Opinião

Nova súmula do Superior Tribunal de Justiça afronta a dogmática penal

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28 de setembro de 2017, 6h36

O Superior Tribunal de Justiça publicou um novo enunciado em matéria penal: houve-se, mais uma vez, muito mal. O Enunciado 589 da súmula da corte estabelece ser “inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas”. A súmula afronta a dogmática penal.

Qual a razão de não aplicar o princípio da insignificância em delitos que tais? Roxin, a essa altura, arrepende-se do que pensou e escreveu, pois certamente não supunha que fariam de sua tese um monstrengo para todos os gostos, a depender do freguês. O princípio da insignificância não tem nada que ver, muitíssimo pelo contrário, com a circunstância na qual foi praticado o delito (se em situação de violência doméstica ou familiar). Nada que ver! O absurdo é manifesto! A impropriedade é indiscutível.

Aliás, recentemente, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus 138.697, reformou decisão do Superior Tribunal de Justiça e concedeu a ordem, determinando o trancamento do processo em que o réu era acusado de furto de um telefone celular, avaliado em R$ 90. Nesse caso, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça havia determinado a execução imediata da pena sob a alegação de que o celular tinha um valor superior a 10% do salário mínimo, além de ser reincidente o acusado. O voto do relator do caso no Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski, foi em sentido contrário, tendo sido acompanhado pelos demais integrantes da turma. Ou seja, na corte suprema já prevalece tese de que a reincidência, por si só, não impede a aplicação do princípio da insignificância. Em seu voto, o ministro Ricardo Lewandowski afirmou:

“Destarte, ao perceber que não se reconheceu a aplicação do princípio da insignificância, tendo por fundamento uma única condenação anterior, na qual o ora paciente foi identificado como mero usuário, entendo que ao caso em espécie, ante inexpressiva ofensa ao bem jurídico protegido, a ausência de prejuízo ao ofendido e a desproporcionalidade da aplicação da lei penal, deve ser reconhecida a atipicidade da conduta”.

Aliás, esse entendimento já havia sido exposto pela mesma 2ª Turma no Habeas Corpus 137.290, julgado em fevereiro deste ano. Na ocasião, por maioria de votos, concedeu-se a ordem para reconhecer a atipicidade da conduta da paciente que havia tentado subtrair de um supermercado dois frascos de desodorante e cinco frascos de goma de mascar, avaliados em R$ 42, mesmo o paciente possuindo registros criminais.

Com efeito, o princípio da insignificância foi pensado por Claus Roxin, na década de 1960, a partir do princípio da adequação social, anteriormente criado por Welzel. Segundo Roxin, era necessário introduzir no sistema penal um outro princípio que permitisse, em alguns tipos penais, excluir os danos de pouca importância, pois, como diz, Ferrajoli, “la necesaria lesividad del resultado, cualquiera que sea la concepción que de ella tengamos, condiciona toda justificación utilitarista del derecho penal como instrumento de tutela y constituye su principal límite axiológico externo. Palabras como ‘lesión’, ‘daño’ y ‘bien jurídico’ son claramente valorativas[1].

Logo, se a conduta do agente não lesa (ou ofende) o bem jurídico tutelado, não causando nenhum dano, ou, no máximo, um dano absolutamente insignificante, não há fato a punir por absoluta inexistência de tipicidade, pois “la conducta que se incrimine ha de ser inequivocamente lesiva para aquellos valores e intereses expresivos de genuínos ‘bienes juridicos’[2]. “El origen del estudio de la insignificancia se remonta al año 1964, cuando Claus Roxin formuló una primigenia enunciación, la que fuera reforzada — desde que se contemplaba idéntico objeto — por Claus Tiedemann, con el apelativo de delitos de bagatela.[3]

Por óbvio, como explica Cezar Roberto Bitencourt, “a tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico”[4]. Na verdade, trata-se da aplicação no Direito Penal do velho adágio latino minima non curat praetor.

O saudoso penalista e ministro do Superior Tribunal de Justiça Francisco de Assis Toledo já ensinava que, nada obstante Welzel considerar que "o princípio da adequação social bastaria para excluir certas lesões insignificantes", Claus Roxin "propôs a introdução, no sistema penal, de outro princípio geral para a determinação do injusto, o qual atuaria igualmente como regra auxiliar de interpretação. Trata-se do denominado princípio da insignificância, que permite, na maioria dos tipos, excluir os danos de pouca importância. Não vemos incompatibilidade na aceitação de ambos os princípios que, evidentemente, se completam e se ajustam à concepção material do tipo que estamos defendendo. Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas"[5].

Não precisaria, para encerrar, afirmar a minha repulsa pela violência de gênero. Aliás, repudio a violência contra a mulher, contra os afrodescendentes, contra os pobres, contra as crianças, contra os que optam por amar e gozar com alguém etc. etc. Repudio!


[1] Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 1995, p. 467.
[2] Antonio Garcia-Pablos, Derecho Penal – Introducción, Madrid: Servicio Publicaciones Facultad Derecho Universidad Complutense Madrid, 1995, 265.
[3] Enrique Ulises García Vitor, La Insignificancia en el Derecho Penal, Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 20.
[4] Manual de Direito Penal – Parte Geral. Ed. Revistas dos Tribunais. 4ª ed., p. 45.
[5] Princípios Básicos de Direito Penal. Ed. Saraiva. 4ª ed. 1991, p. 132.

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