Segunda Leitura

Direito dos Desastres chega ao Brasil e reclama especialistas

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

24 de setembro de 2017, 10h39

Spacca
O Direito vai mudando conforme a sociedade se transforma. Rotinas de 40 anos atrás (1977) são hoje vistas como se fossem inverídicas ou, no mínimo, absurdas. Mas, naquele momento, eram realidades aceitas e que regulavam a vida em sociedade. “Navegando” na jurisprudência da época, um leitor da geração Y ficaria surpreso com as decisões judiciais. Por exemplo, o crime de sedução dava cadeia, principalmente quando a jovem era considerada “honesta e recatada”, atributos decisivos na avaliação da culpabilidade (Revista dos Tribunais 485/300).

Esse mundo se foi e outro bem diferente veio em seu lugar. Neste, o Direito tornou-se mais amplo e complexo. É possível dizer que os cinco anos de duração do curso só são mantidos por amor à tradição e pelo desejo dos alunos de rumarem para a vida profissional. Na verdade, são insuficientes para o número e extensão das matérias.

Pois bem, neste surpreendente novo mundo, uma das surpresas a que estamos sujeitos é a existência de desastres ambientais em maior número e intensidade. Julia Guivant, em estudo sobre Ulrich Beck e a sociedade de risco, observa que, nela, “o desenvolvimento da ciência e da técnica não poderiam mais dar conta da predição e controle dos riscos que contribuiu decisivamente para criar e que geram conseqüências de alta gravidade para a saúde humana e para o meio ambiente.[i]

Paralelamente ao risco de danos ambientais decorrentes da atividade industrial, existem os decorrentes das forças da natureza, ainda que possam ser influenciados pela ação humana. Para ambos, o Direito tradicional não dá resposta à altura, tantas são as peculiaridades que apresentam.

Daniel Farber, professor da Universidade de Berkeley, na Califórnia, EUA, com clareza observa que “o Direito encontra-se completamente despreparado para lidar com desastres. Uma comunidade crescente de pesquisadores reconhece esse problema e está formulando soluções sob a rubrica de Direito dos Desastres”.[ii]

Este novo ramo do Direito, trazido ao Brasil pelas mãos do professor Delton Winter de Carvalho, da UNISINOS, propõe-se a reunir todos os reflexos jurídicos dos desastres, estudando formas de preveni-los e de repará-los, quando existentes. Próximo ao Direito Ambiental, com o qual tem muito em comum, ele vai além, ao dispor sobre aspectos civis, securitários, previdenciários, econômicos, tributários e outros tantos.

A Lei 12.608/2012, que trata da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil – PNPDEC, tem como objetivo reduzir os riscos dos desastres, proteger as áreas afetadas e socorrer a população atingida. E desastre, conforme art. 2º, inc. II do Decreto 7.257/2010, e o “resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais ou ambientais e conseqüentes prejuízos econômicos e sociais”.

Paulo Affonso Leme Machado observa que referida lei “tem uma característica marcante: o desastre pode e deve ser prevenido. Não é preciso a ocorrência do perigo de desastre, que comportaria a produção de uma prova robusta. Basta o risco do desastre, que, mesmo incerto, obriga a evitar as prováveis consequências de um fenômeno natural ou advindo da ação ou omissão humana”.[iii]

Prevenir significa adotar uma política de redução de riscos, conscientizando a população a respeito, estimulando comportamentos, tomando medidas de cautelas em construções públicas em áreas de risco (v.g., hospitais) e capacitando pessoas. Por exemplo, fazendo testes de evacuação em caso de hipotética necessidade.

Ainda no âmbito da defesa civil, registra-se que tarefa de tal magnitude não pode ficar restrita aos órgãos públicos, deve, também, contar com a participação popular, através de serviço voluntário.

O Plano Diretor dos municípios tem um papel importante a respeito, pois pode mapear as áreas suscetíveis de deslizamentos de maior impacto. Por sua vez, cabe às municipalidades zelar para que referidas áreas não sejam ocupadas e remover os que nela ingressem ilicitamente, também tarefa das mais árduas e relevantes. Delton Winter de Carvalho prega a construção de cidades resilientes, com especial atenção às vulnerabilidades.[iv]

No campo da prevenção, registra-se, ainda, a questão do monitoramento. O acidente de Mariana, MG, que resultou em “pelo menos nove mortos, 15 desaparecidos e mais de 600 desabrigados com o tsunami de lama gerado pelo rompimento de duas barragens da Samarco”[v], segundo o Instituto Nacional de Criminalística, teve como “causas do acidente problemas de manutenção e fiscalização”. [vi]

Os desastres geram uma série de problemas jurídicos. Alguns devem ser solucionados no momento em que ocorrem ou logo após. Por exemplo, corpos podem ter que ser enterrados, ainda que não se identifiquem os falecidos. Órfãos podem necessitar de guarda provisória para a prática urgente de atos da vida civil. Problemas deste tipo surgiram na região serrana do Estado do Rio de Janeiro que, em janeiro de 2011, foi atingida por enchente e deslizamentos que atingiram sete cidades, deixando um saldo de cerca de mil mortos.

Para solucionar estas dificuldades, o CNJ editou a Recomendação 40/2012, que recomenda aos tribunais um “plano de ação para o enfrentamento e solução de situações decorrentes de calamidades e desastres ambientais”[vii], devendo criar um gabinete de crise, a ser acionado em situação de desastre ambiental. Ao que se tem notícia, os Tribunais de Justiça vêm criando gabinetes de crise para situações diversas, como a de combate à violência no TJ do Acre[viii], mas não de riscos ambientais.

A ocorrência de desastre de grandes proporções origina o aparecimento de enorme quantidade de desabrigados. Se assim é, faz-se necessário ter um plano de utilização de áreas disponíveis para tal tipo de emergência, já dotada de estrutura mínima. Por exemplo, um estádio de futebol.

Entretanto, além da solução paliativa, surge a necessidade de abrigar tais pessoas, em definitivo. Uma forma de solução é o pagamento de uma quantia mensal por determinado período. Evidentemente, não é a ideal, mas talvez seja a mais prática. O governo do Estado do Rio de Janeiro criou o aluguel social para vítimas de tragédia no Morro do Bumba, em Niterói, em 2010.

O seguro seria a melhor solução, porém sua aplicação Não se reveste de simplicidade. Primeiro, porque o brasileiro não tem por característica precaver-se contra prejuízos ou até mesmo com fato certo, como a velhice. Além disto, a possibilidade de socorro governamental pode ter um efeito indesejado, qual seja, evitar-se o pagamento do seguro. Finalmente, as seguradoras podem não ter interesse em cobrir eventos de riscos, cuja extensão é difícil de ser dimensionada.

Bruggman, Faure e Heldt apontam exemplo da Suíça, onde “os proprietários são obrigados a contratar seguro residencial contra incêndio e desastres naturais”.[ix] O exemplo tem o mérito de mostrar a obrigatoriedade do seguro, no entanto, entre aquele país europeu e o Brasil, a única semelhança talvez seja o gosto por chocolate.

Ponto em que há unanimidade entre os estudiosos, é o de que os desastres atingem mais os vulneráveis, porque moram em áreas de risco e não dispõem de meios para proteger-se.

Finalmente, Fernanda Dalla Libera Damacena, em estudo que cita decisões de vários Tribunais de Justiça, observa, com razão, que elas “têm papel altamente relevante na formação e orientação desse horizonte de futuro ”.[x]

Assim, aí está um novo campo de atuação dos profissionais do Direito, um fato novo a exigir profissionais especializados.

 


[i] A teoria da sociedade de risco de Ulrich Beck: entre o diagnóstico e a profecia, disponível em http://r1.ufrrj.br/esa/V2/ojs/index.php/esa/article/view/188/184, acesso em 23/9/2017.

[ii] FARBER Daniel. Navegando a interseção entre o Direito Ambiental e o Direito dos Desastres. In: Estudos aprofundados em direito dos desastres. Interfaces comparadas, org. Daniel Farber e Delton Winter de Carvalho. Curitiba: Ed. Prismas, 2017, p. 27.

[iii] LEME MACHADO, Paulo Afonso. Os desastres ambientais e a ação civil pública. In: Estudos aprofundados em direito dos desastres. Interfaces comparadas, org. Daniel Farber e Delton Winter de Carvalho. Curitiba: Ed. Prismas, 2017, p. 380.

[iv] CARVALHO, Delton Winter de. O papel dos planos de bacia hidrográfica na ordenação territorial sob a ótica do Direito dos Desastres. In: Estudos aprofundados em direito dos desastres. Interfaces comparadas, org. Daniel Farber e Delton Winter de Carvalho. Curitiba: Ed. Prismas, 2017, P.340.

[ix] BRUGGMAN, Veronique, FAURE, Michael e HELDT, Tobias.Seguros contra catástrofes: medidas de estímulo do governo para impulsionar os mercados de seguros diante de eventos catastróficos. In: Estudos aprofundados em direito dos desastres. Interfaces comparadas, org. Daniel Farber e Delton Winter de Carvalho. Curitiba: Ed. Prismas, 2017, p. 286.

[x] DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Limites e possibilidade da prestação jurisdicional na redução da vulnerabilidade. In: Estudos aprofundados em direito dos desastres. Interfaces comparadas, org. Daniel Farber e Delton Winter de Carvalho. Curitiba: Ed. Prismas, 2017, p. 475.

 

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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