Direito Civil Atual

Distinção entre prescrição e decadência
no Direito Privado

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16 de abril de 2018, 8h00

ConJur
Este texto pretende resgatar, nos limites de espaço próprios à sua natureza, o debate a respeito do critério distintivo entre a prescrição e a decadência, com enfoque no Direito Privado. Nele a grande referência é, indiscutivelmente, o trabalho do professor Agnelo Amorim Filho, que constitui o ponto de partida e o objeto das reflexões críticas aqui dispostas[1].

Antes, contudo, cumpre delimitar a terminologia utilizada e alguns conceitos prévios sobre o tema, o que se fará tendo, por referencial teórico, a teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda[2].

Nela a prescrição é descrita como consequência de um ato-fato lícito caducificante, em cujo suporte fático se encontra (a) a titularidade de um direito, de uma pretensão (e, eventualmente, de uma ação de direito material),[3] (b) a inação do titular e (c) a passagem do tempo.

Qualificar o fato jurídico lato sensu gerador da exceção de prescrição como um ato-fato jurídico tem destacada importância. Afastam-se, com isso, exames subjetivistas da conduta da parte cujo direito prescreveu, preponderando o decurso de tempo em inação. Essa justificação teórica tem raízes profundas na doutrina brasileira, remontando a Teixeira de Freitas e ao art. 853 da Consolidação das Leis Civis, e reitera que o instituto da prescrição não tem natureza punitiva, mas sim de preservação da segurança jurídica.

Do ato-fato jurídico da prescrição surge a exceção de prescrição, situação jurídica que deve ser exercida pelo titular a quem aproveite ou ser conhecida pelo juiz de ofício (sobre a criticável possibilidade de reconhecimento ex officio vigente em nossa legislação, ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo – ou de como o art. 3º da Lei 11.280/2006 subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro. Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.25, 2006).

Uma vez exercida a exceção de prescrição, tem-se por efeito o encobrimento da eficácia da pretensão, ou da pretensão e da ação de direito material.

Não há extinção sequer da pretensão, muito menos do direito subjetivo, operando-se a inexigibilidade do direito, que permanece existindo, inclusive para os efeitos de satisfação voluntária.

Daí a advertência de Pontes de Miranda: quando se fala em “direito prescrito”, emprega-se elipse, devendo entender-se direito com pretensão ou ação de direito material encobertas.

O exercício da exceção de prescrição transforma o direito, portanto, em direito inexigível, com o intuito de proteger o devedor que não pode ser compelido a guardar prova da quitação do débito ad aeternum (ainda que possa aproveitar a quem, sendo devedor, não adimpliu).

A decadência, ou preclusão, na terminologia ponteana, tem eficácia extintiva. Não torna o direito insuscetível de exigência, vai além – apaga o direito e todos os efeitos irradiados do fato jurídico.

Salvo se se tratar de decadência convencional, nos termos do art. 211 do Código Civil, independe a decadência de exercício de exceção (por si ou por meio de terceiro legitimado extraordinariamente, como no caso do reconhecimento de ofício pelo juiz). Seus efeitos operam ipso facto pelo decurso do prazo, que em regra não se suspende ou interrompe, salvo previsão legal expressa (art. 207).

Pois bem, comprimida ao máximo a leitura da prescrição e da decadência na teoria do fato jurídico, pode-se passar ao tema proposto. Como se sabe, no Código Civil de 1916, não havia identificação clara acerca da natureza dos prazos para exercício de direitos, o que motivou a doutrina a debater o tema sob a ótica do critério específico que pode ser utilizado para identificar quando um dado prazo apontado pela lei é prescricional ou decadencial.

Não se trata de distinguir os efeitos de cada instituto. Trata-se de tentar construir uma teoria suficientemente efetiva para identificar com mais precisão em que situações ocorre prescrição e em quais outras haverá decadência.

Mesmo após o Código de 2002, com a identificação de uma série de prazos na parte geral como sendo prescricionais (art. 206) e com indicação de outros na parte especial com expressa cominação de decadência (v. g., art. 505), ainda persiste interesse em debater o não pacificado critério. É que há prazos ao longo do código sem declinação de sua natureza (v. g., art. 550), isso para não mencionar a extensa legislação extravagante.

Neste ponto, como dito, o referencial clássico é o texto de Agnelo Amorim Filho, que enfrenta a matéria concluindo, em síntese: (a) sujeitam-se à prescrição os direitos prestacionais, dos quais decorrem ações condenatórias; (b) sujeitam-se à decadência os direitos formativos com prazo para exercício previsto em lei, dos quais decorrem ações constitutivas; (c) são perpétuas as ações declaratórias e os direitos potestativos sem prazo para exercício previsto em lei (AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais, vol. 300. São Paulo: RT, out. 1961).

O critério proposto representa indiscutível evolução na matéria e mostra potencial para a solução de uma série de questões práticas, em especial no que toca ao ambiente do direito privado. Não é, porém, perfeito e insuscetível de debate, como um breve olhar crítico pode apontar.

Agnelo Amorim partiu da teoria ternária das ações, por isso não aponta solução para os direitos dos quais defluem ações mandamentais e executivas. Um primeiro esforço contributivo ao critério de distinção reclama, portanto, refletir a respeito do prazo aplicável a estas ações.

Adaptando a própria teoria agneliana às ações executivas, a solução correta parece ser pela sua prescritibilidade, uma vez que, não derivando de direitos formativos, não estão inseridas no campo da decadência.

Se não tiverem prazo específico, sujeitar-se-ão ao prazo prescricional geral de dez anos, previsto no Código Civil (art. 205).

Dois importantes exemplos são as ações de petição de herança e reivindicatória, cuja eficácia vai bem além de simplesmente declarar a condição de herdeiro ou o direito de propriedade, bem como vai além da mera condenação à entrega voluntária da coisa; de fato retiram o bem do patrimônio do terceiro e, sendo assim executivas e desprovidas de prazo determinado expressamente, prescrevem em dez anos.

As ações mandamentais, contudo, não parecem ter solução tão peremptória. Nelas a escolha do legislador ganha maior importância e se descortina um ponto importante do critério distintivo, que é a sua subsidiariedade.

De fato, o principal acerto da teoria de Agnelo Amorim Filho parece residir nos dois postulados básicos que identifica: direitos prestacionais prescrevem, direitos formativos podem decair.

Esses dois fundamentos solucionam toda uma série de problemas práticos. Permitem, por exemplo, identificar que o art. 550, referido acima, que consagra prazo de dois anos de natureza não identificada para o exercício do direito formativo à anulação da doação, é decadencial.

Ocorre que a prescrição e a decadência são institutos de direito positivo. Não há em sua estrutura uma imunidade à influência legislativa, o que inclusive explica como diferentes ramos do Direito podem ter diferentes regramentos acerca da matéria.

Logo, mediante regra jurídica expressa, pode-se atribuir prazo decadencial a direito prestacional ou prazo prescricional a direito formativo. Por regra expressa, pode-se até mesmo criar direitos prestacionais imprescritíveis. Se a lei atribui prazo decadencial a direito que, no silêncio legislativo, prescreveria, ou o contrário, tem o poder para assim determinar, ainda que mereça crítica.

É por isso que não há atecnia na aplicação das regras que estabelecem, por exemplo, a imprescritibilidade da pretensão de indenização à Fazenda Pública por danos causados por agentes públicos (CF, art. 37, §5º).

Portanto, a principal crítica que se pode opor ao critério de distinção entre prescrição e decadência formulado por Agnelo Amorim Filho é mesmo a de não ter afirmado a sua subsidiariedade. Ele será aplicável e solucionará problemas sempre que não houver definição legislativa da natureza do prazo – sempre que o legislador definir expressamente um prazo como prescricional ou decadencial, esta definição prevalecerá.

Além disso, é importante dizer uma palavra a respeito da perpetuidade das ações declarativas. Agnelo Amorim Filho não foi o único a dizer que as ações declaratórias seriam imprescritíveis. Esse entendimento é, inclusive, bem difundido na doutrina e na jurisprudência.[4]

Ele provavelmente é, porém, o autor que mais se debruçou sobre a justificativa dessa imprescritibilidade, que decorre de seu critério distintivo. Para Agnelo, como na ação declaratória não haveria exercício de direito prestacional nem tampouco de direito formativo, não se poderia apor-lhe prazo prescricional ou decadencial.

Em suas palavras:

Ora, as ações declaratórias nem são meios de reclamar uma prestação, nem são, tampouco, meios de exercício de quaisquer direitos (criação, modificação ou extinção de um estado jurídico). Quando se propõe uma ação declaratória, o que se tem em vista, exclusivamente, é a obtenção da "certeza jurídica", isto é, a proclamação judicial da existência ou inexistência de determinada relação jurídica, ou da falsidade ou autenticidade de um documento. Daí é fácil concluir que o conceito de ação declaratória é visceralmente inconciliável com os institutos da prescrição e da decadência: as ações desta espécie não estão, e nem podem estar, ligadas a prazos prescricionais ou decadenciais. (AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais, vol. 300. São Paulo: RT, out. 1961)

Percebe-se na exposição do autor a tendência a enxergar a ação declaratória como um instrumento exclusivamente processual, sem conteúdo material, posição em que não está sozinho.

Do ponto de vista da teoria do fato jurídico que escolhemos por referência, contudo, é preciso salientar a existência de pretensão a declarar e da ação material declaratória, anteriores à pretensão à tutela jurídica e ao remédio jurídico processual.

Neste sentido, Pontes de Miranda:

Não se pode sustentar que não existe pretensão à tutela jurídica para a declaração, nem que não exista a ação (no sentido do direito material), nem que apenas exista a “ação” (remédio jurídico processual). Existem os três. A ação declarativa, no sentido do direito material, está apontada. Se desfavorável a sentença, a declaração (direito pré-processual e processual) é pela inexistência da ação declarativa de direito material. (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado das ações. São Paulo: Revista dos Tribunais, tomo II, 1971, p. 9)

Logo, se há pretensão à declaração e ação de direito material declaratória, a tese de perpetuidade sofre a sua primeira refutação. Há pretensão e ação, no plano material, a serem encobertas pela prescrição ou extintas pela decadência.

A essa constatação deve-se acrescer a idéia já posta de que a prescrição e a decadência são institutos jurídico-positivos e por isso o critério é subsidiário.

Como dito, regra jurídica expressa pode estabelecer soluções não ordinárias em matéria de prescrição. Por que, então, não seria possível fixação de um prazo prescricional para o exercício de ação declarativa, ainda que existam ações declarativas imprescritíveis e que estas sejam a maioria, reveladora de uma regra geral?

Daí o acerto da afirmação de Pontes de Miranda: embora as ações declaratórias sejam por regra imprescritíveis, podem elas estar sujeitas a prazo prescricional ou decadencial, se o legislador entender por limitá-las no tempo (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado das ações, tomo II, cit., p. 80).

Por fim, é possível identificar exemplos de ações declarativas prescritíveis, que contradizem a regra do critério agneliano.

Uma delas era a de impugnação da filiação pelo marido dentro do prazo de dois meses contados do nascimento do filho de sua esposa, contida no Código Civil de 1916, no art. 178, §3º.

Do quanto foi dito conclui-se, portanto, que o critério distintivo proposto por Agnelo Amorim Filho permanece atual, relevante e abre importantes caminhos para a reflexão crítica a respeito do importante tema tratado em sua obra.

Post scriptum. O professor doutor Otávio Luiz Rodrigues Junior, idealizador da Rede de Pesquisa em Direito Civil que produz esta coluna, foi aprovado, em 14 de dezembro passado, no concurso para a livre-docência em Direito Civil na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Dia 14 de dezembro é, segundo o calendário da Igreja Católica Apostólica Romana, a data dedicada à memória de São João da Cruz (24 de novembro, no calendário antigo).

Do grande místico espanhol, doutor da Igreja, ficou o legado de sua obra, de significativa relevância teológica e literária, como também um episódio interessante: foi a partir de um pequeno desenho seu, representando o Cristo crucificado de uma inovadora perspectiva superior, que Salvador Dalí pintaria uma de suas obras mais notórias, o Cristo de São João da Cruz, hoje no Museu Kelvingroove, em Glasgow.

A obra de Dalí é de 1951; a que o inspirou, do final do século XVI. Talvez esta seja uma imagem adequada para o velho direito civil, cuja mais refinada expressão se encontra ao dirigirmos o nosso olhar atual para o legado invulgar do passado, como fizeram, por exemplo, os comentadores e os pandectistas que a nós precederam, e como tem feito em seu trabalho, sempre com cuidado histórico e comparatístico, o professor Otávio, a quem dirigimos nossas congratulações.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).

 


[1] AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais, vol. 300. São Paulo: RT, out. 1961; vide, ainda, ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. A prescritibilidade das ações (materiais) declaratórias: notas à margem da obra de Agnelo Amorim Filho. In: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino; CUNHA, Leonardo Carneiro da; MIRANDA, Daniel Gomes de.. (Org.). Prescrição e decadência: estudos em homenagem a Agnelo Amorim Filho. 1ed.Salvador: Juspodium, 2013, v. 1, p. 485-498.

[2] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. 3 ed. Rio de Janeiro: Borsói, tomo VI, 1970; LEONARDO, Rodrigo Xavier. A prescrição no Código Civil Brasileiro: ou o jogo dos sete erros. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, vol. 51, 2010.

[3] Na teoria do fato jurídico, tem-se precisa individuação da eficácia jurídica a partir da distinção entre as situações jurídicas que caracterizam posições jurídicas subjetivas. As relações jurídicas enchem-se por direitos subjetivos, pretensões, ações de direito material e exceções.
Direito subjetivo é a vantagem que advém a alguém em decorrência da incidência da regra jurídica; pretensão é a possibilidade de exigir uma prestação; ação de direito material consiste no poder de impor a satisfação da prestação e exceção é defesa material que se exerce contra pretensão, ou contra pretensão e ação de direito material, paralisando-as de forma permanente ou temporária. Acresça-se a essa descrição os direitos formativos, extintivos ou geradores, que geram o poder de interferir em esfera jurídica alheia independentemente de cooperação. Consulte-se, por exemplo, MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 172-173.

[4] Um exemplo comum, porém inadequado, de ação declarativa perpétua, muito comumente citado na doutrina, seria a ação de nulidade. Inadequado porque na verdade sequer se trata de ação declarativa, mas sim constitutiva negativa – vide MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado das ações. São Paulo: Revista dos Tribunais, tomo IV, 1973, p. 29 e seguintes.

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