Opinião

Decisões e atributos do "morismo" são retrógrados e primitivos

Autores

  • André Luiz Figueira Cardoso

    é abolicionista advogado criminalista pós graduando em Direito Constitucional ex-consultor jurídico da Rádio Justiça e ex-membro da Comissão de Ciências Criminais e Segurança Pública da OAB-DF.

  • José Elias Gabriel Neto

    é advogado criminalista mestre em Direito Público ex-consultor jurídico da Rádio Justiça e ex-secretário-geral da Comissão de Ciências Criminais e Segurança Pública da OAB-DF.

6 de abril de 2018, 14h19

Como até as pedras do Complexo Médico-Penal do Paraná sabem, nesta quinta-feira (5/4), o célebre juiz federal Sergio Moro determinou, nos autos da Ação Penal 5046512-94.2016.4.04.7000 (o não menos famoso caso do “tríplex do Guarujá”), a prisão do ex-presidente Lula.

Essa decisão deu-se apenas algumas horas após o julgamento do Habeas Corpus 152.752/PR, ocasião na qual, por 6 votos a 5, o Supremo negou o pedido formulado pelo político de continuar livre até o trânsito em julgado (artigo 5º, LVII da Constituição) da sentença condenatória.

Consta que o julgamento do writ, apesar da intensa publicidade midiática, ainda não teria sido sequer publicado formalmente — não há ainda um acórdão que materialize a decisão do STF (a publicidade do aresto não apenas é condição de validade, como de sua própria existência)[1]. Por outro lado, segundo a defesa do ex-presidente, não teria ocorrido ainda sequer intimação da decisão do TRF-4 que teria rejeitado os embargos de declaração[2]. Por outro lado, os advogados já declararam que iriam interpor novos recursos, incluindo-se aí eventuais segundos embargos.

Ao tomar a decisão que determinou o recolhimento ao cárcere dos acusados condenados na ação penal citada, o magistrado condenou o emprego dos “hipotéticos embargos de declaração de embargos de declaração”, que constituiriam, em sua visão, “apenas uma patologia protelatória que deveria ser eliminada do mundo jurídico”, até porque “embargos de declaração não alteram julgados”[3].

Mais adiante, na decisão, delimitam-se condições especiais para a prisão do ex-presidente, “em atenção à dignidade do cargo que ocupou”, vedando o emprego de algemas em “qualquer hipótese” e esclarecendo que houve a preparação de “uma sala reservada”, uma “espécie de Sala de Estado Maior”.

Essa curta decisão consubstancia e expõe, de maneira bastante clara, a vitória final de um movimento político-jurídico, de contornos ideológicos facilmente identificáveis, que poderíamos definir como “morismo”. De fato, o tratamento dado a esse acusado específico — ainda que não apenas a ele, evidentemente — constitui uma espécie de opus magnum desse movimento que logrou se apossar dos rumos do processo penal brasileiro. Todavia, enquanto elemento particularmente expressivo do conjunto de ideias moristas, o decisum também expõe suas limitações e inconsistências.

A decisão de prender os réus condenados na citada ação penal deveria ser, neste contexto, o ponto culminante da "lava jato", e o momento da definitiva Apoteose do Divino Moro — figura jurídica além do bem e do mal e iniciador de um grande movimento de renovação moral e jurídica no país.

Não nos parece ser assim a realidade.

Em vários aspectos, o morismo não é algo novo ou original. Já o infame jurista Francisco Campos afirmava, nos anos 1940[4], que o catálogo de garantias processuais concedidas ao acusado seria “verdadeiro fator criminógeno” e que[5] se faria necessário um “forte intervencionismo estatal no campo do processo judicial, para fins de se restabelecer a autoridade, o caráter popular do Estado, a confiança popular no sistema de administração da justiça e a segurança nas relações sociais”. Caberia ao magistrado, neste contexto, verdadeiro “papel ativista”.

Caracterizariam o morismo um desprezo mal dissimulado pela atividade política (incluindo-se aí a atividade parlamentar); um marcado desapreço pela lei enquanto instrumento de limitação do poder (dos juízes); um declarado apreço pela “voz das ruas” e da “opinião pública” (quando conveniente, evidentemente[6]); uma clara tendência ao punitivismo; um frequente recurso à moral enquanto fator de “correção” do Direito; a exposição de “crenças” ou da “pretensão de se fazer a coisa certa”[7] como vetor de validade de suas posições e decisões, além da desonestidade metodológica e do pragmatismo extremo.

Tudo isso desaguando, naturalmente, numa crítica ao “excesso de recursos”, à “leniência do texto constitucional”, ao “garantismo hiperbólico” e de coisas que deveriam “ser eliminadas do mundo jurídico”. É típico do morismo a adoção de um tom grandiloquente[8] e de obter dicta incidentais sobre os mais variados temas, quase que numa reprodução das velhas Falas do Trono de Dom Pedro II.

Tudo isso se nota perfeitamente na virtual “rejeição” dos embargos ainda nem opostos, por quem evidentemente sequer seria competente para apreciá-los, além da forte e completamente fora de lugar crítica a uma importante modalidade recursal.

O argumento desferido, aliás — o da inutilidade do recurso —, contém uma indireta, mas pouco sutil crítica ao direito de defesa e à postura aguerrida da advocacia no caso concreto. Enquanto elemento do morismo, a baixa tolerância à advocacia e ao direito de defesa pode ser claramente visualizada na posição apresentada pelo ministro Luís Roberto Barroso, ao citar, no voto em que rejeitou o HC 152.752/PR, estudos que dariam conta de percentuais mínimos de provimento de recursos especiais e extraordinários.

O estudo é metodologicamente desonesto, por sugerir que a execução da pena a partir do segundo grau seria possível e aconselhável, tendo em vista a raridade das reformas por força de recursos especiais e extraordinários: ora, é desonesto por silenciar sobre o mecanismo por meio do qual as coisas realmente acontecem na jurisdição penal: o Habeas Corpus. E também o é por não se mencionar, em números absolutos, quantas pessoas podem ser beneficiadas efetivamente pelo provimento de um recurso sob o rito repetitivo ou no rito da repercussão geral, por exemplo[9].

A inconsistência argumentativa — outro atributo do morismo — é facilmente perceptível se abraçarmos, por hipótese e temporariamente, a tese de que realmente os recursos descritos são inúteis e, portanto, que também o seriam os tribunais superiores que os julgam. Nesse caso, a consequência seria a defesa da sua extinção e abolição, com grande benefício ao erário, que os sustenta anualmente ao custo de uma "lava jato" ao ano, com seus orçamentos bilionários.

Nota-se também a completa ausência de coerência no discurso morista de que determinados delatores poderiam e deveriam ser ouvidos e acreditados, enquanto outros, por serem acusados de “crimes graves” e se encontrar “foragidos”, não seriam dignos de qualquer crédito[10].

O motivo condutor da baixa tolerância à defesa — sempre ela, a incomodar, a recorrer, a irresignar-se, a impetrar HC atrás de HC — torna-se ainda mais evidente quando verificamos que este argumento é parente próximo daquele outro, bastante comum, segundo o qual “o julgador não está obrigado a debater todos os pontos trazidos pelas partes ao julgamento”. Ora, se o julgador não está obrigado a se manifestar, e os embargos não são cabíveis, se está a um passo de se afirmar que o papel da defesa é a de atuar como “figura ornamental” num processo criminal. Algo quase voluptuário.

Voltando à decisão de prisão, verifica-se que a parcialidade do magistrado e sua pauta moral ficam bem expressas no reconhecimento reiterado da “dignidade do cargo ocupado”. A dignidade dita e redita é sempre do cargo, jamais do acusado. Esse não dispõe de qualquer dignidade intrínseca.

Talvez o ponto alto dessa apontada inconsistência lógico-argumentativa do morismo seja a falsa clemência apresentada na vedação absoluta do uso de algemas. No afã de posar de imparcial e serena, a decisão estabelece imprudente e irresponsável vedação do emprego de algemas “em qualquer hipótese”: mas e se o acusado empregar a força e a violência para resistir à prisão? E se passar a constituir uma ameaça para si mesmo e outros? E se agredir as forças de segurança que eventualmente o conduzirão ao cárcere? As algemas permaneceriam proibidas mesmo nessas hipóteses, consoante o texto expresso da decisão.

O citado desprezo pela atividade política e pela lei se verifica não apenas na repetida atribuição de dignidade a um cargo, mais do que a quem o ocupou, mas também e principalmente na reserva de uma “espécie de Sala de Estado Maior”: adequado lugar de cumprimento dessa “espécie de pena” a que chegou essa “espécie de devido processo legal” e a essa “espécie de direitos e garantias” cujas migalhas ainda se permite aos acusados dispor.

Em síntese, conforme afirmamos, a pequena decisão expõe com precisão as balizas e limitações do movimento que seu subscritor veio a representar. Sequer originalidade há aí: nossas instituições e tradições jurídicas têm, desde sempre, uma paixão infantil pela autoridade, pela retórica empolada, por gestos de força espetacular. Não há diálogo nem método; e o respeito à forma e ao texto soa quase como uma superstição.

O morismo, mais do que o futuro do processo penal, representa o que ele tem de mais retrógrado e primitivo; jamais poderá, como pretende e alega, inaugurar uma “nova era de combate ao crime e à corrupção”.

O caráter sisudo e pomposo de seus defensores pode e deve ser ridicularizado. Há, na literatura latina, um veio frequentemente ignorado pelos operadores do Direito: o da sátira.

E, na facilmente satirizável decisão morista, identificamos facilmente não a Apoteose esperada e desejada, mas, sim, uma Apocoloquintose (se for possível nos apropriarmos aqui da obra de Sêneca)[11]. Não a transformação de Moro num deus, mas numa… Abóbora. É necessário que “desdivinizemos” os agentes públicos; não há república possível onde existam “mitos” ou figuras mitológicas, nem democracia sem irreverência.

É necessário manter a resistência, especialmente a da advocacia criminal, mas também a do sátiro, especialmente importante em momentos de tanta sisudez e gente que se leva demasiadamente a sério. Essa página, como todas as outras, será virada, e quando o for, poderemos recitar sem pejo ou vergonha a conclusão de Sêneca[12]:

Jurisconsultos saíam das trevas, pálidos,
magros, dotados apenas do espírito,
como quem ressuscitasse exatamente
naquele momento. Um deles, como visse
os advogados reunindo suas cabeças
e lamentando sua sorte, aproximou-se e
falou: “Não serão sempre Saturnais”.


[1] http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5346092
[2] https://g1.globo.com/politica/noticia/mandado-de-prisao-contraria-decisao-do-trf-4-diz-defesa-de-lula.ghtml
[3] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2018/04/05/confira-a-integra-da-decisao-de-moro-que-determina-a-prisao-de-lula.htm
[4] CAMPOS, Francisco. Apud. PRADO, Geraldo; MALAN, Diego (org.). Autoritarismo e Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2015, p. 44.
[5] PRADO, Geraldo; MALAN, Diego (org.). Autoritarismo e Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2015, p. 44.
[6] Sobre o apoio “majoritário” da imprensa à operação "lava jato", vejam-se os trechos de 50min58s a 51min23s do programa Roda Vida — Sergio Moro, 26/3/2018 (https://www.youtube.com/watch?v=DqtPZVBhfNw&t=635s).
[7] Conforme declarado pelo seu mais destacado prócer, o juiz Sergio Moro aos 48mim/49min10s do programa Roda Vida — Sergio Moro, 26/3/2018 (https://www.youtube.com/watch?v=DqtPZVBhfNw&t=635s).
[8] Sobre as “dimensões colossais” da operação "lava jato", que teria descoberto e estancado um prejuízo de R$ 6 bilhões à Petrobras, 51min a 51min50s do programa Roda Vida — Sergio Moro, 26/3/2018 (https://www.youtube.com/watch?v=DqtPZVBhfNw&t=635s).
[9] https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/anotacoes-manifestacao-oral-barroso-1.pdf
[10] A referência, evidentemente é feita a Tacla Duran aos 1h15min30s e 1h16min35s do programa Roda Vida — Sergio Moro, 26/3/2018 (https://www.youtube.com/watch?v=DqtPZVBhfNw&t=635s).
[11] Referência a uma clássica obra do filósofo romano Sêneca, A Apocoloquintose do Divino Cláudio. https://periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/download/1980-4237.2011n10p151/19995
[12] SENECA, A Apocoloquintose do Divino Cláudio, XII, parágrafo 1º https://periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/download/1980-4237.2011n10p151/19995

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