Ambiente Jurídico

Omissão do Estado em relação às unidades de conservação e controle judicial

Autor

  • Álvaro Luiz Valery Mirra

    é juiz de Direito em São Paulo doutor em Direito Processual pela USP especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França) coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

14 de abril de 2018, 8h00

Spacca
O tema do controle judicial das omissões do poder público em matéria ambiental é considerado assunto da maior importância no Direito Ambiental, em razão das inúmeras situações concretas em que os órgãos e agentes estatais deixam de cumprir o dever que lhes incumbe de adotar as medidas administrativas necessárias à implementação das normas protetivas do meio ambiente e à proteção de bens e recursos ambientais específicos[1].

Essa questão surge, também, no tocante às unidades de conservação da natureza (parques nacionais e estaduais, áreas de proteção ambiental, estações ecológicas etc.), em que, muitas vezes, o poder público, apesar de criar formalmente esses espaços territoriais especialmente protegidos, deixa de implantá-los na prática, ou, quando os implanta, deixa de fiscalizar as atividades degradadoras realizadas por terceiros no interior das áreas protegidas, fazendo com que estas não cumpram integralmente a finalidade para a qual foram criadas.

Nesses casos, discute-se sobre a possibilidade de superação, pela via judicial, da inércia da administração pública, por intermédio de demandas coletivas ambientais que tenham como objetivo impor ao poder público o cumprimento de obrigações/deveres de fazer direcionados à realização concreta do que foi previsto na Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Lei 9.985/2000) e no próprio ato instituidor dos espaços protegidos.

A evolução no tratamento doutrinário e jurisprudencial da matéria levou à admissão da extensão do controle, pela via judicial, das omissões do Estado na defesa do meio ambiente, em termos gerais, com a imposição, cada vez mais frequente, ao poder público da obrigação de adotar medidas positivas de preservação ambiental, por intermédio de demandas coletivas movidas pelos entes representativos da sociedade legitimados para agir em juízo (Ministério Público, Defensoria Pública, associações civis).

Tal decorre do disposto no artigo 225, caput, da Constituição Federal, que consagrou o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito fundamental de terceira dimensão, de natureza defensiva e prestacional, que impõe, para o que aqui importa, ao poder público uma abstenção, consistente em não degradar a qualidade ambiental, e, ao mesmo tempo, uma prestação positiva, no sentido de defesa e recuperação da qualidade ambiental, bem como impôs ao poder público — e também à coletividade — o dever de defender e preservar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras, atribuindo ao Estado a incumbência de adotar uma série de ações e programas, os quais, no seu conjunto, constituem a política ambiental do país[2].

Com isso, tornou-se viável, em relação ao poder público, não somente a exigibilidade do exercício das competências ambientais, evidentemente com as regras e contornos constitucionalmente previstos, como também o controle do exercício dessas competências, a fim de que as coletividades públicas não se omitam no dever de agir ou, quando agirem, não atuem de forma insuficiente em termos de proteção ambiental.

E isso se dá, igualmente, quando se trata de omissões do poder público relacionadas com as unidades de conservação da natureza, consagradas na CF como espaços territoriais especialmente protegidos (artigo 225, parágrafo 1º, III), sobretudo no que se refere (i) à omissão na implantação efetiva e concreta das áreas protegidas criadas e (ii) à omissão na fiscalização das atividades degradadoras realizadas no interior das UCs.

No que se refere à implantação efetiva e concreta das unidades de conservação, vale mencionar que o Superior Tribunal de Justiça, em julgado relatado pelo ministro Humberto Martins[3], entendeu ser possível a determinação ao poder público, pela via judicial, da realização de plano de manejo e gestão de área natural protegida, a fim de concretizar a demarcação e a proteção de uma área de proteção ambiental.

O caso que deu origem a esse julgado envolvia a ausência de plano de manejo da APA da Baleia Franca, por omissão do poder público, considerado o plano em questão essencial para a implantação e a preservação da própria unidade de conservação. Nesse sentido, o STJ entendeu que a ausência do plano de gestão constituía violação do dever fundamental do poder público de proteger o meio ambiente.

Importante observar que o STJ, nesse julgado, determinou ao órgão ambiental federal a realização do plano de manejo e gestão da APA e, também, a designação de equipe técnica para a fiscalização da área protegida. E mais ainda: o STJ determinou à União que liberasse recursos suficientes para a elaboração completa do plano, no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado da sentença, sob pena de incidência de multa cominatória de R$ 50 mil por dia de atraso no adimplemento da obrigação de fazer imposta.

No mesmo sentido teve a oportunidade de se posicionar o Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão relatado pelo desembargador José Santanta[4], ao determinar ao estado de São Paulo o cumprimento de obrigações/deveres de fazer destinados à demarcação dos limites do Parque Estadual Xixová-Japui, criado pelo Executivo, mas não implantado efetivamente, à realização de plano de manejo da unidade de conservação e à administração rigorosa do parque, a fim de impedir invasões, tudo no prazo de um ano e seis meses, com a cominação de multa diária de R$ 5 mil para a eventualidade de descumprimento das prestações impostas.

Como se vê, o Poder Judiciário, nesses casos, determinou a execução de verdadeiros programas de ação para a implantação das unidades de conservação referidas, partindo, especialmente, da constatação de que aquelas áreas naturais protegidas já tinham sido criadas por atos dos próprios Poderes Executivos, os quais ficam, então, obrigados a concretizá-los, sem possibilidade de invocar juízo discricionário relativamente ao momento mais adequado para a adoção das medidas de implementação dos espaços territoriais especialmente protegidos em questão.

No que concerne à omissão do poder público no cumprimento do dever de fiscalizar as atividades desenvolvidas no interior das unidades de conservação, o Superior Tribunal de Justiça já teve, igualmente, a oportunidade de se pronunciar a respeito da possibilidade de controle judicial nessa matéria, em julgado que teve voto condutor do ministro Herman Benjamin[5].

De acordo com o entendimento esposado nesse julgado, existe, a cargo dos órgãos administrativos, um "inequívoco dever-poder de controle e fiscalização ambiental, de natureza vinculada, indisponível, irrenunciável e imprescritível, havendo sempre a necessidade de pronta e eficaz atuação do Estado na defesa não só do seu patrimônio como, ainda, dos bens de uso comum do povo, como o meio ambiente". Assim, segundo o ministro Herman Benjamin, o dever de fiscalizar o exercício de atividades degradadoras é uma tarefa irrenunciável e vinculada do Estado, não existindo qualquer liberdade para a administração no sentido de exercer ou não a fiscalização.

E o que é importante observar, ainda, é que, na orientação firmada pelo STJ, não basta a adoção pelo órgão ambiental de uma ou algumas das providências postas à sua disposição pela lei para o exercício da fiscalização e do controle — embargo de obra ou atividade irregular, demolição de construções, multa diária, apreensão de instrumentos ou equipamentos utilizados na infração ou mesmo o desforço imediato. O órgão encarregado da fiscalização, pontuou o julgado, deve se valer de todas as medidas que se mostrarem necessárias, a fim de atuar de maneira diligente e eficiente no sentido de impedir as degradações ambientais ou, não sendo mais possível impedir a degradação, no sentido de minorar e fazer cessar as consequências danosas, de sancionar as condutas e atividades lesivas e de obter a reparação dos danos causados, sob pena de caracterização da responsabilidade civil do Estado, em caráter solidário com o degradador, por omissão no dever de fiscalização.

Por essa razão, no caso que deu origem a essa orientação, relacionado à ocupação e à utilização irregular de parque estadual, considerou o ministro Herman Benjamin que “não se desincumbe do dever-poder de fiscalização ambiental o administrador que se limita a embargar a obra ou atividade irregular e a denunciá-la ao Ministério Público e à Polícia, ignorando ou desprezando outras medidas, inclusive possessórias, que a lei põe à sua disposição para eficazmente fazer valer a ordem administrativa”. Ou seja: é claramente a ideia de que existe não só o dever da administração de fiscalizar o exercício de atividade potencialmente degradadora no âmbito das unidades de conservação, mas o dever de atuar de modo diligente e eficiente, vedada a atuação insuficiente nesse domínio, sob pena de responsabilização do Estado na esfera civil.

Como se vê, a evolução jurisprudencial na matéria, inclusive no Superior Tribunal de Justiça, tem se mostrado favorável à extensão do controle judicial — na realidade, controle social via Judiciário — das omissões do Estado na proteção do meio ambiente, inclusive quando se trata da omissão na implantação e fiscalização das unidades de conservação da natureza.

Na realidade, talvez o principal problema, hoje, seja como efetivar, em termos concretos, esse controle pela via judicial das omissões do poder público para a implantação e a preservação dos espaços territoriais especialmente protegidos.

Isso porque a implantação concreta e efetiva de qualquer unidade de conservação e o estabelecimento de sistema adequado de fiscalização de atividades exercidas no interior dessas áreas protegidas demandam a realização pelo poder público de inúmeras atividades e de despesas importantes, que implicam a adoção de verdadeiros programas de ação estatais, via de regra extremamente complexos. Com efeito, é preciso dotação orçamentária para os trabalhos a serem realizados; são necessárias muitas vezes a contratação de obras e serviços submetidos a procedimento licitatório e a realização da desapropriação de áreas privadas para a implantação das UCs; impõe-se, também, frequentemente, a desocupação de áreas ocupadas por um grande número de pessoas (caso específico da omissão na fiscalização da ocupação das unidades de conservação).

Essa a razão, como se viu nos julgados mencionados, da concessão de prazos mais ou menos longos para a adoção das medidas administrativas necessárias à superação da inércia administrativa ou, ainda, da determinação para que esses prazos sejam definidos por ocasião da liquidação e execução do julgado, em função das peculiaridades do caso concreto, atividade extremamente difícil a cargo do magistrado de primeira instância, principal encarregado de fazer valer o comando judicial, ainda que ele conte com a colaboração do poder público.

Bem por isso, exige-se do juiz de primeira instância, a quem vai caber, na prática, a efetivação do julgado, o acompanhamento atento e cuidadoso do processo, para que as medidas necessárias sejam ao final cumpridas, dentro do prazo previsto. E mais: do juiz de primeira instância exige-se que adote um novo perfil, de verdadeiro gestor da execução do julgado, a fim de que todo o conjunto de atividades necessárias para a implantação da UC e para a fiscalização das atividades exercidas no interior desta, a cargo da administração pública, possa ser realizado de maneira adequada, evidentemente com a participação das partes no processo[6]. Aqui, em especial, o julgador precisa de muita atenção e sensibilidade para perceber em que medida será necessário, no momento da execução, adaptar as providências executivas à finalidade pretendida, em que medida será lícito prorrogar determinados prazos e em que condições será necessário empregar medidas de força para fazer valer o comando judicial.


[1] Sobre o tema, em termos gerais, ver, MIRRA, Álvaro Luiz Valery. O Estado, a proteção do meio ambiente e a jurisprudência, nesta coluna "Ambiente Jurídico", 8/7/2017.
[2] MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente. 2ª ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 401-410, e Participação, processo civil e defesa do meio ambiente. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011, p. 461 e ss.; KRELL, Andreas Joachim. Discricionariedade administrativa e proteção ambiental: o controle dos conceitos jurídicos indeterminados e a competência dos órgãos ambientais: um estudo comparativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004, p. 57 e ss.; FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do meio ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 185-189.
[3] STJ – 2ª T. – REsp 1.163.524/SC – j. 5/5/2011 – rel. min. Humberto Martins.
[4] TJ-SP – 8ª Câmara de Direito Público – Ap. Cív. 35.935.5/00 – j. 11/8/1999 – rel. des. José Santana.
[5] STJ – 2ª T. – REsp 1.071.741/SP – j. 24/3/2009 – rel. min. Herman Benjamin.
[6] Esse aspecto da matéria, em termos gerais para as demandas ambientais, tem sido destacado com bastante ênfase pelo desembargador José Renato Nalini, ex-integrante de Câmara Reservada ao Meio Ambiente do Tribunal de Justiça de São Paulo, e pelo desembargador Ricardo Cintra Torres de Carvalho, membro atual da 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente da mesma corte de Justiça.

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    é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito Processual pela USP, especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França), coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

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