A polêmica em torno dos aplicativos de transporte, como Uber e Cabify, não é mais novidade nem desconhecida, motivo pelo qual não gastaremos muitas linhas com a contextualização do tema.
O que nos importa destacar é a falta de normatização adequada para o funcionamento dos serviços prestados por essas startups, de forma a garantir o respeito à livre iniciativa sem causar transtornos à população e garantir ao Estado o recolhimento de tributos sobre essa atividade.
Como referido, há um vácuo na normatização desses serviços, o que é normal por se tratar de uma atividade nova e levando-se em conta a preguiça e pouca competência de nossos legisladores.
Pois bem, considera-se como marco legal a Lei Federal 12.587/2012, que institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. É com base nessa lei que, a exemplo do município de São Paulo, cidades têm editado decretos regulamentando em suas respectivas esferas a utilização dos aplicativos de transporte compartilhado. Recentemente, em 18 de julho, Curitiba editou o Decreto 1.302.
Tais regulamentos impõem diversas obrigações a serem cumpridas pelos motoristas dos aplicativos, além de outras restrições à atividade. Não discutiremos, neste momento, a legalidade ou não de tais restrições. Analisaremos um ponto anterior a isso, que é a forma que se adotou para regulamentar a atividade.
Como dito, São Paulo e outros municípios têm editado decretos regulamentando a Lei 12.587/2012, mais especificamente seus artigos 12 e 18, I.
Essa forma adotada para regulamentar a atividade nos municípios contém, a nosso ver, diversas irregularidades e inconsistências que serão abordadas ponto a ponto.
Primeiramente, a Lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana e suas alterações posteriores não tratam sobre os serviços de transporte compartilhado por aplicativos. Ocorre que os poderes Executivos, na sanha arrecadatória ou por clamor popular, além da demora do Legislativo, criaram decretos para regular a referida atividade com base nessa lei. Ocorreu mesmo um enjambre, fazendo-se uma leitura extremamente ampla da lei para retirar dali um fundamento legal para a regulamentação dessa nova forma de serviço.
Para tanto, equiparou-se a atividade da Uber e outros a um serviço de utilidade pública, previsto no regulamentado artigo 12 da Lei de Mobilidade Urbana, a seguir transcrito:
Art. 12. Os serviços de utilidade pública de transporte individual de passageiros deverão ser organizados, disciplinados e fiscalizados pelo poder público municipal, com base nos requisitos mínimos de segurança, de conforto, de higiene, de qualidade dos serviços e de fixação prévia dos valores máximos das tarifas a serem cobradas. (Redação dada pela Lei 12.865, de 2013.)
Todavia, não é possível tal equiparação, pois se trata, sim, de um serviço de transporte privado individual, sendo muito mais próximo de um serviço prestado pelos tradicionais choferes do que o prestado por taxistas, por exemplo.
Sobre o assunto, vale trazer definição de Nelson Martins Brudeki sobre serviços de utilidade pública:
São aqueles que a Administração oferece de forma direta ou por delegação a terceiros, desde que em condições previamente regulamentadas e sob seu controle, mas por conta e risco dos prestadores, mediante remuneração dos usuários[1].
Caso se entenda que tais serviços são de utilidade pública, esses dependem de um instrumento público de autorização, permissão ou concessão, o que inviabilizaria o negócio, além do que os municípios não teriam formas de instrumentalizar minimamente, pelo menos dentro de um período viável, a formalização de tantos instrumentos.
Portanto, fica claro que estamos diante de decretos sem fundamento legal, pois pretendem regulamentar uma atividade que não está prevista na Lei 12.587/2012.
Ademais, ainda que se admita uma interpretação mais do que elastecida da lei, abarcando os serviços de transporte compartilhado por aplicativos, os decretos municipais estão regulamentando diretamente uma lei federal, ferindo o pacto federativo eleito em nossa Constituição Republicana e também infringindo a separação dos Poderes.
Explicamos.
A União, pela Lei 12.587/12, instituiu as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, utilizando-se da prerrogativa prevista no inciso XX do artigo 21 da CR[2]. Trata-se, portanto, de norma geral a ser observada pelo demais entes federativos.
A esses entes, caso queiram, cabe formular lei em seu âmbito regulamentando pormenorizadamente a matéria, sem, no entanto, contrariar a norma geral.
Ocorre que os municípios de São Paulo e Curitiba, ao pretenderem regulamentar a lei federal por decreto do Poder Executivo municipal, infringiram o pacto federativo. Isso porque o decreto tem por objetivo regulamentar lei de seu próprio ente federativo e não regulamentar diretamente a lei federal. Portanto os decretos municipais regulamentando a Lei 12.587 são inconstitucionais por afronta ao princípio federativo e nulos por não possuir lei (na esfera municipal) que os fundamente.
Ademais, do momento em que os chefes do Executivo regulamentaram matéria de interesse local (artigo 30, I, da Constituição Republicana) utilizando-se para isso de um decreto, usurparam competência do Poder Legislativo, que é o encarregado pela formulação da lei regulamentadora da norma geral. Logo, tais decretos também ofendem o princípio da separação dos Poderes.
Veja que, além disso, tais decretos ofendem a Constituição também no que se relaciona ao artigo 170 e parágrafo único da Carta Magna, transcrito a seguir:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(…)
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
A Constituição da República é clara ao garantir a livre iniciativa e o consequente livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos. Mesmo que se argumente que tais decretos não condicionem a atividade da Uber e semelhantes a uma autorização, as limitações ali impostas podem e vão impedir a atuação de diversos motoristas que já estão desempenhando atividade remunerada. Portanto, tais limitações só seriam admissíveis se criadas por meio de lei formal.
Diante de todo esse contexto de ausência de juridicidade dos decretos em análise, a conclusão é que, além de inconstitucionais, são nulos de pleno direito. E o reconhecimento disso é bastante sensível, visto que tal nulidade pode resultar na desconstituição de todos os atos do Executivo municipal fundados nessas normas, gerando possíveis processos de indenização por todos aqueles que forem prejudicados por terem tido limitado o desempenho de sua atividade remunerada.