Opinião

A legitimidade de atuação de ONGs ambientais na tutela coletiva de direitos

Autor

  • Daniela Garcia Giacobbo

    é advogada e consultora jurídica professora convidada em três cursos de pós graduação — MBAs sobre energia (FGV Energia e Universidade Católica de Petrópolis) com a disciplina Licenciamento Ambiental para o SEB e o Setor de Energia é membro da Comissão de Energia Infraestrutura e Saneamento da OAB-RS e da Comissão de Energia e Transição Energética do IAB. Coautora de 12 livros sobre energia e meio ambiente. Participa de entidades representativas dos setores ambiental e de energia. Foi assessora jurídica no TRF-4 e assessora da Presidência do Ibama.

8 de abril de 2018, 9h58

Diferentemente do que ocorre em outros países, no Brasil, o universo das organizações não governamentais ambientais há pouco começou a ser revelado e, principalmente, a partir de demandas judiciais. Recente decisão proferida no âmbito do Tribunal Regional Federal da 3ª Região[1], em ação civil pública ajuizada pela ONG Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, perante a 25ª Vara Cível Federal de São Paulo, trouxe ao debate os limites de atuação dessas entidades em demandas coletivas para a tutela ambiental.

Na mesma linha da decisão citada, houve o julgamento de uma ACP dita como ajuizada em nome do Rio Doce pela Associação Pachamama, perante a 6ª Vara Cível Federal de Belo Horizonte, na qual a ONG buscava “duvidosa proteção ambiental”, na visão de Vladimir Passos de Freitas[2].

Em ambos os casos, talvez não houvesse dúvidas quanto à legitimidade das entidades para a propositura das ações de tutela ambiental, mas questionáveis eram os limites dos pedidos.

A Lei 7.347/1985 surgiu como uma espécie de regulamentação de ação de responsabilização civil por dano ambiental, que permitiu aos seus autores, inclusive em sede cautelar, buscar a proteção de bens e interesses lesados, ou ameaçados de lesão, impondo aos responsáveis a reparação integral do dano, tendo em vista a indisponibilidade do bem protegido, mediante condenação à obrigação de fazer e/ou não fazer e a indenizar.

Um dos maiores avanços na tutela coletiva de direitos transindividuais — aí incluídos os bens, recursos e serviços ambientais —, advindos da Lei da Ação Civil Pública, foi a legitimidade ativa de entidades civis, como as organizações não governamentais, para a tutela ambiental. Essa lei deu a tais organismos um poder de ação com vista à proteção e à fiscalização do meio ambiente até então apenas imaginável ao Ministério Público e a determinados agentes e instituições públicas, embora desde a Lei 6.938/1981, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, já houvesse uma preocupação do legislador ordinário em aprovar a legitimatio ad causam dessas entidades.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, houve uma ampliação do campo de abrangência da lei para que, por força do disposto no artigo 129, III[3], fosse viabilizada a propositura da ação coletiva para a tutela de “outros interesses difusos”, além da tutela dos patrimônios público e social, deixando de existir a taxatividade então prevista. Posteriormente, as alterações introduzidas pelas leis 11.448/2007 e 13.004/2014 confirmaram o estímulo dado pela Carta Magna às ações coletivas, a qual, no seu artigo 5º, inciso XXI[4], dispõe que as entidades associativas detêm legitimidade para representar judicial e extrajudicialmente os seus filiados.

Todavia, a questão da averiguação da legitimação coletiva dessas entidades ainda é questão controversa na doutrina e na jurisprudência. Tivesse o legislador ordinário introduzido na lei (como constava do anteprojeto da Lei 7.347/1985) a verificação da adequada representação, nos moldes das class actions norte-americanas, além dos quesitos objetivos — limite temporal de um ano para a sua constituição e estar o objeto tutelado circunscrito aos direitos e interesses dos seus filiados —, a tão necessária análise da adequação do representante ao objeto litigioso (ou a sua pertinência temática, na linguagem adotada pelo Supremo Tribunal Federal) não seria ponto ainda discutido nos nossos tribunais e a muitas demandas improváveis seria negado seguimento.

Para muitos autores, a verificação da adequacy of representation seria tarefa do legislador, que, ao estabelecer um rol taxativo de legitimados, previu uma presunção absoluta de que são “representantes adequados”, não cabendo aos magistrados essa avaliação. A legitimação coletiva seria, pois, ope legis[5]. Para outros, como Fredie Didier Jr., é possível e necessário o controle judicial da “representatividade adequada”, não bastando a previsão legal da legitimação, devendo haver um vínculo entre o legitimado e o objeto do processo que o habilite, em determinado caso, para a condução do processo[6].

O acórdão da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, em sede de julgamento de recurso rspecial[7], analisou a adequação da representatividade — em um controle de idoneidade da parte autora — para afastar a legitimatio ad causam de determinada associação civil, pode ser considerado um julgamento paradigmático. O colegiado negou provimento ao recurso especial, mantendo o acórdão que reconheceu que, constatada a finalidade estatutária genérica da associação, em razão falta de pertinência temática, restou afastada a presunção legal de sua legitimidade, com base em precedente jurisprudencial do próprio STJ (AgRg no REsp 901.936/RJ, rel. ministro Luiz Fux). Entendeu a 4ª Turma que é “poder-dever do juiz, na direção do processo, prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da Justiça”, deixando consignado que a inidoneidade pode tirar a legitimidade de ONGs para ingressar com demandas coletivas ambientais.

Algumas conclusões importantes podem ser extraídas do precedente jurisprudencial citado. Em especial, a possibilidade de um controle da idoneidade (ou a adequação da representatividade), mesmo de ofício, para aferir a legitimidade ad causam de uma associação que esteja desbordando dos limites éticos na sua atuação. O que está mais adequado à proposta do CPC de 2015, onde ainda há a distinção entre o exercício regular do direito de ação e o abuso desse direito, este vedado pelos artigos 77 a 81 da Lei 13.105/2015.

Contudo, ainda há muito a ser analisado no universo complexo das ONGs. Mesmo aquelas entidades que notadamente se dedicam à causa ambiental, algumas não revelam a transparência necessária dos seus interesses. O que buscam determinadas ONGs ambientais que, no seu ativismo exacerbado, muitas vezes criam tumulto processual e insegurança jurídica, inclusive quando atuam na condição de amicus curiae? E por que ainda são pouco pesquisadas no meio jurídico?

Tais questões também começam a ser desvendadas pela academia, com o recente estudo feito pela Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP) para o Conselho Nacional de Justiça. Intitulada Ações Coletivas no Brasil: Temas, atores e desafios da tutela coletiva, a pesquisa, que integra a 2ª edição da Série Justiça Pesquisa do CNJ, trouxe constatações importantes acerca do cada vez mais crescente uso de ações coletivas para a proteção de direitos individuais homogêneos no país e sobre os autores das demandas ambientais.

Dentre as tantas conclusões a que os pesquisadores chegaram, algumas merecem destaque, se analisadas conjuntamente com os precedentes jurisprudenciais citados.

Em determinado momento da pesquisa da SBDP, quando feita referência ao protagonismo do Ministério Público no ajuizamento das ações coletivas, o texto do sumário executivo divulgado[8] — que apresentou as linhas gerais e os principais resultados da pesquisa —, ressaltou que “os juízes consideraram as ações movidas pelo MP mais bem fundamentadas do que aquelas movidas pelas associações civis”. Mais adiante, a pesquisa revelou que os magistrados avaliam que a Lei da ACP contribuiu para fortalecer o Ministério Público mais do que as organizações da sociedade civil, complementando no sentido que, “se correta, essa avaliação representa grande revés nas expectativas originais daqueles que pugnaram pela ampliação para causas coletivas” e “impõem como desafio não apenas a melhora da qualidade das ações representadas por entidades civis, como um exame mais acurado das razões pelas quais essa legislação não levou ao esperado fortalecimento dessas associações pelo menos nos marcos da mobilização legal”[9].

A avaliação quanto à percepção sobre a “falta de qualidade nas ações representadas por associações civis” e sobre a falha na legislação de regência é extremamente reveladora, principalmente se relacionada ao desafio de se desvendar os limites éticos que permeiam a atuação de algumas ONGs ambientais.

Teriam falhado o legislador constituinte e o ordinário no objetivo de ampliar o acesso à Justiça a organismos que, embora não sejam legítimos representantes democráticos da sociedade civil (uma vez que os seus membros não são eleitos nem escolhidos pela sociedade), o são de comunidades importantes e, ao que tudo indica, agem na nobre defesa dos bens ambientais, constitucionalmente protegidos? O fato de faltar o nexo causal entre a sua finalidade institucional e a tutela jurisdicional pretendida, ou de terem um estatuto “desmesuradamente genérico”, como consta da ementa do referido acórdão do STJ, configuraria hipótese de abuso de direito de ação por parte de determinadas ONGs?

Pelo visto, sim, até porque as demandas ambientais, muito das vezes, envolvem interesses de grupos determinados. É incontroversa a natureza difusa da tutela ambiental, sendo desnecessário para essa tutela condição especial ou relação jurídica própria, como a doutrina clássica conceitua. Todavia, existem demandas ambientais em que o dano, assim como atinge indistintamente a toda a sociedade, ao mesmo tempo tem repercussão mais direta sobre um grupo específico ou coletividade, como é o caso de comunidades diretamente atingidas por limitações decorrentes da criação de unidades de conservação ou áreas de proteção ambiental, por exemplo.

Por outro lado, por força do referido amplo espectro de possibilidades de tutela dos direitos transindividuais, resultado da abertura dada pelo legislador constituinte, muitas entidades, com matizes e linhas ideológicas nem sempre alinhadas com a questão ambiental, podem vir a exercer a sua representação de forma questionável, como nos precedentes jurisprudenciais mencionados, ou com indesejável ativismo político-ideológico. Assim, o desvio de finalidade ou o abuso do direito de ação por parte de determinadas ONGs deve ser objeto de um maior controle judicial (ou de um controle judicial menos deferente), até pelo tumulto processual que podem causar, ao introduzirem elementos não jurídicos — ou de caráter ideológico —, nas demandas ambientais.

Além do mais, a falha na qualidade das ações, tal como identificada no importante estudo da SBDP, deveria ser corrigida por meio de mecanismos como a accountability ou por uma política voltada ao compliance ambiental, que regrasse a conduta de tais organismos, dada a importância que têm ao influenciar políticas públicas do meio ambiente.

Em artigo intitulado Como as ONGs ambientais influenciam a política ambiental brasileira, os alunos da Universidade de Brasília (UnB) Daniel Pereira Uhr, Júlia Ziero Uhr e Bernardo Pinheiro Machado Mueller analisaram a questão da influência dessas entidades civis na política ambiental brasileira, tomando como base estudo empírico feito com dados elaborados quando da votação final da lei dos crimes ambientais, a Lei 9.605/1998[10].

Nessa análise quantitativa para verificar a habilidade de as ONGs afetarem a política ambiental por meio de informações, constataram os pesquisadores que, não obstante a assimetria de informação existente entre ONGs ambientais e outros grupos de interesse, como eleitores e produtores rurais, na sua relação com o governo (formação de políticas públicas), as ONGs atuam de forma efetiva na política ambiental brasileira, atingindo os seus objetivos políticos, em razão do poder de utilizar a mídia e a um custo muito baixo. O objetivo desse estudo foi identificar como as ONGs ambientais, com recursos escassos (na visão dos pesquisadores), adquiridos por meio de contribuições financeiras, conseguem influenciar de forma efetiva a política ambiental brasileira, para fins de execução de uma política pública ambiental específica.

Outro estudo importante a desvendar as características das ONGs ambientais brasileiras chama-se O perfil das ONGs ambientais e pode ser obtido no Anuário de Análise e Gestão Ambiental[11]. No tocante à adoção de um mecanismo de compliance, vale mencionar o estudo denominado De um Código de Ética a um Código de Conduta, inserido no texto As ONGs e a Mudança Política – a História do Conselho Australiano para o Desenvolvimento Internacional (ACFID), onde o autor Patrick Kilby escreveu sobre a experiência australiana com a criação de um código de ética e de conduta para balizar a atuação das ONGs, ideia que surgiu na década de 1980, classificada não apenas como “desejável, mas até certo ponto inevitável”[12], inclusive para a habilitação ao financiamento do programa de crédito disponibilizado pelo governo australiano.

No Brasil, salvo melhor juízo, não se tem notícia da adesão das ONGs brasileiras que atuam em matéria ambiental em algum código de ética ou em iniciativas de autorregulamentação, o que seria altamente recomendável, não só para a melhora da qualidade da defesa em juízo dos bens e recursos ambientais — a sua legitimidade processual —, mas, também, na sua atuação mais ampla, como influenciadoras da política ambiental brasileira — a sua potencial legitimidade democrática. Mas, pelo visto, ainda há muito o que ser pesquisado e revelado.


[1] Agravo de Instrumento 5001499-79.2018.4.03.0000. Disponível em: http://web.trf3.jus.br/noticias/Noticias/Imprensa/Visualizar/905. Acesso em: 20.mar.2018.
[2] FREITAS, Vladimir Passos de. Ação proposta pelo rio Doce busca duvidosa proteção ambiental. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-nov-12/segunda-leitura-acao-proposta-rio-doce-busca-duvidosa-protecao-ambiental. Acesso em: 20.mar.2018.
[3] Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: […] III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.
[4] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] XXI – as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente.
[5] DIDIER Jr., Fredie. Direito Processual Civil – Tutela Jurisdicional Individual e Coletiva. Vol. I. 5ª ed. Salvador: Juspodivm. 2005. pp 195-196.
[6] Para Fredie Didier Jr, “a análise da legitimação coletiva (e, portanto, do representante adequado) dar-se-ia em duas fases – sendo que a primeira é preliminar da segunda; a) legislativa (ope legis): verifica-se se há autorização legal para que determinado ente possa conduzir o processo coletivo; b) judicial (ope iudices), em que o controle se opera in concreto, à luz da relação que existe entre aquele que está legalmente legitimado e aquela determinada situação jurídica de direito substancial por ele deduzida em juízo. Surge, então, a figura da pertinência temática, que decorreria da cláusula do devido processo legal, aplicada à tutela jurisdicional coletiva” (Idem, pp 195-196).
[7] REsp 1.213.614/RJ Recurso Especial 2010/0169344-0, DJe 26/10/2015 RMDCPC vol. 69 p. 95. Disponível em: http://www.stj.jus.br/portal/site/STJ. Acesso em: 20.mar.2018.
[8] Sumário Executivo – CNJ. Disponível em: www.cnj.jus.br. Acesso em: 20.mar.2018
[9] Idem, pp. 10-20.
[10] UHR, Daniel de Abreu Pereira; UHR, Júlia Gallego Ziero; MUELLER, Bernardo Pinheiro Machado Mueller. In Como as ONGs ambientais influenciam a política ambiental brasileira? Revista Brasileira de Economia. Vol. 66 n.1. Rio de Janeiro. Jan/Mar 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71402012000100004. Acesso em: 20.mar.2018.
[11] Análise Gestão Ambiental. Anuário 2009. O perfil das ONGs ambientais. Disponível em: www.analise.com. Acesso em: 20.mar.2018.
[12] KILBY, Patrick. From a Code of Ethics to a Code of Conduct. Disponível em: www.jstor.org/stable/j.ctt183q3dm.16 Acesso em: 20.mar.2018.

Autores

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    é advogada e consultora jurídica, mestre em Direito da Regulação (FGV Direito Rio), professora convidada de MBAs da FGV Energia e da UCP/Ipetec, é membro das Comissões de Energia da OAB-RS e do IAB.

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