Diário de Classe

Precisamos falar sobre os casos de censura na academia

Autor

  • Daniel Ortiz Matos

    é advogado mestre e doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) visiting scholar na McGeorge Law School (2017) e bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).

7 de abril de 2018, 8h00

Alguns temas tornam-se tabus, dentre outras razões, porque não nos dispomos a dialogar sobre eles. O cerceamento de um diálogo (social) honesto, sob quaisquer pretextos, apenas alimenta pulsões que podem eclodir de várias maneiras dos subterrâneos da nossa existencialidade. Podemos lembrar da não recepção que a filósofa estadunidense Judith Butler teve aqui no Brasil. Sob protestos e ofensas pessoais, suas ideias encontraram um espaço limitado para uma interlocução respeitosa, ainda que divergente. Nesse caso, ao que parece, o movimento se deu, majoritariamente, de fora da academia, o que talvez explique determinadas reações, apesar de não justificá-las.

Penso agora noutro cenário, um pouco diferente, não de fora para dentro, mas no próprio âmbito interno das universidades brasileiras, contexto “em tese” plural. Assim pergunto: será que existe censura acadêmica? Existem temas, abordagens, autores, teorias e/ou ideias que não podem ao menos ser discutidos, abrindo com isso também a possibilidade para refutações? Posso responder com muitos exemplos. Basta para tanto uma pesquisa rápida em sites de compartilhamento de vídeos, como o YouTube, para vermos professores/palestrantes sendo silenciados à “força”, isto é, na ausência de argumentos e de qualquer espaço dialogal. Mas convido-lhe a pensar sobre essa indagação situando-a, corporificando-a[1].

Na quarta-feira (4/4), uma brasileira, mestranda de um determinado programa de pós-graduação em Direito de uma universidade federal, deveria apresentar a sua dissertação, intitulada “O Bem Humano Básico do Casamento na Teoria Neoclássica da Lei Natural: Razão Prática, Bem Comum e Direito”, porém isso não aconteceu. Importante desde logo esclarecer que essa jovem foi aprovada na seleção do mestrado com esse projeto, e que este foi devidamente qualificado no momento oportuno, isto é, passou pelo procedimento institucional que valida e legitima a realização de uma determinada pesquisa nos moldes por ela propostos. Vencidas as disciplinas e demais requisitos do programa, ao depositar sua dissertação para a defesa, o trabalho tornou-se alvo de intensas críticas. Dentre elas, o Diretório Central de Estudantes (DCE), da mesma universidade, emitiu uma nota de repúdio. Se opôs veementemente à pesquisa por ser (supostamente) discriminatória e incitar um discurso de ódio, uma vez que expõe uma perspectiva teórica que sustenta a heteronormatividade do casamento. Com toda a repercussão alguns professores começaram a defender que a banca não fosse agendada. Mas agora? Depois da qualificação e de toda a pesquisa, seria correta tal postura? A resposta é simples: não. E assim procedeu o PPG, agendando a defesa para esta última quarta-feira.

Todavia, houve uma questionável mudança na composição dos membros da banca, o que ocasionou o seu adiamento para uma data ainda incerta. O professor A, reconhecidamente um especialista na teoria do Direito Natural, e já com as passagens compradas, foi substituído pelo professor B, especialista em discriminação, sobretudo, relacionada às questões de gênero. Ressalto que é possível observar que este professor B, não obstante a sua exitosa trajetória acadêmica, não possui pesquisas, estudos e/ou publicações a respeito do marco teórico dessa dissertação. Diante deste contexto, é razoável e necessário refletir acerca das razões que ensejaram tal engenharia. Seria o professor especialista em discriminação uma espécie de censor que avaliaria os méritos morais/políticos do trabalho acadêmico? Creio que não. Aliás, não se pode olvidar, a fim de que seja possível um olhar mais amplo, que um dos critérios de aprovação deste PPG é que haja unanimidade dos avaliadores. Ou seja, desculpe-me a obviedade desta explicação, mas se dois avaliadores considerarem o trabalho excelente e apenas um entender que este não é digno de ser aprovado, o resultado será a reprovação. Obviamente que isso poderá ocorrer se, e somente se, a dissertação não cumprir os requisitos mínimos de uma pesquisa dessa magnitude. Indo direito ao ponto: esta pressão interna pelo não agendamento da defesa bem como esta mudança na composição da banca não seriam expressões de uma censura acadêmica?

Permita-me colocar esta discussão por outro ângulo: pode um avaliador reprovar um trabalho por divergências moraispolíticas a respeito do autor ou da teoria de base que sustenta uma investigação? Imaginemos a seguinte situação hipotética: temos uma banca de mestrado na Filosofia, o título da dissertação é “Os contornos filosóficos do conceito de gênero em Judith Butler”, e um dos avaliadores é um professor doutor que também é padre. Isso não seria nada incomum, uma vez que temos inúmeros professores de Filosofia que se enquadram nessa condição. Suponhamos ainda que este professor/padre pertença a uma ordem mais ortodoxa e que rejeita, por exemplo, os ditames da Teologia da Libertação. Como deveria proceder este avaliador? Penso até que ele poderia desenvolver um diálogo com a candidata a partir de uma matriz diferente daquela utilizada no trabalho, mas a sua avaliação deve se circunscrever aos próprios limites da pesquisa que está sendo avaliada. Ou seja: há um objeto adequadamente recortado? Os objetivos foram alcançados? O trabalho encontra alguma justificativa? Há método? Ele foi aplicado corretamente? Existem fontes suficientes para ancorar o estudo? A autora central diz mesmo o que foi descrito no trabalho? Há clareza e coerência na exposição? Se o professor/padre não tiver fundadas razões para responder negativamente a essas questões, o trabalho deverá ser considerado aprovado, ainda que compartilhe outra perspectiva a respeito do tema.

Voltemos da nossa abstração momentânea. Como apresentamos anteriormente, o título da dissertação a ser defendida é “O Bem Humano Básico do Casamento na Teoria Neoclássica da Lei Natural: Razão Prática, Bem Comum e Direito”. Essa pesquisa, como se pode observar, tem como base teórica a Teoria Neoclássica da Lei Natural, sendo o jusfilósofo John Finnis seu principal expoente. Para aqueles que ainda não o conhecem, poderíamos comparativamente e de modo apenas ilustrativo dizer que Finnis está para o jusnaturalismo assim como Ronald Dworkin está para o pós-positivismo, ou Joseph Raz para o positivismo jurídico. Em síntese, indubitavelmente, ele está entre os maiores teóricos do Direito desta era. Primeira parada: não há dúvidas quanto aos méritos teóricos e acadêmicos desta abordagem e do autor em questão. Ainda que dele possamos divergir, estamos falando de uma respeitável tradição de pensamento dentro do Direito.

Esta teoria reconhece a existência de bens básicos (basic goods) para o florescimento humano, dentre eles o casamento. Enfatizo que este debate a respeito dos bens básicos e dos bens públicos (public goods) é relevante e contemporâneo. Ademais, estas reflexões também estão albergadas no espectro do debate entre liberais e comunitaristas. Segunda parada: temos uma investigação que se insere numa linha pesquisa atual e que tem contribuído para várias reflexões sociais hodiernas. Isso não significa que não haja controvérsias, mas que há justificativa acadêmica suficiente para que esta abordagem seja explorada.

O trabalho se propõe a ser uma dissertação, isto é, não se exige a defesa de uma tese de algum modo inovadora. Desse modo, pretende-se reconstruir e expor o pensamento de Finnis sobre o tema. Terceira parada: o trabalho precisa ser avaliado dentro dos limites desse background, ainda que dele se possa discordar frontalmente.

Uma das críticas mais presentes à esta dissertação seria o seu caráter discriminatório e a propagação de um discurso de ódio, pois dentro da perspectiva ali abordada, o casamento, enquanto uma instituição pública, não seria apenas uma união afetiva, mas também um compromisso moral protegido pelo Estado. E, talvez, este seja o ponto mais controverso, de que esta união deveria ser constituída heteronormativamente. Quarta e última parada: não se deve silenciar uma discussão tão-somente porque ela apresenta alguma divergência acerca daquilo que hoje consideramos como dogma. Estabelecer de modo respeitoso e razoavelmente defensável diferenças não significa em si mesmo uma atitude discriminatória, ou um discurso de ódio. Prima facie, esse trabalho não está a condenar outras formas de relação e arranjos familiares, tampouco a sustentar que sobre estes não deva existir uma proteção jurídica específica. De modo diverso, está a afirmar, partindo de um marco teórico, que o casamento apresenta certas especificidades que justificariam determinados limites impostos pelo Estado ao seu reconhecimento, que não apenas o afeto.

A existência de trabalhos como esse abre a possibilidade de diálogos honestos. Temos alguém, e o mesmo se aplica ao orientador, na academia que expõe francamente, a si mesmo e as ideias de um determinado teórico, acerca do casamento heteronormativo. Tal realidade nos exige ir além dos estereótipos de conservadores, progressistas, reacionários, revolucionários, fascistas ou fundamentalistas. Como resposta, temos a oportunidade de aprofundar os nossos debates a respeito do tema, de refutar suas ideias pelos seus fundamentos, ou até mesmo aceitá-las por seus méritos. Por que não? Mas o que não podemos fazer, especialmente na academia, é silenciá-lo. Tampouco avaliá-lo por razões outras que não seus próprios limites epistêmicos. Eis mais uma lição do nosso "Diário de Classe" que precisa ser constantemente relembrada. Falemos sobre a censura acadêmica.

***

Agradeço aos colegas Rodolfo Souza, Gilberto Morbach, Leandro Cordioli e Matheus Hetti pela interlocução valiosa para a escrita deste ensaio.


[1] Por razões éticas e em respeito a todos os envolvidos, pessoas e instituições, omitirei os seus nomes. Como o fato tornou-se público, os interessados não terão dificuldades de encontrar tais informações. O objetivo é refletir sobre o aspecto simbólico do que está ocorrendo e do que talvez possa acontecer ao final.

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    é advogado, mestre e doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), visiting scholar na McGeorge Law School (2017) e bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).

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