Opinião

O Funrural e a queda do veto das multas e dos encargos

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13 de abril de 2018, 7h00

Atendendo a reclamos do segmento rural, o Congresso Nacional não manteve os vetos do presidente da República a alguns dispositivos do PLC 165/2017, convertido na Lei 13.606/18, que instituiu, entre nós, o Programa de Regularização Tributária Rural (Refis Rural). Em especial, para este artigo, foram derrubados os vetos da alínea "a" do inciso II do caput do artigo 2º e da alínea "a" do inciso II do caput do artigo 3º, do projeto, que previam o abatimento de 100% das multas de mora e de ofício e dos encargos legais, incluídos os honorários advocatícios aos optantes pelo PRR.

Nas razões do veto, o presidente da República aduziu risco de “sobrelevação de custo fiscal imputado ao Tesouro Nacional, sem previsão na Lei Orçamentária para recepção do impacto, e indo de encontro ao esforço fiscal empreendido no país”. Além disso, afirmou que “as alterações legislativas propostas, incluída a dispensa das exigências de regularidade fiscal, desrespeitam os mutuários do crédito rural adimplentes com a União e com os agentes financeiros, podendo representar estímulo indevido ao risco moral”.

Em outras palavras, os dispositivos legais vetados, segundo o chefe do Executivo, poderiam implicar em custos fiscais sem previsão no orçamento (“pedaladas”) e que o benefício estimularia a cultura do inadimplemento.

Tais razões, entretanto, não prevaleceram, conforme amplamente noticiado, vez que o Congresso Nacional, em sessão conjunta (artigo 66, parágrafo 4º, da CF/88), no desempenho de sua competência prevista no artigo 57, parágrafo 3º, inciso IV, da CF/88, conheceu e deliberou acerca dos vetos em referência, não mantendo, assim, a cobrança das multas e dos encargos em discussão.

Cuida-se de mais um capítulo na “novela” do Funrural.

Agora, é mister verificar as consequências da decisão legítima e soberana do Congresso Nacional quanto aos optantes do PRR que aderiram antes da derrubada dos vetos, já que, nos termos do artigo 1º, parágrafo 3º, da Lei 13.606/18, a adesão ao PRR implicará: I – a confissão irrevogável e irretratável dos débitos em nome do sujeito passivo, na condição de contribuinte ou sub-rogado, e por ele indicados para compor o PRR, nos termos dos artigos 389 e 395 da Lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil); II – a aceitação plena e irretratável pelo sujeito passivo, na condição de contribuinte ou de sub-rogado, das condições estabelecidas nesta lei; III – o dever de pagar regularmente as parcelas da dívida consolidada no PRR e os débitos relativos às contribuições dos produtores rurais pessoas físicas e dos adquirentes de produção rural de que trata o artigo 25 da Lei 8.212, de 24 de julho de 1991, e às contribuições dos produtores rurais pessoas jurídicas de que trata o artigo 25 da Lei 8.870, de 15 de abril de 1994, vencidos após 30 de agosto de 2017, inscritos ou não em dívida ativa da União; e IV – o cumprimento regular das obrigações com o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

Em outras palavras, a adesão ao Refis Rural importa, em princípio, em assunção, pelo contribuinte — produtor rural ou sub-rogado, da condição “irrevogável e irretratável” de devedor dos débitos confessados, não podendo, por força do princípio da obrigatoriedade das convenções (pacta sunt servanda) discutir a obrigação, seja no que diz respeito à sua existência (de resto já certificada pelo Supremo Tribunal Federal – RE 718.874/RS), seja no que respeita à sua extensão, ou seja, o seu quantum e aqui reside questão que poderá se tornar controvertida. Explico.

No período anterior à apreciação dos vetos, a Receita Federal procedia à consolidação dos débitos a serem parcelados pelo contribuinte, com as multas e com os encargos, nos termos do que determina o artigo 7º, da Lei 13.606/18, de forma expressa:

Art. 7º A dívida objeto do parcelamento será consolidada na data do requerimento de adesão ao PRR (sem grifos e subscritos no original).

Agora, diante do novo quadro normativo, a consolidação da dívida levará em consideração a remissão operada pelo Congresso Nacional de modo que o contribuinte que doravante aderir ao PRR terá excluídas as multas e os encargos do seu parcelamento. Mas como ficarão os contribuintes que já parcelaram a dívida consolidada com as multas e os encargos? Eles não confessaram o débito? Poderão pedir o recálculo do parcelamento com vistas a excluir as multas e os encargos?

Não tenho dúvidas a respeito do direito do contribuinte ao recálculo. As quedas dos vetos, e a consequente sanção presidencial do projeto nos termos do artigo 66, parágrafo 5º, da Constituição, implicam em remissão do crédito, conforme estabelece o artigo 172, caput, do Código Tributário Nacional, devendo ser procedida a revisão de ofício do lançamento tributário feito a partir da confissão do contribuinte no momento da opção pelo PRR, na forma como dispõem os artigos 155-A c/c 144 e 149, incisos I e VIII, do Código Tributário Nacional.

Somente dessa forma se prestigiará a boa-fé do contribuinte, além de evitar o enriquecimento indevido por parte do Fisco a partir de um fato inidôneo a gerar distinção entre sujeitos que se encontrem em situação jurídica — devedores do Funrural em tudo semelhante, inexistindo qualquer critério de discrimen que se justifique a partir da leitura do princípio da isonomia. Em outras palavras, não é possível distinguir positivamente os contribuintes que optaram pelo parcelamento somente após a deliberação dos vetos pelo Congresso Nacional.

O contrário seria permitir o enriquecimento indevido do Fisco em prejuízo dos contribuintes que optaram mais cedo pelo PRR acreditando na manutenção das regras pré-estabelecidas. Não que o Congresso Nacional não pudesse exercer suas prerrogativas constitucionais, mas, com o perdão da crítica, o fez, neste caso, de forma atabalhoada, posto que não regulamentou as relações jurídicas decorrentes do texto legal sancionado com os vetos posteriormente derrubados.

Ao proceder dessa forma, o parlamento permite, por exemplo, ao Fisco interpretar as normas em discussão no sentido de não fazer a revisão dos lançamentos e parcelamentos com fundamento no ato jurídico perfeito configurado a partir da confissão de dívida deduzida no momento da adesão ao PRR, naquelas condições originárias, ou seja, com multa e encargos.

Em verdade, há uma miríade de argumentos (questionáveis, é verdade) no sentido de manutenção das regras já acordadas entre o Fisco e os contribuintes, possibilitando, dessa forma, a gestação de gigantesco contencioso que poderia ser facilmente evitado a partir de edição de decreto legislativo regulamentador das relações decorrentes do texto inicialmente sancionado ou pela edição de lei específica acerca do importante ponto.

Ao que tudo indica, a solução mais adequada, à luz do ordenamento jurídico vigente, seria a determinação administrativa de revisão de ofício dos lançamentos que fundamentaram a opção pelo PRR, de forma a excluir as multas e encargos dos contribuintes que consolidaram suas dívidas com o Funrural antes da deliberação do Congresso Nacional, ou melhor, antes da sanção presidencial do projeto sem os vetos, da forma como preconizada pela Constituição.

Esperemos pelo bom senso.

Autores

  • é procurador do Distrito Federal, advogado, mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG), especialista em Gestão do Agronegócio pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), professor do Iesb e secretário-geral da Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB-DF.

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