificuldade em impedir que as suas decisões sejam solapadas pela discricionariedade/arbitrariedade.

Partindo dessa reflexão, pergunta-se: como será possível lidar com a dicotomia “autonomia” versus “discricionariedade” que hoje paira sobre o Direito, muitas vezes chancelado pelos intérpretes da lei? E é justamente no processo penal, locus em que se deveria materializar o respeito aos direitos fundamentais, que, ilogicamente, se tem encontrado a expressão máxima dessa discricionariedade. Não raro, chega-se ao conhecimento público decisões teratológicas que, à luz da consciência do julgador, passam por cima da Constituição, violam direitos e garantias fundamentais e anulam a base do que, às duras penas, se compreende hoje por Estado Constitucional de Direito, isto é, colocando em risco a autonomia do Direito e, o pior, a supremacia da Constituição.

A partir dessa problemática, pode-se identificar dois possíveis comportamentos, igualmente nocivos a essa nova legalidade constitucional: ou os intérpretes continuam aplicando o Direito com o pressuposto da lógica positivista (primitiva), criando situações absurdas e desconexas com a nova ordem constitucional, ou, ao contrário disso, não aceitando aplicar um Direito que não mais coaduna com a nova ordem, passam de meros “bocas da lei” à “críticos da lei”, proferindo decisões discricionárias, contrárias à Constituição, que, em nome de um neoconstitucionalismo, não abrem mão das raízes solipsistas.

Teoria do “vale-tudo”?
O instituto das nulidades em processo penal é um dos terremos mais arenosos no Direito atualmente. Seja na jurisprudência ou na doutrina, raramente se encontram opiniões convergentes sobre o assunto. Todavia, além das inúmeras discussões possíveis que o instituto proporciona, o que chama atenção é a denominada teoria do prejuízo, que, atrelada às nulidades relativas, transformou-se em mais um tumor do processo penal que, volta e meia, fere o sistema de garantias constitucionais.

Extraída da dicção do artigo 563 do Código de Processo Penal, a teoria do prejuízo tem finalidade última servir à aplicação da nulidade relativa (que é uma classificação doutrinaria das nulidades no sistema processual penal). O dispositivo explicita o famoso princípio pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo), isto é, para que determinado ato seja declarado nulo, será necessária comprovação do prejuízo pela parte que alega, salvo se o ato não viole norma cogente, situação em que o juiz poderá reconhecê-la de ofício. Entretanto, nas palavras de Lopes Jr (2014), o “prejuízo”, como distinção entre nulidades relativas e absolutas, possibilita espaços de manipulação interpretativa e a aplicação inadequada das nulidades processuais penais nos casos concretos.

Nesse contexto, a inapropriada influência do processo civil exercida sobre o processo penal quanto ao tema das nulidades processuais é importe ponto a ser analisado, pois, o “prejuízo”, até então, só era aplicado nos casos de nulidade relativa e desde que devidamente comprovada a lesão que o ato causou àquele que a alegou. Todavia, há de muito, nos tribunais, tem-se aceito o fenômeno da relativização das nulidades absolutas do processo civil em processo penal, exigindo da parte que alega a nulidade absoluta a comprovação efetiva do prejuízo, o que implica em consequências danosas ao suporte fático dos direitos e garantias do imputado.

Trata-se, portanto, de verdadeira metástase, vez que a recepção de categorias do processo civil para o processo penal, como explica Lopes Jr (2014), tem produzido verdadeiro atropelamento de direitos e garantias fundamentais, embasado em uma postura utilitarista e sob o manto da manipulação discursivo-interpretativa. Reiterando esse posicionamento, Fernandes e Fernandes (2002, p. 41) afirmam, por outro lado, que mais grave que os inconvenientes da declaração de nulidade processual “será a condenação de um acusado com proscrição das garantias fundamentais do contraditório, da ampla defesa, da liberdade plena de produção de prova”.

No Estado Constitucional de Direito e, mais do que nunca, dentro da seara processual penal, forma é sinônimo de garantia. Adequada é a afirmação de Lopes Jr. (2014, p. 1175) de que o “processo penal é um instrumento de limitação do poder punitivo do Estado, impondo severos limites desse poder e também regras formais para o seu exercício. É a forma, um limite ao poder estatal”. Dentro dessa perspectiva, o conceito de forma é esvaziado pelas tendências pessoais do intérprete, fato que resultará inevitavelmente em discricionariedade travestida de legalidade constitucional, mas que, na verdade, tangencia qualquer noção de constitucionalidade. Exemplo claro disso foi o julgamento do Habeas Corpus 148.723/SC, em que o Superior Tribunal de Justiça (STJ, 2010, p. 9) denegou a ordem de HC ao paciente, que alegava nulidade absoluta em função de o processo tramitar em segredo de Justiça sem motivação, violando o princípio constitucional da publicidade, sob o seguinte fundamento:

O simples fato de o feito ter tramitado em sigilo, com a implícita concordância da Defesa, não gera qualquer nulidade. Poderia se cogitar eventual vício em situação oposta, ou seja, se não tivesse sido observado o sigilo determinado pela lei. No caso, contudo, não há qualquer mácula processual. […] não se demonstrou qualquer prejuízo (?) em decorrência da providência adotada. A magistrada esclareceu que a Defesa teve o devido acesso aos autos e o impetrante não alega o contrário (sem grifos no original).

Perceba que, sob o fundamento da preclusão (?), a indevida tramitação em segredo de Justiça da ação penal in casu, violando frontalmente ditame constitucional estampado no artigo 93, IX, da CF/88, não constitui “qualquer mácula processual”. Ora, é sabido que, no caso de nulidade absoluta, não há que se falar em convalidação, tão pouco em preclusão do ato, eis que a invalidade processual pode ser arguida a qualquer tempo enquanto perdurar o processo penal. Além disso, para que seja reconhecida a nulidade absoluta, não é necessária a provocação da parte interessada, podendo ser declarada de ofício pelo juiz e, inclusive, ser alegada em sede de revisão criminal ou Habeas Corpus, ainda que formada a coisa julgada. Outra questão é que não há que se falar em demonstração de prejuízo em nulidades absolutas, vez que o prejuízo é presumido! E mais, se se entende que “forma” é garantia, uma vez violada a “forma”, é obvio que tal atipicidade produza dano. Apesar disso, verifica-se que, no exemplo, se operou a relativização da nulidade absoluta e, consequentemente, a aplicação do princípio pas nillité sans grife, mesmo sendo caso de nulidade insanável (absoluta).

Como forma, portanto, de se evitar desvios dessa natureza, Lopes Jr., em sua obra Direito Processual Penal, apresenta uma possível saída. O autor propõe o que ele denomina de “inversão de sinais”, ou seja, não será a parte que alega o prejuízo que deverá demonstrá-lo, mas o próprio juiz que, para manter a eficácia do ato, deverá apresentar fundamentação demonstrando que o ato alcançou sua finalidade ou foi regularmente sanado. Esse também é o posicionamento de Badaró (2007), para o qual deverá ocorrer uma liberação da carga probatória por parte da defesa, restando ao juiz tal incumbência. Isso se justificaria uma vez que a defesa dificilmente conseguiria demonstrar o prejuízo, por exemplo, em casos de violação do princípio da publicidade, como no caso em análise. Quer dizer, qual foi o prejuízo nesse caso se o paciente teve oportunidade de alegar o defeito, mas não o fez oportunamente? Qual foi o prejuízo se o paciente sequer apontou um? Simples, o prejuízo é nada mais que a violação de uma norma constitucional! Ou, em outros casos, a inobservância de direitos individuais.

Frisa-se, entretanto, que, por mais que a medida proposta por Lopes Jr. seja um grande passo para evitar a violação de direitos e garantias constitucionais, só ela não satisfaz. Afinal, nada impediria que o juiz ou tribunal continuassem tendo atitudes discricionárias e violadoras, bastasse apresentar razões que, para sua consciência, legitimariam a inobservância da Constituição ou de determinada formalidade prevista no processo penal. É imperioso um conjunto de ações, o que inclui, fundamentalmente, que juízes e tribunais tenham a correta compreensão do processo penal, não mais como um sistema inquisitório, mas como um sistema inexoravelmente inserido em uma nova ordem jurídico-constitucional, na qual a forma é a máxima expressão de garantia.

O que não se pode mais admitir é que garantias fundamentais sejam violadas a fim de se satisfazer a consciência do intérprete e, pior que isso, que tais ilegalidades sejam chanceladas pelos tribunais. Atualmente, o decisionismo no âmbito do processo penal, em especial, no que diz respeito às nulidades processuais, está rigorosamente arraigada, sendo legitimada pela doutrina, diga-se de passagem. É preciso, como já dito, um conjunto de ações, dentre as quais a primordial é a compreensão do sistema jurídico inevitavelmente inseparável da Constituição e da ordem jurídica por ela estabelecida. Compreendido isso, chegar-se-á a conclusão de que a formalidade, de fato, não pode ser utilizada com um fim em si mesma, assim como não pode ser utilizada ao bel prazer de seus intérpretes.


Referências bibliográficas
BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 148.723/SC, da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 7.dez.2010. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200901879702&dt_publicacao=17/12/2010>. Acesso em: nov.2016.
FERNANDES, Paulo Sérgio Leite; FERNANDES, Geórgia Bajer. Nulidades no processo penal. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
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SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
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STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a ‘letra da lei’ é uma atitude positivista?. Revista Estudos Jurídicos, vol. 15, n. 1, p. 158-173, jan-abr. 2010.
_____. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

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