Direito Civil Atual

Códigos são atualizados para responsabilizar envolvidos em incêndio

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9 de abril de 2018, 17h37

ConJur
O incêndio ocorrido na boate Kiss em 2013, que vitimou 242 pessoas e lesionou mais de 600, engendrou uma série de discussões sobre as regras jurídicas, vigentes no Brasil, destinadas à prevenção e ao combate de tragédias, culminando, em 30 de março de 2017, com a edição da Lei 13.425, que iniciou sua vigência 180 dias após, ou seja, recentemente. Diante da ocorrência de incêndio ou desastre, a responsabilidade civil[1] do proprietário, ou gestor, do estabelecimento, edificação, de comércio ou de serviços, e das áreas de reunião de público, será apurada com base nos códigos Civil e de Defesa do Consumidor, com finco neste novel diploma[2]. Restaram também contempladas importantes obrigações para os profissionais das áreas de Engenharia e de Arquitetura, assim como para os agentes públicos.

Torna-se, a priori, importante delimitar o campo de incidência da dita lei, uma vez que abrange tanto instalações físicas, que recebam pessoas mediante remuneração, quanto os locais de acesso gratuito ao público. Crucial ressaltar a sua aplicação em face das áreas abertas de grande concentração e circulação de pessoas, competindo aos municípios editar normas especiais, respeitando a legislação estadual pertinente ao tema. De acordo com o seu artigo 2º, parágrafo 1º, toda e qualquer estrutura e área utilizadas para a aglomeração de sujeitos, cobertas e cercadas, ou não, com ocupação simultânea potencial igual ou superior a 100 pessoas, deve cumprir os ditames previstos. Prioriza-se, além do aspecto quantitativo, a condição de maior fragilidade de certos indivíduos que sejam recebidos naquelas estruturas físicas, obrigando-as ao cumprimento das nomas jurídicas, mesmo que tenham capacidade de receber um número menor de participantes, desde que sejam idosos, crianças ou pessoas com dificuldade de locomoção. Exige-se também a sua observância para os locais onde exista grande quantidade de material de alta inflamabilidade e quando se tratar do patrimônio cultural local ou regional.

Toda e qualquer construção, instalação, reforma, ocupação e uso de instalações físicas, como é cediço, deverá passar pelo prévio crivo do município onde esteja localizada a edificação, somente devendo ser concedido o alvará de licença ou autorização, se atendidos os requisitos delineados pelo artigo 4º da lei. A primeira imposição consiste na obediência à legislação estadual e outras normas especiais sobre a prevenção dos citados eventos nefastos. O segundo pressuposto, de inquebrantável relevância, corresponde à existência de condições de acesso para operações de socorro e evacuação; o quarto aspecto versa sobre a prioridade para o uso de materiais de construção com baixa inflamabilidade e de sistemas preventivos de aspersão automática de combate a incêndio. A derradeira exigência refere-se à observância das determinações fixadas no laudo, ou documento similar, expedido pelo Corpo de Bombeiros. Outros requisitos poderão ser requeridos pelo poder público municipal, considerando-se a capacidade e a estrutura física; o tipo de atividade desenvolvida no local e em sua vizinhança; e os riscos à incolumidade física das pessoas.

O Corpo de Bombeiros desempenhará importante papel para se evitar que situações trágicas aconteçam[3], competindo-lhe a emissão do dito laudo, sem prejuízo das prerrogativas municipais no controle, parcelamento e uso do solo, e das atribuições dos profissionais responsáveis pelos respectivos projetos. Note-se que, de acordo com o parágrafo 4º do artigo 2º, a validade do alvará expedido ficará condicionada ao prazo de vigência do documento de avaliação emitido pelo órgão militar. Poderá ainda este exigir a existência de bombeiros civis, a fixação do seu quantitativo no local vistoriado e a presença de funcionários treinados para agir em situações de emergência, certificados por cursos oficialmente reconhecidos. Dentre as suas atividades de fiscalização encontra-se a aplicação de advertência, multa, interdição e embargo, na forma da legislação estadual pertinente. 

As obrigações do poder público municipal e do Corpo de Bombeiros não se limitam tão somente à fase de emissão do alvará pugnado pelo interessado, espraiando-se para etapas posteriores, ordenando a lei fiscalizações periódicas e constatadas irregularidades, a cominação das sanções administrativas cabíveis. Outrossim, ambos manterão disponíveis, na rede mundial de computadores, informações completas sobre a tramitação e a concessão de todos os alvarás pleiteados, bem como dados acerca de incêndios ocorridos no país em áreas urbanas.

O funcionamento de estabelecimentos comerciais somente será admitido se dispuser de projeto destinando a evitar e a debelar incêndio e desastre, a ser elaborado por engenheiros e arquitetos competentes, constituindo dever legal dos órgãos de fiscalização destes exigir a apresentação desse documento. Atente-se que os cursos universitários e tecnológicos nas mencionadas áreas terão que incluir, coercitivamente, disciplinas sobre o tema. Os fornecedores, ainda que sejam microempresas, são obrigados a respeitar o direito do consumidor à informação[4] e à segurança, disponibilizando, no seu sítio eletrônico e na entrada do estabelecimento, o alvará concedido e demais documentos sobre o seu funcionamento. A capacidade máxima de pessoas também é outro dado essencial a ser registrado na parte externa da edificação, para que os usuários tenham conhecimento sobre eventual superlotação e exerçam a opção de escolha de outro espaço, podendo também denunciar os que estejam descumprindo a legislação. O artigo 39 da Lei 8.078/90 teve acrescido o inciso XIV, definindo, como prática abusiva, a permissão do ingresso de um número maior de consumidores que o fixado, como máximo, pela autoridade administrativa, qualificando tal ato como crime, com base no novo parágrafo 2º do artigo 65.

Importantes obrigações foram consagradas para o poder público, Corpo de Bombeiros, proprietários ou gestores de espaços abertos à população, mediante entrada gratuita ou não, e para os engenheiros e arquitetos e seus respectivos órgãos fiscalizatórios. Nessa senda, os dispositivos do CC/2002 e do CDC, que disciplinam a responsabilidade civil, devem ser interpretados e aplicados em consonância com as vigentes disposições referentes aos deveres legais sobre prevenção e combate a incêndio e desastre. No entanto, mais normas não intensificarão a proteção dos brasileiros se não tiverem a efetividade necessária e almejada, razão pela qual é preciso que haja o engajamento de órgãos públicos, entidades e, principalmente, da sociedade civil na difícil tarefa de consecução de eventos e demais atividades, respeitando-se a dignidade dos presentes e preservando-se a sua incolumidade.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).


[1] Acerca da responsabilidade civil, conferir: SALEILLES, Raymond. Les accidents de travail et la responsbilité civile. In: Essai d’une théorie objective de la responsabilité délictuelle, 1897. JOSSERAND, Louis. Derecho civil. Evolução da responsabilidade civil. Trad. Raul Lima. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1986. RIPERT, Georges. La règle morale dans les obligations civiles. Paris: LGDJ, 1935. MAZEAUD, Henri; MAZEAUD, León; TUNC, André. Tratado teórico práctico de la responsalidad civil delictual y contractual. Trad. Luis Alcalá-Zamora y Castillo. Buenos Aires: EJEA, 1962, t. 1, v. /2. SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa. São Paulo: Saraiva, 1974; LIMA, Alvino. Culpa e risco. São Paulo, 1960. AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
[2] Dispõe o artigo 1º, II, que são alteradas a seguintes leis: a) Lei 8.078/90; e b) Lei 10.406/02- Código Civil.
[3] Acerca da proteção da vida, da saúde e da segurança dos consumidores, examinar: FALLON, Marc. Les accidents de la consommation et le droit. Bruxelas: Bruylant, 1982, p. 222. ALPA, Guido; BESSONE, Mario. La Responsabilitá del Produttore. 4. ed. Milão: Dott. A Giuffrè, 1999, p. 1. PHILLIPS, Jerry. Products Liability. 5. ed. St. Paul, Minn. West Group, 1998, p. 5. CALVÃO DA SILVA, João. A Responsabilidade Civil do Produtor. Coimbra: Livraria Almedina, 1990, p. 659. CARNEVALI, Ugo. La Responsabilità del Produttore. Milão: Dott. A Giuffrè, 1974, p. 5/6.
[4] Acerca do direito à informação dos consumidores, consultar: OSSOLA, Federico; VALLESPINOS, Carlos Gustavo. La obligación de informar. Córdoba: Advocatus, 2001.KLOEPFER, Michel. Informationsrecht. Munique: Beck, 2002. Derecho justo. Fundamentos de ética jurídica. Trad. Luis Dies-Picazo. Madri: Editorial Civitas S.A, 1985.

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