Opinião

É possível encontrar segurança jurídica na jurisprudência brasileira?

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1 de abril de 2018, 15h04

Considerações iniciais
“Não há Estado Constitucional e não há mesmo Direito no momento em que casos idênticos recebem diferentes decisões do Poder Judiciário. Insulta o bom senso que decisões judiciais possam tratar de forma desigual pessoas que se encontram na mesma situação.”[1]

Com essas fortes palavras, Marinoni e Mitidiero destacam o imbróglio da divergência jurisprudencial na experiência brasileira.

É sabido que inúmeras são as demandas que sobrecarregam o Poder Judiciário, cada vez mais abarrotado de casos, muitos deles semelhantes, e que deveriam obter a mesma resposta jurisdicional, como dita o princípio da isonomia[2].

Ocorre que, muitas vezes, decisões sobre casos semelhantes, prolatadas num mesmo momento histórico, obtêm respostas jurisdicionais diversas, colidindo assim, com o citado predicado da isonomia, mas principalmente gerando um ambiente de insegurança jurídica.

Nesse cenário, o estudo da doutrina dos precedentes e a valorização da jurisprudência, principalmente em sua forma dominante ou sumulada, também podem ser úteis à experiência brasileira, acostumada a ter a lei como principal fonte do Direito.

Torna-se então interessante verificar se e como uma aproximação entre os diferentes sistemas jurídicos da commom law e civil law podem fornecer ferramentas úteis ao bom funcionamento de nossa Justiça, gerando a tão desejada sensação de segurança e previsibilidade, bem como a pacificação social.

Segurança jurídica e jurisprudência
Não é novidade a discussão sobre o tema da segurança jurídica, sendo sua garantia essencial à satisfação dos interesses dos jurisdicionados. Carlos Aurélio Mota de Souza[3] elabora interessante distinção entre segurança jurídica e certeza do direito. Segundo o autor, a segurança é fato, algo concreto, objetivo, como uma rodovia em que um caminhante transita mesmo à noite, mas sabe que seus elementos, como a sinalização, o concreto do chão, as defensa laterais, lhe dão a segurança de que, seguindo-a corretamente, chegará a seu destino. Já a certeza seria um valor, algo em que se pode confiar, sendo subjetiva, como acreditar que, seguindo corretamente a estrada, se alcançará o destino.

Assim, para o autor, a segurança jurídica vem das leis elaboradas pelo Estado para seus cidadãos, traduzindo-se, portanto, através das normas e instituições do sistema jurídico. Já a certeza do direito vem do conhecimento e da compreensão dessas normas, de saber quais direitos e obrigações lhe estão resguardados e, agindo, quais serão suas consequências.

Seguindo com esse raciocínio, não se discute que há certeza do direito que emana da lei. Todavia, pode-se falar também em certeza jurisprudencial, ou seja, pode existir certeza do direito com base nas decisões dos tribunais? Para o autor, apesar de não se falar em jurisprudência como norma no Direito brasileiro, deve-se ter em conta que algumas decisões dos tribunais superiores têm efeitos que ultrapassam a esfera privada das partes, atingindo toda a sociedade.

Além disso, a construção jurisprudencial tende a ser mais célere que o direito legislado. Quanto a isso, poderíamos citar exemplos de leis que foram inspiradas pela jurisprudência ou vieram apenas para chancelar práticas já admitidas pelos tribunais — veja-se como exemplo recente a exceção de pré-executividade, entendida como prevista pelo novo Código de Processo Civil em seu artigo 806, parágrafo único. Esse, porém, é assunto para outro trabalho.

O que aqui se afirma é que a segurança dada pela jurisprudência acaba por ser uma segurança qualificada com relação àquela assegurada pela lei. Isso porque os julgados representam uma interpretação particularizada da lei, demonstrando a sua aplicação no caso concreto. Assim, não se pode negar que um conjunto de julgados organizados, coesos, precisos e claros, pode ser extremamente útil para a garantia de tratamento igualitário em casos semelhantes, gerando a sensação de segurança e previsibilidade das decisões judiciais. Todavia, no atual estado da arte, é possível encontrar segurança na jurisprudência brasileira?

Da aproximação entre os sistemas commom law e civil law ao novo CPC
Commom law e civil law são dois grandes sistemas jurídicos, que, apesar de diferentes, apresentam alguns pontos em comum. De acordo com Gaio Júnior, o sistema da common law, ou Direito comum, iniciou seu desenvolvimento na Inglaterra no ano de 1066, através dos Tribunais Reais (Tribunais de Westminster), que eram, em princípio, cortes de exceção, tendo em vista que a intervenção do rei em julgamentos somente se justificava em casos especiais, bem como o processo tinha seu curso marcado pela forma como a demanda era conduzida.

Nesse sistema, a lei não é a mais importante fonte do Direito, sendo também respeitadas como fontes a jurisprudência, a razão, o costume e a doutrina, caracterizando-se, nos dizeres de Miguel Reale, num Direito costumeiro-jurisprudencial, sendo esta sua principal diferença do sistema adotado no Brasil, o civil law, que tem a lei como fonte primordial.

No sistema da common law, tem grande importância a doctrine of stare decisis, doutrina segundo a qual se faz necessário “cumprir as decisões e não criar distúrbio em relação a pontos já definidos”. De acordo com tal doutrina, as decisões proferidas pelos tribunais servem como precedentes vinculantes relativamente às decisões a serem tomadas em casos semelhantes.

Nesse sistema, verifica-se que o poder dos aplicadores da lei é bem mais amplo do que na civil law; o magistrado não tem o poder de criar a lei, mas sua decisão, ao constituir precedente para os demais julgadores, acaba também por constituir Direito.

Já o sistema da civil law, oriundo da Revolução Francesa, filia-se à tradição romano-germânica, onde, de início, “acreditava-se que com uma legislação clara e completa o juiz não necessitaria interpretar a lei, pois estaria pronta para a aplicação e a solução dos conflitos. Em caso de obscuridade ou falta de lei, o Legislativo deveria ser chamado para realizar a interpretação autorizada”[4].

No sistema brasileiro da civil law, há um grande apego ao Direito legislado. Todavia, a codificação não é a única distinção entre os sistemas da commom law e da civil law, até porque também há produção legislativa nos países que adotam o Direito costumeiro.

Assim, o que diferencia os sistemas mencionados não é a codificação ou a “completude” da legislação, e sim, significativamente, o que se atribui aos códigos e à função que o juiz exerce ao considerá-los[5]. Atualmente, na civil law brasileira, diante das lacunas existentes na legislação, o magistrado acaba por criar direitos, mas diferentemente dos juízes da common law, não se submete aquele magistrado às suas próprias decisões em casos futuros, mesmo que se assemelhem a casos anteriormente e por ele mesmo julgados. Tal fato leva, inegavelmente, ao já citado grau de incerteza jurídica, bem como ausência de isonomia.

Destarte, observou Rodolfo Mancuso[6] que, nas últimas décadas, os juristas brasileiros passaram a se interessar mais pelo precedente judiciário dos países de commom law, na esperança de que, além de um tratamento isonômico aos jurisdicionados, tal experiência possa auxiliar na sumarização dos ritos e na agilização dos julgamentos.

A saga de valorização da jurisprudência no Brasil, nos dizeres de Rodolfo Mancuso, iniciou-se com a Lei 8.078/90 (Lei dos Recursos), e a potencialização das decisões monocráticas do relator nos tribunais, passando pela Emenda 45/2004, que estabeleceu a súmula vinculante, até o novo Código de Processo Civil, dando especial atenção as modalidades dominante e sumulada.

Segundo o autor, a valorização da jurisprudência tem trazido efeitos até mesmo extraprocessuais, gerando consequências no âmbito da administração pública, através da emissão de súmulas vinculantes e jurisprudências com conteúdo administrativo; no âmbito das relações trabalhistas, onde cláusulas pode ser ou não estipuladas em um contrato de trabalho, condutas podem ser ou não adotadas, a depender do entendimento adotado pelo Tribunal Superior do Trabalho, assim também nas relações negociais em geral e até mesmo nas relações interpessoais, lembrando, como exemplo, as súmulas com conteúdo de Direito de Família.

Essa valorização do Direito jurisprudencial e sumular também pode apresentar bons efeitos quanto ao excesso de demandas ajuizadas, na medida em que torna possível a previsibilidade com relação às decisões judiciais, decidindo o jurisdicionado se vale a pena ou não ajuizar determinada ação, a depender do entendimento da corte.

Dessa forma, o desenvolvimento de um forte Direito sumular, por exemplo, acabaria por inibir ou desestimular que se ajuízem ações cujos pedidos contrariem as súmulas dos tribunais superiores. O Código de Processo Civil de 2015 traz disposição expressa nesse sentido em seu artigo 332, que trata da improcedência liminar do pedido, quando contrariar súmula ou acórdão em recursos repetitivos do STF ou STJ, entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas (novel e interessante instrumento para estabilização das decisões judiciais em demandas similares), ou enunciado de súmula de Tribunal de Justiça sobre direito local.

Porém, para que todo este ambiente jurisprudencial, ainda novo na experiência romano-germânica, funcione com a eficiência que dele se espera, algumas medidas e estratégias se fazem necessárias.

Conforme destacou Mancuso[7], deve ser adotada uma política judiciária que implique em maior divulgação da jurisprudência dominante ou sumulada, inclusive quanto aos precedentes que as embasaram; haver maior apuro redacional na elaboração dos vernáculos e emendas de acórdãos, de modo que as súmulas sejam gerais, mas na medida do possível, concretas; procederem os tribunais, de tempos em tempos, a uma triagem nas súmulas já emitidas, substituindo ou reformando aquelas que perderem sua atualidade; realizarem-se alterações nos currículos das faculdades de Direito e capacitação dos respectivos docentes, a fim de que os futuros operadores do Direito saibam lidar com os precedentes.

Nessa toada, além de nossa filiação romano-germânica, a instabilidade do entendimento interno dos tribunais também é um dos obstáculos à segurança jurídica e previsibilidade no Brasil, considerando as mudanças bruscas de entendimento antes consolidados dos tribunais, inclusive em sede de STF e STJ, bem como um existente apego exagerado ao princípio da livre convicção do juiz (na medida em que se alega que a obediência à jurisprudência consolidada fere a liberdade de decisão do magistrado)[8].

Talvez atento a tais questões, inovou o legislador ao dispor sobre o respeito à jurisprudência no Código de Processo Civil de 2015. A nova lei processual trouxe artigos que trazem disposições para os tribunais, a fim de que uniformizem sua jurisprudência, mantendo-a íntegra, estável e coerente (artigo 926, caput) e também aos juízes, para que observem as decisões dos tribunais superiores, os enunciados de súmulas e as decisões em incidentes de resolução de demandas repetitivas.

Além da imposição de observar as decisões anteriormente proferidas, o artigo 927 do novo Código de Processo Civil ainda traz, em seus incisos, disposições para que a superação de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos se faça com a devida fundamentação — que, segundo o parágrafo 4º, deve ser adequada e específica —, “considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia”. O parágrafo 5º do artigo 927 ainda dispõe que os tribunais deem publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os na internet.

Considerações finais
De todo o exposto, temos que o Direito brasileiro, de tradição romano-germânica, vem concedendo cada vez mais espaço ao uso da jurisprudência e dos precedentes, podendo-se falar, nesse ponto, em uma certa aproximação entre os sistemas da commom law e da civil law. Apesar disso, o sistema de precedentes e a utilização da jurisprudência em nosso Direito não opera de modo análogo e com a mesma intensidade com que é utilizado na commom law.

O que a experiência aqui tem mostrado, além de advogados mal preparados para o manejo do Direito pretoriano (deixando, por exemplo, de utilizar súmulas para embasar seus pedidos ou indo de encontro a verbetes já consolidados sem demonstrar em que ponto seu requerimento é divergente do paradigma), são os próprios juízes e tribunais deixando de aplicar seus precedentes sem proceder ao distinguishing[9] ou superando entendimentos anteriormente consolidados sem realizar a técnica do overruling[10].

Ainda é cedo para constatar efeitos das disposições sobre o respeito à jurisprudência e aos precedentes trazidas com o Código de Processo Civil de 2015. Todavia, apenas com o comprometimento da comunidade jurídica como um todo, de magistrados a advogados, será possível o eficaz estabelecimento do Direito pretoriano no Brasil.

Não se defende aqui o “engessamento” do Direito, tornando o juiz mero “encaixador de precedentes”. Trata-se de dar o mesmo tratamento a casos semelhantes, desestimulando a famigerada “loteria judiciária” (ou a torcida para que o recurso seja distribuído para a câmara X ou Y, a depender da parte em defesa). Trata-se, por fim, de conceder um voto de confiança à jurisprudência como forma de garantir a sumarização dos ritos, a agilização das demandas e, especialmente a isonomia entre os casos semelhantes, a fim de que o jurisdicionado deposite sua confiança na Justiça, realizando-se a paz social.


[1] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O Projeto do CPC. Críticas e propostas. São Paulo: RT, 2010, p. 17-18.
[2] GAIO JÚNIOR, A. P. Instituições de Direito Processual Civil. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2016.
[3] SOUZA, C. A. M. de. Segurança Jurídica e Previsibilidade. São Paulo: Editora LTR, 1996.
[4] Idem.
[5] MARINONI, L. G. apud MANCUSO, R. de C. Ob. Cit.
[6] MANCUSO, R. de C. Sistema Brasileiro de Precedentes: natureza, eficácia, operacionalidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
[7] Idem.
[8] Idem.
[9] No distinguishing é realizada uma distinção entre o precedente e o caso em análise, de modo que o julgador possa reconfigurar a aplicação daquele precedente quando sua razão (ratio decidendi) seja distinta do caso concreto. Ocorre, em síntese, uma modulação de efeitos (MENEZES, C.R. e outros. O Novo CPC e a busca pela verticalização das decisões como pressuposto da decisão previsível: o papel dos precedentes. In: Direito e Processo em Evolução – Estudos em Homenagem ao Professor Antônio Pereira Gaio Júnior. Curitiba, CRV: 2017).
[10] Como se depreende do texto, na técnica overruling ocorre a revogação do precedente, quando superado entendimento anteriormente manifestado.

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