Embargos Culturais

Lisístrata, a greve do sexo e o Ato Institucional 5

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

8 de abril de 2018, 8h00

Spacca
Arnaldo Godoy [Spacca]Tendo como pretexto um discurso proferido pelo então deputado Márcio Moreira Alves (1936-2009), que denunciou na Câmara a invasão da Universidade de Brasília, a ditadura militar baixou o Ato Institucional 5, em 13 de dezembro de 1968. Seguiu arbítrio, com absoluta centralização dos poderes em uma Junta e nos presidentes subsequentemente apontados pelas Forças Armadas, em absoluto detrimento da expressão política do Congresso Nacional. O estado de exceção então instalado matizou os chamados anos de chumbo, institucionalizando-se a violência contra a cidadania. Tempos de triste memória. Eu era criança, mas me recordo da agonia de meu pai ante a prisão de meu tio. O tio Zequinha era comunista, um subversivo, como então se dizia.

Em seu discurso, Márcio Moreira Alves lembrou passagem de uma comédia de Aristófanes, Lisístrata, que teria assistido em São Paulo. Segundo um jornalista que historiou os fatos, “Moreira Alves voltou à tribuna e sugeriu que, durante as comemorações da semana da pátria, houvesse um boicote às paradas”, acrescentando que o boicote deveria ser também protagonizado pelas moças, namoradas, àquelas que dançavam com cadetes e frequentavam jovens oficiais[1]. Referia-se a uma peça do teatro grego.

Trata-se da peça Lisístrata. No enredo, a estória de uma imaginária ateniense que chefiou uma greve de sexo. O assunto sempre foi tabu. Lisístrata é uma comédia de Aristófanes, poeta cômico que passou a infância na ilha de Égina, e que viveu em Atenas. Exaustas com uma guerra que se alongava, as mulheres das cidades gregas mais atingidas pelos conflitos decidiram agir. Chefiadas pela ateniense Lisístrata, resolveram pôr fim às hostilidades usando de uma tática pouco ortodoxa: uma greve de sexo. A criatividade de Aristófanes não tinha limites. A peça estreou na primavera de 411 a.C. e enfatizava a ideia de que as mulheres poderiam assumir o poder e forçar a conclusão de um tratado de paz, abstendo-se das relações sexuais enquanto a guerra durasse. O enredo insiste na sexualidade como atributo feminino de superlativa importância. É essa a compreensão que se tem da peça, ainda que carregada com uma leitura contemporânea. Há um reducionismo, que de algum modo atenta contra a dignidade humana. Mas a peça foi escrita e encenada. E o que está escrito, está escrito, já o disse Pôncio Pilatos.

Lisístrata principia a peça lamentando que as mulheres demoravam para aparecer na assembleia convocada para discussão de um plano de ação contra a guerra. Reclamou, afirmando que, para outros assuntos, que não temas sérios, suas colegas apareceriam. Lisístrata categoricamente previa ato heroico, com o objetivo de salvar a Grécia da guerra, com o auxílio das demais mulheres. Afirmou que o destino do país estava nas mãos das mulheres gregas, que precisavam se unir. Argumentava que havia um poder que não poderia ser desconsiderado: “O meio é exatamente esse! Se ficarmos em casa, bem pintadas, com vestidos transparentes, deixando ver certos lugares bem depiladinhos, e quando nossos maridos avançarem para nós, loucos para nos agarrar, nós não deixarmos, garanto que eles votarão logo pela paz!”. A estratégia de Lisístrata e de suas companheiras foi bem sucedida, no contexto do enredo de Aristófanes.

Os maridos renunciaram à guerra e voltaram aos lares. Na euforia das comemorações gerais, danças, cantos, um político anunciou definitivamente a paz: “Espartanos, agarrem suas mulheres! Atenienses, segurem as suas! Isso! Os maridos perto das mulheres, as mulheres grudadas nos maridos. Depois de festejar esse fim feliz com danças em honra dos deuses, tratemos de evitar no futuro os mesmos erros que nos deixaram por tanto tempo sem paz!”

As entrelinhas da peça permitem que o leitor contemporâneo identifique o papel da mulher no cenário helênico. A medida encabeçada por Lisístrata, extrema, comprova posição submissa. À mulher seria vedado o direito de opinião, reservado aos homens da cidade. O termo “cidadã” era usado com prudência: identificava apenas a mãe, mulher, filha, irmão do cidadão ateniense e nada mais. Não há como falarmos da mulher ateniense usufruindo direitos reservados aos homens. Nesse sentido, a comédia de Aristófanes é peça de protesto. Como de protesto foi também o discurso de Márcio Moreira Alves. A resposta da ditadura veio em forma de chumbo grosso.

O Ato Institucional 5, de 1968, iniciava-se com referência ao fato de que o Presidente (Arthur da Costa e Silva), após ter ouvido o Conselho de Segurança Nacional, invocava a perturbação da ordem, e a imperiosa necessidade de adoção de medidas que visavam impedir que fossem frustrados “os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranquilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária”. Trata-se de argumento típico e recorrente nessas situações: suspende-se a ordem democrática, em nome da liberdade e da tranquilidade, justificando-se a medida como necessária e imperativa para a manutenção da liberdade, da tranquilidade e dos valores da democracia, não obstante então violada e suprimida.

Facultou-se que o Presidente decretasse o recesso do Poder Legislativo, “em estado de sítio ou fora dele, só voltando (…) a funcionar quando convocados” pelo próprio Presidente; durante o recesso o Presidente teria competência legislativa plena. Permitia-se também que decretasse intervenção nos Estados e nos Municípios, no interesse nacional, e “sem as limitações previstas na Constituição”. Direitos políticos de quaisquer cidadãos poderiam ser suspensos por 10 anos, mandatos eletivos federais, estaduais e municipais poderiam ser cassados. Liberdade vigiada, proibição de frequentar determinados lugares e a fixação de um determinado domicílio eram medidas que poderiam ser impostas, em nome da ordem que se pretendia defender.

O estado de exceção então instalado facultava a suspensão das garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, de inamovibilidade e de estabilidade, existentes em alguns setores do serviço público, a exemplo do Poder Judiciário. Ao Presidente reservava-se a prerrogativa de decretar o estado de sítio e de prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo. A garantia do habeas corpus foi suspensa; o Poder Judiciário estava proibido de apreciar e julgar os atos praticados de acordo com o Ato que se baixava, bem como com seus Atos Complementares.

O Brasil viveu em seguida um tempo de extrema violência institucional, relatado por ampla obra memorialística, de reminiscência história e de investigação, a exemplo do Projeto Brasil Nunca Mais, conduzido pela Arquidiocese de São Paulo, pelo Conselho Mundial de Igrejas, coordenado pelo então Cardeal D. Paulo Evaristo Arns e pelo Reverendo Paul Wright, publicado em 1985. Há também impressionantes relatos pertinentes à perseguição de religiosos católicos, ainda que setores da Igreja Católica tivessem pregado a favor da nova ordem, quando da deposição de João Goulart.

Márcio Moreira Alves e Lisístrata substancializam duas referências a tempos difíceis que nos remetem, respectivamente, ao arbítrio político e à violência de gênero. São duas circunstâncias abomináveis, contra as quais, se realmente acreditamos na democracia e na dignidade da pessoa humana, devemos lutar, todo o tempo.


1 Elio Gaspari, A Ditadura Envergonhada, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 316.

Autores

  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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