Senso incomum

Assim como nos AAs, sugiro a Jusvoa (Juristas Voluntaristas Anônimos)

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12 de abril de 2018, 8h00

Spacca
Umberto Eco trabalha o tema da interpretação com extrema maestria. Ele mesmo teve uma fase em que achava que as interpretações dos textos literários deveriam ser mais abertas. Só que, em um segundo momento, percebeu que a gandaia estava formada. É o que ele chamou de superinterpretação. Por exemplo, André Karam Trindade, no texto Pinóquio e a Lei (aqui), mostra as interpretações absurdas de Pinóquio. E Umberto Eco denuncia a superinterpretação sobre a Divina Comédia, onde dizem que haveria símbolos da Rosa Cruz.

No Direito, ocorre coisa semelhante. Do positivismo legalista partiu-se para as teorias ou escolas voluntaristas, conforme é fácil perceber no final do século XIX e início do século XX. Ocorreu uma corrida do ouro da interpretação. Contra a amarra do texto jurídico, o voluntarismo do intérprete. Essa temática atravessou o século XX e chegou ao século XXI com diversas teses, teorias e posturas tentando controlar essa “vontade do poder” institucionalizada pelo pessimismo moral de Hans Kelsen em seu oitavo capítulo da Teoria Pura do Direito. Ali, ele não prescrevia, apenas dizia: juiz faz ato de vontade; faz política jurídica. Bom, contra isso, mais de uma dezena de teorias buscaram controlar essa “vontade”.

No Brasil, tudo chega tarde. Depois da Constituição, teses como o neoconstitucionalismo na sua versão radical-chique-ponderadora chegaram para fincar raízes. E o grito de guerra foi e é: o juiz boca da lei morreu; agora é o juiz dos princípios. E lá começou a fábrica de princípios. Qualquer coisa virou princípio. É a era do pamprincipiologismo.

Nestas três décadas, na medida em que o tempo foi passando, o grau do voluntarismo judicial foi aumentando dia a dia. As faculdades foram e são lenientes com a Teoria do Direito e com o Direito Constitucional. Parcela considerável da doutrina não doutrina, tendo deixando para a jurisprudência a definição dos sentidos da lei e da Constituição. Isso é fato. Cursinhos de preparação se especializaram em treinar candidatos, aproveitando-se do fato de os concursos terem sido transformados em quiz shows. Pergunta-se o que se ensina e para o qual se treina, e treina-se para responder às perguntas que são feitas na mesma linha do que vem sendo “ensinado”. Resultado: institucionalizou-se a tese de que o Direito é o que os tribunais dizem que é.

Resultado: Ignoram-se textos legais. Limites textuais nada valem. Pior: quando interessa, o texto é tudo; quando não interessa, o texto vale nada. Um dos discursos que mais está em voga é que o Supremo (e o Judiciário em geral) deve atender ao clamor das ruas (esquece-se que isso nada mais é do que repetir um velho dualismo metodológico do século XIX). Diz-se que se deve atender ao sentimento do povo, como se existisse um aparelho para medir o que o povo está sentindo. Um “povômetro”.

Ensinar Direito Constitucional, hoje, é um autêntico exercício de subversão. Falar do estrito cumprimento da Constituição, hoje, é correr o risco de ser processado por obstrução da Justiça e, se for um grupo de pesquisa, por organização epistêmico-criminosa. Sim, o professor de Direito Constitucional que ensina Direito Constitucional sem os malabarismos morais próprios do voluntarismo é um subversivo.

Voltando à superinterpretação, também na literatura há limites. O fato de Pinóquio ser filho de carpinteiro não dá o direito a que um literato, de forma voluntarista (espécie de Escola Literária Livre), dizer que a estorinha é uma metáfora de Jesus, que também era filho de carpinteiro… Do mesmo modo, não há como um professor de literatura dizer que Capitu era transexual. O limite da interpretação é se Capitu traiu ou não Bentinho. Já no Direito, é possível dizer qualquer coisa, desde que tenha poder.

Parece que Umberto Eco escreveu a frase a seguir para o Direito brasileiro. Esculpido em carrara. Leiam:

Frequentemente os textos dizem mais do que o que seus autores pretendiam dizer, mas menos do que muitos leitores incontinentes gostariam que eles dissessem".

Talvez precisemos de uma desintoxicação para perder esse vício de decidir de forma voluntarista, encerrando um ciclo de superinterpretação deletério. Uma solução pode ser a criação de uma associação tipo Alcoólicos Anônimos (AAs). No Direito, seria algo como Jusvoa – Juristas Voluntaristas Anônimos. Cinco anos de tratamento é o recomendado. A cada dia que o anônimo intérprete realista-voluntarista resistir, fará um discurso como nos AAs e dirá: “Mais um dia em que respeitei a Constituição”, “Mais um dia em que não inverti o ônus da prova”, “Mais um dia em que resisti à tentação de não conhecer um HC”, “Mais um dia em que não disse que prova é questão de fé”, “Mais um dia em que resisti ao canto da sereia de substituir o Direito por minha opinião pessoal”. E todos farão uma oração e imposição das mãos.

Sim, cinco anos de abstinência. Nada de voluntarismos. Nada de ativismo. Nem uma gota de superinterpretação. Cinco anos de literalidade explícita. Radical. Se alguém cair em tentação, o castigo será ler as obras completas de Antônio Scalia, o originalista norte-americano da cepa. Pois não gostam do common law? Não gostam de precedentes? Não gostam de colegialidade? Não querem que o nosso Direito fale inglês? Não será, por certo, o melhor dos mundos esse tratamento radical. Mas, com certeza, não ficaremos pior do que estamos. Por isso, o tratamento de choque.

E, ao final do quinto ano, os Voluntaristas Anônimos se submeterão a um teste. Deverão interpretar um artigo de lei. Se não gostarem da lei e não fizerem jurisdição constitucional para afastá-la, voltarão para o tratamento. Se alguém disser: essa lei não corresponde aos anseios da sociedade, pronto: mais cinco anos de tratamento. Até aprender que não se faz superinterpretação nem hipointerpretação no Direito. O país agradecerá.

O voluntarismo e coisas do gênero estão acabando com o Direito. Se já não acabaram. Só um tratamento de choque pode curar a doença.

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