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Fisco não pode fechar empresas com dívidas tributárias elevadas (parte 2)

Autor

  • Igor Mauler Santiago

    é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

11 de abril de 2018, 8h00

Spacca
Na última coluna, demonstramos que, exceto para a indústria de cigarros (precedente American Virginia), a vedação às sanções políticas segue impedindo o fechamento de empresas em razão da existência de dívidas fiscais. Ultimamente, porém, os Fiscos e alguns autores têm invocado a defesa da concorrência para predicar a superação desse entendimento. Apoiam-se para tanto no artigo 146-A da Constituição, segundo o qual “lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo”.

É ao estudo desse dispositivo, inserido pela Emenda 42/2003, e dos projetos de lei complementar voltados à sua regulamentação (161/2013 e 284/2014, ambos do Senado) que se dedicarão esta e as próximas colunas, ao fim das quais concluiremos que segue íntegro o estatuto dos contribuintes, mesmo daqueles vulgarmente e de forma nada precisa tachados de devedores contumazes.

Nenhuma luz poderá ser buscada na exposição de motivos da PEC 41/2003 ou das 446 emendas parlamentares que lhe foram apostas, ou ainda nos anais de sua discussão parlamentar, visto que nada dizem quanto à autoria e ao objetivo visado com o artigo 146-A (a mens legislatoris, que não é decisiva, mas ajuda a extrair a mens legis). Segundo o criterioso registro de José Luís Ribeiro Brazuna[1], o comando surgiu durante a discussão da Emenda Aglutinativa Substitutiva Geral de Plenário 27, aliás proposta sem nenhuma justificativa pelas lideranças de seis partidos.

No debate, que entrou pela madrugada, o que se vê é a indignação dos deputados com a pressão para votar-se um texto que sequer conheciam. Após denunciar que o pedido de preferência para a votação foi apresentado às 21h, mas que o substitutivo o foi somente às 23h05min, o deputado José Carlos Aleluia é enfático: “Como se pode pedir preferência para algo desconhecido? Isso é irracional. (…) Estamos atentando contra todos os princípios para o bom funcionamento de um parlamento…”. A deputada Juíza Denise Frossard reforça a perplexidade geral: “Sr. Presidente, gostaria de obter um esclarecimento: este texto que tenho em mãos é o que vou votar?”. Ao que o deputado Antonio Carlos Mendes Thame emenda: “Nós nem o texto temos. Fomos procurá-lo em diversos lugares e não o encontramos”.

Para o deputado Eduardo Paes, “o que vemos (…) é uma cena triste, lamentável e absurda: a esta hora da madrugada — faltam 10 minutos para 1 hora — estamos discutindo (…), nas coxas, uma reforma que mexe com a vida de todos os cidadãos brasileiros…”. E, na única menção àquilo que veio a tornar-se o artigo 146-A, o deputado José Carlos Aleluia assevera: “Este projeto pretende regular a concorrência por meio de discriminação tributária, e nós, do PFL, não podemos concordar com essa prática”.

E foi assim, sem debates sobre o artigo 146-A (salvo o protesto isolado há pouco referido), que a PEC foi votada em segundo turno na Câmara e em dois turnos no Senado. Daí que a doutrina tenha ficado desnorteada quanto ao seu alcance, havendo propostas interpretativas para todos os gostos:

  • Sacha Calmon Navarro Coêlho[2] afirma tratar-se de norma destinada exclusivamente a combater a concorrência tributária entre entes políticos (guerra fiscal), objetivo que Hamilton Dias de Souza[3] exclui por completo do seu âmbito, a seu ver limitado à promoção da livre concorrência entre particulares. Luís Eduardo Schoueri[4] e Luiz Augusto da Cunha Pereira[5] — para nós com razão, pois a guerra fiscal consiste na outorga de vantagens tributárias a particulares, que com isso aumentam os seus lucros e/ou a sua participação no mercado — vislumbram ambos os objetivos no comando;
  • Luís Eduardo Schoueri[6], Rodrigo Maito da Silveira[7] e Hamilton Dias de Souza[8] restringem-na à correção de desequilíbrios concorrenciais de origem tributária (este último limitando-a ademais à função de submeter todos os agentes de um dado setor ao efetivo cumprimento de suas obrigações fiscais), enquanto Vinícius Alberto Rossi Nogueira[9] — com quem concordamos, até pela dificuldade prática de uma tal distinção — admite o enfrentamento, por meio da lei complementar prevista no artigo 146-A, também de distúrbios concorrenciais causados por outras falhas de mercado;
  • José Luís Ribeiro Brazuna[10] restringe o seu alcance à conformação da obrigação tributária principal, ao passo que Luís Eduardo Schoueri[11], Vinícius Alberto Rossi Nogueira[12], Rodrigo Maito da Silveira[13] e Luiz Augusto da Cunha Pereira[14] veem nele também a autorização para a imposição de obrigações acessórias — o que a nosso ver faz sentido, porque uma alteração no tributo pode exigir novas declarações por parte do contribuinte.

Questão da maior importância concerne à natureza do artigo 146-A. Para alguns estudiosos, o comando teria incluído ou reforçado o princípio da neutralidade tributária na Constituição[15]. Para outros, com quem concordamos, trata-se de uma norma de competência (autorização ao Congresso para editar lei complementar com um dado conteúdo), e não de um princípio jurídico, do que decorre a sua inaptidão para inspirar atos administrativos alegadamente voltados à defesa da concorrência ou para guiar os juízos do aplicador quanto à validade e à interpretação das regras tributárias. Nesse sentido vão Vinícius Alberto Rossi Nogueira[16], Diego Bonfim[17] e Luís Eduardo Schoeri[18].

Vale anotar, en passant, que o fato de a Constituição contemplar a livre concorrência (artigos 170, inciso IV, e outros) não convalida, por óbvio, medidas arbitrárias que tenham por objetivo real ou suposto a sua proteção. Com efeito, tais medidas esbarrariam em outras normas constitucionais (regras, princípios ou postulados) que determinariam a sua invalidade. Como lembra Luís Eduardo Schoueri[19], “o isolamento de um princípio, como o da livre concorrência, para, a partir daí, averiguarem-se as discriminações que este legitimaria não deve levar o jurista a entender que toda discriminação que encontre uma explicação baseada naquele princípio encontra-se, por tal motivo, amparada constitucionalmente”.

Na análise do tema, é preciso não perder de vista a advertência de Hugo de Brito Machado Segundo[20], para quem “a determinação constitucional de preservação da livre concorrência pode vir a ser (indevidamente) utilizada como uma nova vestimenta para um velho (e recorrente) problema: a invocação das razões de Estado para justificar a cobrança de tributos, desta vez com aparência de legitimidade maior. O indigitado princípio passaria a ocupar (e já está fazendo isso) lugar antes preenchido pela prevalência do interesse público e pela solidariedade”.

Nosso último ponto de hoje concerne à função da lei complementar prevista no artigo 146-A. Além de instituir tributos (empréstimo compulsório, imposto sobre grandes fortunas, impostos e contribuições securitárias residuais), a lei complementar recebeu três missões do constituinte originário nesse campo: dispor sobre conflitos de competência (artigo 146, inciso I), regular as limitações ao poder de tributar (inciso II) e estabelecer normas gerais de Direito Tributário (inciso III).

É lógico que a lei complementar, que tem caráter nacional, sempre pressupõe a existência das leis instituidoras dos tributos, a cargo dos diversos entes federados. Contudo, a sua relação com esses diplomas varia segundo o caso. Nos incisos I e II, tem-se a atuação direta da lei complementar, fulminando a lei tributária que por qualquer forma se distancie dos seus termos (ou melhor, anulando-a naquilo em que dela se diferencie). A seu turno, o inciso III alude ao campo da competência concorrente, onde se permitem tanto a suplementação quanto a sub-implementação (um Estado pode, por exemplo, definir que o seu ITCMD submete-se a decadência trienal)[21].

E a verdade é que, mesmo no campo das normas gerais, há vários casos de incidência exclusiva da lei complementar, bastando considerar que não seria legítima uma definição local de tributos ou de suas espécies (inciso III, alínea a) e que o Simples Nacional (inciso III, alínea d, e parágrafo único) deixa pouquíssima margem de decisão aos entes federados — caso da imposição de sublimite para o ICMS (Lei Complementar 123/2006, artigo 19).

Pensamos que a lei complementar prevista no artigo 146-A tem uma quarta função, não se reconduzindo a nenhuma das três definidas no artigo precedente (ou quinta função, se considerarmos a de instituir certos tributos). Dos incisos I e II claramente não há cogitar. Tampouco se trata de norma geral, passível de suplementação pelos entes subnacionais, seja à vista do critério topográfico — se assim fosse, ter-se-ia inserido mais uma alínea no inciso III do artigo 146 —, seja pela razão mais profunda de que, voltando-se contra desequilíbrios ligados a tributos locais (pois para os federais basta lei ordinária, como resulta da parte final do dispositivo), o remédio não poderia ficar nem mesmo em parte nas mãos de Estados e Municípios, sob pena de ineficácia ou mesmo de manipulação (guerra fiscal de segundo nível, agora fundada em medidas contra alegadas quebras de concorrência).

A objeção de que os entes políticos ficariam jungidos ao teor da lei complementar já se provou inócua em matéria de conflitos federativos de fundo tributário. Ficamos, assim, com a primeira das quatro leituras possíveis do art. 146-A listadas por José Luís Ribeiro Brazuna[22]:

  • “O Congresso Nacional poderá estabelecer critérios especiais relativos à cobrança de todos os tributos. Tratando-se de tributos de competência de Estados, Distrito Federal e Municípios, deverá utilizar lei complementar e, para os tributos da União, lei ordinária”;
  • “Lei complementar dos Estados, Distrito Federal ou Municípios poderá estabelecer critérios especiais de tributação com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo de a União, mediante lei ordinária, fazer o mesmo com tributos de sua competência”;
  • “O Congresso Nacional poderá, mediante lei complementar, estabelecer parâmetros para Estados, Distrito Federal e Municípios fixarem por leis próprias os critérios especiais de tributação para prevenir desequilíbrios da concorrência, o que também poderá ser feito pela União, por meio de lei ordinária e independentemente da edição da lei complementar”;
  • “Por meio de lei complementar, o Congresso Nacional poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, apenas quanto aos tributos de competência da União, que continuará, por meio de lei ordinária, a poder utilizar outros instrumentos preventivos de defesa da livre concorrência”.

Estamos, nesse particular, na companhia de Vinícius Alberto Rossi Nogueira[23], para quem o artigo 146-A mitiga a autonomia dos entes federados em prol da própria federação, já que um dos abalos mais frequentes e graves à livre concorrência tributária é justamente a guerra fiscal. E divergimos de Rodrigo Maito da Silveira[24], Diego Bonfim[25] e Luiz Augusto da Cunha Pereira[26], que se inclinam pela terceira interpretação, bem como do próprio José Luís Ribeiro Brazuna[27], que opta pela quarta — que, mais do que inócua, por deixar de fora os entes onde os maiores problemas acontecem, chega a ser prejudicial à livre concorrência no âmbito federal, por exigir lei complementar onde hoje basta lei ordinária.

Importante registrar, porém, que mesmo os estudiosos que adotam a terceira tese reconhecem a imprescindibilidade de lei complementar prévia para a validação dos diplomas estaduais e municipais introdutores dos regimes especiais de tributação[28] — o que basta para inviabilizar qualquer iniciativa local nesse sentido no presente momento.

Tal exigência, embora excepcional e aparentemente contrária ao artigo 24, parágrafo 3º, da Constituição[29] (lembre-se que tais autores qualificam a lei complementar como de normas gerais), encontra respaldo na jurisprudência do STF, como se vê no sempre lembrado Recurso Extraordinário 140.887/RJ (Pleno, relator ministro Moreira Alves, DJ 14/5/1993), em que a corte invalidou o Adicional Estadual do Imposto de Renda face ao seu enorme potencial para a geração de conflitos de competência.

Nas próximas colunas analisaremos o conteúdo possível da lei complementar prevista no artigo 146-A da Constituição.


[1] Defesa da Concorrência e Tributação à Luz do Artigo 146-A da Constituição. São Paulo: IBDT e Quartier Latin, 2009, p. 57-59.
[2] Curso de Direito Tributário Brasileiro. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 99-100.
[3] Critérios Especiais de Tributação para Prevenir Desequilíbrios da Concorrência – Reflexões para a Regulação e Aplicação do art. 146-A da Constituição Federal. In A Intervenção do Estado no Domínio Econômico: Condições e Limites – Homenagem ao Prof. Ney Prado. Coord. Ives Gandra da Silva Martins e Samantha Ribeiro Meyer-Pflug. São Paulo: LTr, 2011 p. 385-400.
[4] Livre Concorrência e Tributação. In Grandes Questões Atuais do Direito Tributário. Vol. 11. Coord. Valdir de Oliveira Rocha. São Paulo: Dialética, 2006, p. 268-270.
[5] A Tributação, a Ordem Econômica e o Artigo 146-A da Constituição Federal de 1988. Dissertação de mestrado apresentada às Faculdades Milton Campos, 2011, p. 112-121.
[6] Op. cit., p. 267.
[7] Tributação e Livre Concorrência. São Paulo: IBDT e Quartier Latin, 2011, p. 108.
[8] Op. cit.
[9] Direito Tributário e Livre Concorrência: Da Interpretação e Aplicação do Artigo 146-A da Constituição Federal. Dissertação de mestrado apresentada à USP, 2014, p. 90-91.
[10] Op. cit., p. 140.
[11] Op. cit., p. 268.
[12] Op. cit., p. 89.
[13] Op. cit., p. 110.
[14] Op. cit., p. 110.
[15] Daniel Giotti de Paula. A Constitucionalização da Neutralidade Concorrencial dos Tributos. In Revista Dialética de Direito Tributário vol. 153. São Paulo: Dialética, junho de 2008, p. 13-28; José Luís Ribeiro Brazuna, op. cit., p. 144-146; Luiz Augusto da Cunha Pereira, op. cit., p. 72; Hamilton Dias de Souza, op. cit.
[16] Op. cit., p. 64.
[17] Tributação & Livre Concorrência. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 186.
[18] Op. cit., p. 255 e 265.
[19] Op. cit., p. 251.
[20] Tributação e Livre Concorrência. In Princípios e Limites da Tributação 2 – Os Princípios da Ordem Econômica e a Tributação. Coord. Roberto Ferraz. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 400.
[21] Reitere-se que a possibilidade de suplementação pelos municípios decorre do artigo 30, I e II, da Carta — aos quais se junta, tratando-se de matéria tributária, o inciso III.
[22] Op. Cit., p. 148-149.
[23] Op. cit., p. 74.
[24] Op. cit, p. 108.
[25] Op. cit., p. 189.
[26] Op. cit., p. 107.
[27] Op. cit., p. 165-168.
[28] Roberto Abdenur. Regulamentação do art. 146-A: como evitar a ineficácia. In http://www.etco.org.br/noticias/etco-informa/regulamentacao-do-artigo-146-a-como-evitar-a-ineficacia/; Luiz Augusto da Cunha Pereira, op. cit., p. 109; Hamilton Dias de Souza, op. cit.
[29] Art. 24, § 3º. Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.

Autores

  • Brave

    é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

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