Direito Comparado

Marcelo Cattoni e a proposta de renovação da Teoria Constitucional brasileira

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

11 de abril de 2018, 17h53

Spacca
No dia 29 de novembro de 2017, na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, participei do lançamento do livro baseado na tese de titularidade do professor Marcelo Cattoni, cuja defesa havia ocorrido em março de 2017, perante ilustre banca examinadora composta dos professores Misabel Derzi (UFMG), Gilberto Bercovici (USP), Luís Roberto Barroso (Uerj) e Marcelo Neves (UnB), como noticiado na ConJur. A sessão de lançamento foi muito peculiar. O autor foi submetido a uma espécie de “nova banca”, desta vez formada por seus colegas de magistério (alguns deles também ex-orientandos), como Adamo Dias Alves, Bernardo Gonçalves Fernandes, David Francisco Lopes Gomes, Emilio Peluso Neder Meyer, Maria Fernanda Salcedo Repolês e Thomas da Rosa de Bustamante. Eles dedicaram-se a examinar e a debater com Marcelo Cattoni alguns aspectos de sua tese, intitulada Contribuições para uma Teoria Crítica da Constituição (Belo Horizonte: Arraes, 2017).

Para além da satisfação de assistir a um modo diferentemente rico de se lançar uma obra jurídica, a cerimônia, que foi presidida pelo professor adjunto Fabrício Bertini Pasquot Polido, evocou na assistência a memória daqueles simpósios acadêmicos que se marcavam pela profundidade e pela verticalização dos temas submetidos ao escrutínio de especialistas. De certo modo, desde o final dos anos 1990, esse tipo de encontro intelectual vem sendo substituído por modelos baseados em exposições não dialogadas e de caráter “acessível” (seja lá o que isso quer realmente significar em uma universidade). A sensação de se recuperar esse sentido (e essa função) dos simpósios e painéis não foi desprezível.

Marcelo Cattoni representa a geração dos que ingressaram nas faculdades de Direito no início da década de 1990. Essa é minha geração. Haver Cattoni alcançado a titularidade na prestigiosa UFMG é motivo de celebração para todos nós, filhos da era pós-Constituição de 1988.

Nossa geração recebeu os últimos influxos de um período de profunda descrença no Direito, na lei e nas teorias gerais. Como acreditar no Direito após 20 anos de regime militar? O que esperar de leis aprovadas por um Congresso Nacional biônico? Para que investir em conceitos, categorias e sistemas quando a “vontade do poder” sobrepunha-se a essas tentativas vãs de enclausurar a realidade em acordos semânticos e fórmulas autárquicas? A resistência ao regime (e suas derivações), particularmente à esquerda do espectro político, estava na raiz dessa nova forma de se pensar o Direito.

30 anos após a vigência da Constituição de 1988, os excessos daquela visão cética sobre sistemas, conceitos e teorias gerais redundaram naquilo que Marcelo Cattoni denomina de “realismo particularista” (p.81), cuja nota sensível é a apropriação do elemento jurídico pelo elemento político e por técnicas consequencialistas, reducionistas ou mesmo tocadas por um discurso de benevolentia, que conjuga um conteúdo vagamente pseudocristão com roupagem criptolaicista.

A tese de Marcelo Cattoni, independentemente de sua vinculação ideológica ou de seus marcos teóricos, traz a esperança de que é possível dialogar a partir de acordos semânticos, do pagamento de custos argumentativos pelas escolhas teoréticas, de referenciais extraídos de uma Teoria da Constituição sólida e marcada pela leitura reflexiva dos grandes nomes do constitucionalismo dos últimos 200 anos, particularmente sob a óptica do Direito Comparado. Nesse aspecto, Marcelo Cattoni propõe uma renovação à Teoria Constitucional. E não se trata de um renovar vazio, um renovar performático ou alegórico. É o renovar que parte dos fundamentos e propõe a construção de algo respeitável. Ela dialoga de perto com muitos trabalhos que se tem publicado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, por ilustres colegas que se têm mantido fiéis a uma tradição constitucionalista alheia ao neoconstitucionalismo, quando não corajosamente contrária a ele[1].

Nada mais reconfortante, portanto, a um privatista da geração de Marcelo Cattoni, que é identificar tais preocupações e tais contributos a uma luta que o Direito Civil vem travando há algum tempo em prol de seus espaços epistemológicos e em defesa de seu campo deonepistemológico[2].

Na abertura de sua tese, Marcelo Cattoni cita Franz Neumann, em seu clássico capítulo O significado dos direitos fundamentais na Constituição de Weimar: “E quando Kirchheimer, no título da sua obra que se avizinha muito aos valores comunistas, coloca a questão: ‘Weimar… e depois?’, a resposta poderia soar tão somente assim: ainda Weimar!”. Parafraseando-o, aos desafios do Direito (não apenas do Direito Constitucional ou do Direito Civil), uma resposta deve ser pronunciada: ainda Weimar (p.11).

A tese divide-se em cinco capítulos, além de uma introdução e uma conclusão. O capítulo primeiro recupera as origens e a transição do constitucionalismo liberal para o constitucionalismo social em fins do século XIX e à República de Weimar (pp.10-50). O segundo capítulo é dedicado à constituição ontológica e à classificação ontológica das constituições na obra de Loewenstein (p.51-63). O terceiro capítulo retoma Loewenstein e submete-o ao exame crítico, com um diálogo muito interessante com a obra de Marcelo Neves e sua tese A constitucionalização simbólica (p.64-77). O capítulo quatro volta-se para o atualíssimo problema das relações entre Direito e política, cuja grande vítima — ao menos em países que seguiram uma trajetória como a brasileira — talvez tenha sido a Teoria Constitucional (p.78-94). O quinto capítulo (p.95-116), no qual se localiza o core da tese, pode ser assim sintetizado em sua proposta ao leitor:

“O que se pretende mostrar, tendo esse diálogo como pano de fundo, é que a legitimidade deve ser considerada não apenas como conflito do direito positivo, como Müller propõe, mas no direito positivo, ou seja, como ‘tensão constitutiva’ ao direito positivo. Enfim, o caráter conflitivo da constitucionalidade, não como um mero conflito de interesses, como no realismo, ou mesmo do ‘político’, no sentido schmittiano, mas como um conflito com sentido normativo. Uma normatividade cuja concretização é atravessada internamente por uma disputa interpretativa e, portanto, política, sobre a autocompreensão da sociedade, que, não apenas mantém viva a constituição por meio dessa própria disputa sobre seu sentido, mas também traz consigo, permanentemente, o risco de ruptura institucional” (p.95).

Uma das partes da tese de que mais gosto é o exame da obra e do pensamento de dois weimarianos ilustres, Rudolf Smend (orientador e mentor de Konrad Hesse) e Hermann Heller, falecido precocemente e que, se tivesse vivido mais, provavelmente haveria conferido rumos inteiramente novos à Teoria Constitucional: “Como se sabe, Heller morreu muito jovem, de um enfarto fulminante, ironicamente no ano da ascensão do nazismo” (p.39).

Marcelo Cattoni explica que Smend era o defensor de uma “teoria integracionista do Estado” (p.35), sendo certo que para ele “o direito constitucional e a constituição são frutos de uma integração dinâmica destas duas dimensões, entre a realidade político-social e as normas jurídicas”. A Teoria da Constituição e a Teoria do Direito integrariam o rol das “ciências da cultura”, daí ser necessário compreender que “as ciências humanas, as ciências do espírito, são ciências do autoconhecimento e não podem partir, portanto, da distinção sujeito-objeto, típica, no entender de Smend, de outras ciências, as ciências naturais”, em uma formulação crítica à Escola de Viena (p.36). Em Smend, a norma seria contaminada pela alteração do fato social e, recuperando ideias já presentes em Jellinek, “o direito é um direito em movimento, é um direito com vida; e este direito vivo não pode ser reduzido nem ao factual e nem àquela interpretação em abstrato que se faria a partir, simplesmente, do texto das normas jurídicas”. De certa forma, a contemporânea noção de “mutação constitucional” deitaria suas raízes nessa teoria integracionista, conquanto não seja propriamente uma novidade na obra de Jellinek (p.38).

Hermann Heller, um socialdemocrata fiel ao projeto da República de Weimar (assim como Kelsen, como acentua Marcelo Cattoni), dedicou-se a “tratar da constituição em várias monografias”, as quais foram reunidas posteriormente em sua “obra inacabada”, que é a Teoria do Estado (p.38-39). Heller defende, segundo Marcelo Cattoni, uma ideia de paralelismo entre o direito positivo e princípios metajurídicos, o que, “contudo, não significa dizer que Heller pretenda realizar uma leitura moralizante do direito, embora veja nessa conexão entre direito e moral um modo de se lidar com as contingências do poder” (p.40).

A crítica de Heller às concepções de Direito (e de Constituição) de Kelsen e de Carl Schmitt são muito bem demarcadas na tese de Marcelo Cattoni (p.41): o Estado não se confunde com o ordenamento jurídico em sua totalidade (ao contrário do que afirma Kelsen), mas também não se poderia “eliminar da constituição toda a normatividade” (como propunha Schmitt). A busca pelo bem-estar social e pela assunção pelo Estado de funções promocionais no campo social encontraria na Constituição um espaço para se dilatar, mas sem ilusões, “não como forma de reconciliação com a realidade capitalista e sua sociedade de classes”. As melhorias sociais eventuais alcançadas seriam apenas uma etapa no “caminho de transição para o socialismo” (p.43). Disso não resulta, porém, que inexista uma constituição normativa, pois negar tal característica importaria em esvaziá-la de conteúdo jurídico-normativo.

Essa tensão entre normatividade e realidade político social (p.49), segundo Marcelo Cattoni, vai permear as obras dos “grandes weimarianos” (expressão minha) — Heller, Smend, Kelsen e Schmitt (embora este último seja mais um anti-weimariano). Eles todos, contudo, preocupavam-se com os fundamentos primeiros da Teoria da Constituição e com seu estatuto epistemológico, evitando confundi-la com a Teoria do Estado, ainda que, especialmente Schmitt, se pudesse chegar a resultados muito próximos disso.

A recuperação desse debate metodológico, não consequencialista e insulado de uma perspectiva (cada vez mais popular) anglo-saxã da Teoria da Constituição é uma espécie de norte metadogmático da tese de Marcelo Cattoni e que, em alguma medida, já se encontrava seminalmente em textos como a tese de doutorado de Martônio Mont’Alverne Barreto Lima, defendida na Universidade de Francoforte-sobre-o-Meno em 1998[3].

Como privatista, tenho de me escusar por me aventurar nas águas profundas da Teoria Constitucional, que exigem uma perícia intelectual de que não disponho. A tese de Marcelo Cattoni, para além de suas qualidades de fundo, possui o mérito da clareza e da elegância de estilo, o que tornará possível a compreensão de diversas das questões nela tratadas mesmo a um leitor não especializado. Esse mérito permitirá uma difusão maior dessa tese, que é, sem dúvida, um presente que Marcelo Cattoni ofereceu à cultura jurídica, à Teoria da Constituição e ao Direito Constitucional Comparado, esta última disciplina que tanto deve a Pinto Ferreira e a Ivo Dantas, dois expoentes da Faculdade de Direito do Recife.


[1] JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. O direito ontem e hoje: crítica ao neopositivismo constitucional e à insuficiência dos direitos humanos. Revista do Advogado, v. 28, n. 99, p.7‑14, set., 2008; SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do Direito…cit.; RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: Parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 279; Die dirigierende Verfassung und die Krise der Verfassungslehre am Beispiel Brasiliens. Verfassung und Recht in Übersee -VRÜ, v.37, p.286-330, 2004. p.290-293).; AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Constitucionalismo e neoconstitucionalismo: O constitucionalismo. In. FRANCISCO, José Carlos (Coord). Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional: do passivismo ao ativismo judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2012; ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do direito” e o “direito da ciência”. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, v. 6, n. 23, p. 9-30, out./dez. 2008. De minha autoria: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Estatuto epistemológico do Direito Civil contemporâneo na tradição de civil law em face do neoconstitucionalismo e dos princípios. O Direito (Lisboa), v. 143, p. 43-66, 2011. p.56-63.
[2] A expressão “deonepistemológico” é um neologismo criado por Chris Thomae, assim explicável: “Certamente, elas empregam regras de lógica formal completamente diferentes, usando operadores como ‘pode’, ‘tem de’ e ‘deve’ ao criar reações lógicas entre ‘direitos’ e ‘deveres’, ‘privilégios’ e ‘nenhum direito’, ‘poderes’ e ‘responsabilidades’, ‘imunidades’ e ‘deficiências’, recorrendo amiúde a elementos do discurso performativo. É por essa razão que o conceito de deontologia foi criado, denotando uma teoria fiel às normas (δέον) ao se mostrar um dever ou obrigação legítima (termos estes utilizados, aqui, em sentido amplo). Até o momento, há duas importantes diferenciações inevitáveis para a metafísica: a busca ontológica sobre a existência é (i) distinta e independente da teoria epistemológica do conhecimento humano e (ii) distinta e independente do sujeito deontológico que acata as normas. Na referência a estas duas últimas diferenciações, porém, o conhecimento sobre a obediência às normas, curiosamente, nunca foi esclarecido. Certo é que temas importantes sobre a disciplina da deonepistemologia tinham sido propostos anteriormente, como no projeto inacabado de ‘Crítica de Razão Prática’, de Immanuel Kant, ou no ceticismo das regras, formulado por Ludwig Wittgenstein e Saul Kripke” (THOMALE, Chris. Tradução por Patrícia Cândido Alves Ferreira. Cuius Regnum eius Iudicium: emancipando o discurso jurídico privado em face dos direitos humanos. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 13. ano 4. p. 391-418. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2017. p.33).
[3] LIMA, Martônio Monte’Alverne Barreto. Justiz und Staat in Brasilien – Zur historischen Entwicklung der Justizfunktion in Brasilien: Kolonialgerichtsbarkeit in Bahia, Richterschaft im Kaiserreich und Verfassungsgerichtsbarkeit in der Republik. Frankfurt/M: Peter Lang Verlag, 1999.

Autores

  • é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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