Opinião

Posse precária decorre do arcabouço jurídico, sendo possível sua efetivação

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14 de abril de 2018, 6h27

Introdução
Um dos muitos aspectos do Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição Cidadã foi a institucionalização da regra que confere o acesso a cargo público por meio de concurso.

A Constituição instituiu um modelo de Estado social com o escopo de operacionalizar prestações materiais, tornando necessária a criação/manutenção de uma máquina administrativa com um corpo funcional para consecução das mais diversas atribuições.

De outro lado, a longínqua e conhecida instabilidade da economia arraigou na sociedade o sentimento de uma certa estabilidade econômica para aqueles que ocupam, sobretudo, cargos públicos.

O acesso aos cargos/empregos públicos faz-se por meio de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração (artigo 37, II, CF/88).

A demanda por essa pretensa estabilidade chega, com frequência, à apreciação judicial. Neste ponto, aborda-se uma das questões decorrentes da judicialização dos processos seletivos para investidura em cargos públicos, qual seja: a plausibilidade de nomeação por força de provimento judicial não definitivo.

Desde logo, adverte-se que a presente abordagem consiste em mero prólogo acerca da matéria, não tendo a pretensão de abordar os principais aspectos que circundam o tema.

Posse precária
O ingresso em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em certame público. A investidura se dá com a posse, sendo esta precedida pela nomeação em face de prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, obedecidos a ordem de classificação e o prazo de sua validade (artigo 10, da Lei 8.112/90).

Como dito, o objeto da presente abordagem refere-se à controvérsia da posse decorrente de provimento judicial provisório.

Essa inexistência de posse precária decorre de antiga, e ainda persistente, corrente doutrinária e jurisprudencial (por exemplo, o REsp 1.692.322) segundo a qual o candidato sub judice não tem direito à nomeação e posse, antes do trânsito em julgado da decisão, já que inexiste, em Direito Administrativo, o instituto da posse precária em cargo público[1].

Não obstante o entendimento supra, há que se observar o fenômeno existencial da posse por outro enfoque. Vejamos.

Essa precariedade, em que pese inexistir de forma literal, seja na Constituição seja no Estatuto dos Servidores Públicos Federais (Lei 8.112/90), deflui do próprio arcabouço jurídico.

Conforme expresso no artigo 41 da CF/88, com redação dada pela EC 19/98, são estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público.

De outro giro, não se pode olvidar que é atribuição constitucional do Tribunal de Contas da União apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo poder público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório (artigo 70, III, CF/88).

Mesmo no que tange aos membros da magistratura (artigo 95, I, CF) e do Ministério Público (artigo 128, I, 'a', CF), o vitaliciamento só ocorre após o decurso de dois anos de exercício.

Do exposto, salvo exceções constitucionais (por exemplo, no quinto constitucional a vitaliciedade é imediata), a precariedade é inerente à assunção de qualquer cargo público, não se podendo afirmar que inexiste posse precária.

Assim, com a máxima vênia, há que se admitir que a posse precária, ainda que não decorrente de ordem judicial, é a regra no ordenamento, porquanto existe a previsão normativa de exoneração do agente público acaso não satisfaça os pressupostos da estabilidade ou do vitaliciamento.

A dupla conformidade
O princípio da recorribilidade das decisões é de fundamental importância para a prestação jurisdicional, pois permite a apreciação de uma determinada causa por outros julgadores, dando mais segurança ao processo.

Os processos são julgados por seres humanos, seres estes passíveis de erros e falhas. Como meio de evitar a falibilidade humana, consagra-se o princípio da recorribilidade.

No dizer de Rio Porta Nova[2], “o princípio da recursividade visa satisfazer uma necessidade humana; ninguém se conforma com um juízo único e desfavorável. Esse inconformismo é fruto do conhecimento que se tem da imperfeição humana. Além disso, a confirmação da sentença, por outro tribunal, dá-lhe mais prestígio porque ela passa pelo crivo de juízes de mais antiga investidura”.

A tese da dupla conformidade para fins do objeto da presente exposição é aquela que confere ao provimento judicial de primeira instância uma perspectiva de plausibilidade da tese jurídica defendida pelas partes, ou seja, confere uma maior segurança jurídica ao julgado, ainda que não passado em julgado.

Esse duplo conforme entre as instâncias de primeiro e o segundo grau faz surgir na parte vencedora uma expectativa legítima de que, efetivamente, é titular do direito postulado, tanto que a sentença restou confirmada pela segunda instância.

Já para o sucumbente resta a via estreita dos recursos de natureza extraordinária (REsp ou RE), de fundamentação vinculada, onde é vedado o reexame de fatos e provas, além de não possuírem efeito suspensivo, como regra.

Essa tese já restou aceita pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, conforme notícia veiculada no Informativo 536 do STJ:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. IRREPETIBILIDADE DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO.

Não está sujeito à repetição o valor correspondente a benefício previdenciário recebido por determinação de sentença que, confirmada em segunda instância, vem a ser reformada apenas no julgamento de recurso especial.

(…)

Entretanto, na hipótese ora em análise há uma peculiaridade: o beneficiário recebe o benefício por força de decisão proferida, em cognição exauriente, pelo Juiz de primeiro grau (sentença), a qual foi confirmada em segunda instância. Esse duplo conforme — ou dupla conformidade — entre a sentença e o acórdão gera a estabilização da decisão de primeira instância, razão pela qual, ainda que o resultado do julgamento em segundo grau se dê por maioria, é vedada a oposição dos embargos infringentes para rediscussão da matéria. Vale dizer, nessas hipóteses, subsiste ao inconformado apenas a interposição de recursos de natureza extraordinária (REsp ou RE), de fundamentação vinculada, em que é vedado o reexame de fatos e provas, além de, em regra, não possuírem efeito suspensivo. Logo, se de um lado a dupla conformidade limita a possibilidade de recurso do vencido, tornando estável a relação jurídica submetida a julgamento, e por isso passível de execução provisória; de outro, cria no vencedor a legítima expectativa de que é titular do direito reconhecido na sentença e confirmado pelo tribunal de segunda instância.

(…)

EREsp 1.086.154-RS, rel. min. Nancy Andrighi, julgado em 20/11/2013.

Sobre a desnecessidade de aguardar-se o trânsito em julgado em face da inexistência, expressa na legislação, de posse precária — objeto em análise —, cabe traçar um paralelo com o princípio da presunção de inocência.

Reza esse princípio que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado (artigo 5º, LVII, CF/88). Não obstante o aludido princípio, o Plenário do STF, no HC 126.292[3], por maioria, entendeu que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal.

Outrossim, ao julgar o HC 152.752, por meio do qual a defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva buscava impedir a execução provisória da pena diante da confirmação pelo TRF-4, decidiu pela manutenção do entendimento, em que pese a plausibilidade de alteração do entendimento quando do julgamento das ADCs 43 e 44.

Vê-se que, mesmo na seara penal, sem adentrar na imensa celeuma hoje existente, a tese da dupla conformidade também restou admitida pelo STF.

Não se pode olvidar, ainda, que a dupla conformidade veio à tona outrora com grande repercussão após a promulgação da Lei da Ficha Limpa (LC 135/10), que conferiu nova redação a diversas alíneas do inciso I ao artigo 1º da Lei Complementar 64/90. Pela novel legislação, a inelegibilidade passou a ser reconhecida em havendo pronunciamento por órgão colegiado. A referida norma foi declarada constitucional pelo STF (vide ADCs 29 e 30 e ADI 4.578).

A razoável duração do processo e a efetividade da prestação jurisdicional
É fato notório que a prestação jurisdicional no Brasil é, em regra, demorada, por certo decorrente de vários problemas estruturais. Tal mora prejudica a realização do direito das partes e, por conseguinte, enfraquece a própria confiabilidade na efetividade da Justiça.

A celeridade processual é um desejo ínsito daqueles que buscam o Judiciário para solucionar suas demandas, sendo necessidade já consignada desde as ondas de acesso defendidas por Mauro Cappeletti.

E, nessa perspectiva, a razoável duração do processo foi elevada à categoria de direito fundamental (artigo 5º, LXXVIII, da CF/88, acrescentado pela EC 45/2004), sendo certo que o parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição, na redação do constituinte originário, já assegurou que as normas definidoras dos direitos fundamentais têm aplicação imediata.

Outrossim, a novel legislação processual expressa que as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa (artigo 4º, CPC/2015).

Essa atividade satisfativa a que se refere a parte final do caput do artigo acima referida veio ratificar a importância do princípio da efetividade da prestação jurisdicional. O pragmatismo buscado é a plausibilidade de aplicação do direito material reconhecido na esfera processual.

Se o Estado veda a prática da autotutela, salvo exceções legais, e guarda para si o exercício da jurisdição, cabe a ele dar efetividade às suas decisões do modo mais célere possível, devendo valer-se, para tanto, dos instrumentos processuais legalmente postos a sua disposição.

Aplicabilidade da dupla conformidade à posse precária
Como já visto, a dupla confirmação do julgado gera uma real expectativa da legitimidade do direito ao objeto da demanda. Outrossim, a possibilidade de posse precária, em que pese inexistir de forma literal em nossa legislação, decorre do próprio arcabouço jurídico.

Em atuação que se coaduna com o princípio da razoabilidade e da razoável duração do processo, bem como à efetividade da prestação jurisdicional, o TRF da 1ª Região vem admitindo a posse por ordem judicial não definitiva nos casos em que a referida instância ad quem confirma o pronunciamento da primeira instância e/ou que vem decidindo de modo uniforme e reiterado acerca de determinada causa. Vejamos (trecho pertinente dos julgados):

III – Embora ao candidato "sub judice" não se reconheçam os direitos à nomeação e posse antes do trânsito em julgado, já que inexiste, em Direito Administrativo, o instituto da posse precária em cargo público, esta 6ª Turma tem adotado o entendimento no sentido de ser possível nomeação antes do trânsito em julgado nos casos em que o acórdão do Tribunal seja unânime, de forma a afastar as hipóteses de cabimento dos embargos infringentes previstos no CPC de 1973 e, agora, o prosseguimento do julgamento na sistemática constante do art. 942 do Código de Processo Civil de 2015.

(…)

(APELAÇÃO 00772689620134013400, Rel. JIRAIR ARAM MEGUERIAN, TRF1 – SEXTA TURMA, e-DJF1:24/10/2017) (grifei)

(…)

6. Atento ao princípio da efetividade da tutela jurisdicional prestigiado pela Emenda Constitucional 45/2004, ventilo nesta hipótese a possibilidade de seu provimento, vez que adequado ao caso concreto, pois conforme se verifica em precedentes desta Corte, é possível a nomeação e posse do candidato antes do trânsito em julgado.

7. "Constando dos autos o pedido de nomeação e posse imediatas e tratando-se de questão reiteradamente decidida, não há necessidade de aguardar o trânsito em julgado do decisum, como vem decidindo esta Turma (…).

(…)

(TRF1, AC 0009215-58.2016.4.01.3400, Rel. ROBERTO CARLOS DE OLIVEIRA, 5ª Turma, 17/05/2017 e-DJF1) (grifei)

Em rápida digressão, cabe pontuar que o STF, em sede de repercussão geral, firmou o entendimento de ser inaplicável a Teoria do Fato Consumado aos casos em que o provimento no cargo público se dá por força de decisão judicial precária (RE 608.482/RN, rel. ministro Teori Zavascki, Pleno, DJe 30/10/2014). O referido julgado não interfere na efetivação de posse por decisão provisória, situação não tratada no RE 608.482/RN.

A tese firmada em sede de repercussão geral foi a de que não é compatível com o regime constitucional de acesso aos cargos públicos a manutenção de candidato que tomou posse em decorrência de execução provisória de medida liminar ou outro provimento judicial de natureza precária, posteriormente revogado ou modificado. Ou seja, refutou a Teoria do Fato Consumado.

A contrario sensu, depreende-se que o próprio julgado do STF admite a posse através de provimento judicial liminar ou via tutela de urgência, quando presentes os requisitos legais. O que foi negado foi a estabilidade, acaso haja modificação do provimento judicial[4].

Considerações finais
De todo o exposto, depreende-se que existe a posse precária em nosso ordenamento, sendo plenamente plausível sua efetivação por provimento judicial não definitivo. Permitir a restrição da liberdade após a confirmação da sentença condenatória pela segunda instância, bem como a inexequibilidade de parcela dos direitos políticos, já que a Lei da Ficha Limpa veda a candidatura para candidatos condenados por órgão colegiado, e ao mesmo tempo negar posse após uma dupla conformidade entre os pronunciamentos de 1º e 2º graus beira em ofensa à razoabilidade.

Vale consignar que a posse por decisão judicial não traz prejuízo à administração, porquanto o demandante estará exercendo regularmente suas atividades.

Destarte, temos que a existência da posse precária decorre do próprio arcabouço jurídico, sendo possível sua efetivação, mormente quando a decisão judicial de primeira instância restar confirmada pelos tribunais, porquanto a dupla confirmação do julgado gera uma real expectativa da legitimidade do direito, situação que se coaduna com o princípio da razoabilidade, da razoável duração do processo e da efetividade da prestação jurisdicional.


[1] Em sentido contrário, o STJ tem precedentes recentes favoráveis à nomeação e posse de candidato antes do trânsito em julgado, uma vez que a hipótese não se enquadra nas vedações do artigo 2º-B da Lei 9.494/97. Vide: STJ, AGARESP 201200427237 e AIRESP 201700847955.
[2] Princípios do Processo Civil. 5ª ed. Ed. Livraria do Advogado. Porto Alegre: 2003. p. 104.
[3] STF, HC 126292, Relator Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 17/02/2016.
[4] Neste sentido: TRF1, APELAÇÃO 00064207920164013400, Rel. DANIEL PAES RIBEIRO, 6ª T, e-DJF1 DATA:27/06/2017.

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