Opinião

Após um ano de vigência, Lei das Estatais ainda depende de jurisprudência

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24 de setembro de 2017, 7h33

A Lei de Empresas Estatais (Lei 13.303/2016), editada em julho de 2016, teve por objetivo principal a regulamentação de diversos pontos lacunosos no ordenamento jurídico brasileiro em relação às empresas estatais, sobretudo em decorrência de previsão específica da Constituição Federal (art. 173, § 1º), que determinava que lei específica disciplinaria o estatuto jurídica da empresa estatal.

A Lei nº 13.303/2016 chegou a ser chamada como “Lei de Responsabilidade das Empresas Estatais”, conforme observou o Governo Federal quando de sua sanção, demonstrando o tom moralizador em sua edição, sobretudo em um contexto após a “Operação Lava-Jato”.

Em síntese, os pontos de regulamentação da Lei de Empresas Estatais mais importantes são os seguintes: i) a necessidade de que as empresas estatais possuam mecanismos específicos de compliance e governança corporativa; ii) a existência de um procedimento licitatório específico, bem como alterações significativas no regime de contratos; e, iii) a necessidade de que cada empresa estatal possa realizar a edição de regulamentos de licitação e contratos, disciplinando o regime de contratação às suas especificidades (o que será tema .

Todavia, passado 1 (um) ano de vigência (ou parcial vigência, como se verificará) da Lei de Empresas Estatais, é preciso que se faça um breve retrospecto daquilo que já foi efetivamente alcançado e o que podemos/precisamos aprimorar.

Primeiramente, destaca-se que a Lei de Empresas Estatais não traz uma redação muito clara a respeito de sua própria vigência, o que dificultou a sua aplicabilidade plena, em todas as esferas governamentais. O art. 91, caput, estabelece que “empresa pública e a sociedade de economia mista constituídas anteriormente à vigência desta Lei deverão, no prazo de 24 (vinte e quatro) meses, promover as adaptações necessárias à adequação ao disposto nesta Lei”. Além disso, o art. 91, § 1º, prescreve que as empresas estatais poderiam continuar aplicando as regras anteriores no que se refere a licitações e contratos.

Conforme chegou a observar Egon Bockmann Moreira, “a Lei incide de imediato mas não incide de imediato. Pode-se imaginar que os atos e fatos a ser praticados depois do dia 30 de junho de 2016 deverão obediência irrestrita à Lei 13.303/2016 (por exemplo, a nomeação de diretores deve cumprir o art. 17). O mesmo se diga quanto às leis que autorizem a criação de estatais”.

Ao que tudo indica, a Lei de Empresas Estatais incidiria em partes, ou em tiras, com esta possibilidade aberta de que as empresas estatais tivessem o prazo de 24 (vinte e quatro) meses para adaptar as disposições da Lei nº 13.303/2016, no que se refere a licitações e contratos, por meio dos regulamentos licitatórios específicos. Assim sendo, cumpre analisar o cumprimento das previsões da referida Lei em relação aos seus dois temas mais sensíveis e de mais urgente regulamentação.

  1. Critérios específicos para indicação de administradores

A principal inovação da Lei nº 13.303/2016, em relação ao controle dos conflitos de agência (controlador x interesse da Companhia) nas empresas estatais, parece ser a vedação de indicações sem qualificação técnica para o Conselho de Administração, Diretores, Diretor-Geral e Diretor-Presidente.

É exigido que os indicados tenham experiência mínima de 10 (dez) anos no setor público ou privado, ou pelo menos tenham ocupado durante 4 (quatro) anos cargos relacionados à sua área de dedicação, seja na Administração Pública, ou no mercado privado ou como profissionais liberais.

Além de estabelecer estes limitadores em relação à qualificação dos proponentes, a Lei nº 13.303/2016 estabelece limites consideráveis em relação aos integrantes da Administração Pública. É terminantemente vedada a indicação de integrantes da Administração Pública ou do órgão ao qual a sociedade estatal responde diretamente para as mencionadas funções de gestão.

Há limites àqueles que atuaram nos últimos 36 (trinta e seis) meses como membros de estrutura decisória de partidos políticos, que exerçam cargo em organização sindical, que tenham sido contratados ou possuam parceria com a sociedade estatal ou qualquer pessoa que possa ter conflito de interesse com a sociedade estatal.

Neste um ano vigência, a dúvida se impunha a respeito da vigência plena das disposições relativas às indicações e nomeações, sobretudo pela possibilidade de que as empresas teriam 24 (vinte e quatro) meses para se adaptar às suas disposições.

Contudo, a mero título de exemplo, no mês de janeiro de 2017, a 8ª Vara Federal do Distrito Federal, em medida liminar, em ação requerida por entidade sindical dos funcionários dos Correios, determinou que 6 (seis) nomeações da Vice-Presidência da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) teriam contrariado a Lei nº 13.303/2016, com a ordem de imediata suspensão dos seus efeitos.

O Juiz Federal da 8ª Vara Federal considerou que a “Lei nº 13.303/2016, ao criar um lapso temporal de 24 (vinte e quatro) meses para que as estatais promovam as adaptações necessárias à adequação ao disposto na referida Lei, estabeleceu apenas uma regra transitória aos atuais conselheiros e diretores, nomeados antes da edição da Lei, mantendo-os nos respectivos cargos até o término de seus mandatos, limitados exatamente a dois anos, conforme o disposto no art. 13, VI, da citada norma legal”.

Entretanto, atualmente, ao que se tem notícia, a decisão encontra-se suspensa por decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que levou em consideração o risco de dano no afastamento imediato de seis de seus Vice-Diretores: “tenho também caracterizada a possibilidade de advir à ora agravante, até julgamento do presente recurso, dano de difícil reparação com a suspensão do exercício de seis vice-presidentes, diante das competências da Diretoria-Executiva da empresa pública, sua composição – presidente e oito vice-presidentes -, e da circunstância de que seus membros, à exceção do presidente, serão substituídos, em casos de ausência temporária, afastamentos ou impedimentos eventuais, por um dos demais vice-presidentes, indicado pelo Presidente e aprovado pela Diretoria-Executiva”.

Ao que tudo indica, a redação não muito clara da Lei nº 13.303/2016 sobre a sua exata vigência trouxe esta dificuldade interpretativa quanto aos requisitos para a nomeação de administradores e diretores.

Entende-se que a dúvida não mais subsiste, nomeadamente por conta da regulamentação da Lei nº 13.303/2016, por meio do Decreto Presidencial nº 8.945/2016, no âmbito da Administração Pública Federal, que estabelece no seu art. 30 a necessidade de observância imediata a partir da publicação da regulamentação: “Os requisitos e as vedações para administradores e Conselheiros Fiscais são de aplicação imediata e devem ser observados nas nomeações e nas eleições realizadas a partir da data de publicação deste Decreto, inclusive nos casos de recondução”.

Assim, espera-se que todas as nomeações, doravante, observem os requisitos da Lei nº 13.303/2016, de modo a reduzir a ingerência do controlador nas empresas estatais e aumentar o grau de profissionalismo na condução de seus negócios.

  1. Regime de licitações e contratos

Quanto ao regime de licitações e contratos, as inovações da Lei nº 13.303/2016 ainda não foram tão sentidas, nomeadamente pelo estabelecimento de longo prazo, até que cada empresa estatal venha a editar seu regulamento próprio de licitações e contratos.

Até o momento, por sua vez, grandes empresas estatais federais já editaram os seus respectivos regulamentos, como o Banco do Brasil (BB), a Caixa Econômica Federal (CEF), a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (INFRAERO).

Por outro lado, muito embora os respectivos documentos das estais mencionadas não tragam muitas alterações ou inovações em relação ao regime licitatório exposto pela própria Lei nº 13.303/2016, é de se destacar que o Tribunal de Contas da União já possui relevantes precedentes em relação ao regime de licitação e contratos da Lei de Empresas Estatais.

Observa-se que o Tribunal de Contas da União já se manifestou no sentido de que mesmo que as empresas estatais que ainda não regulamentaram o seu Regulamento de Licitações e Contratos, devem tomar como base os critérios de verificação de sobrepreços da Lei nº 13.303/2016 (como no caso da Petrobras):

Enquanto não forem de observância obrigatória (art. 91) as disposições da Lei 13.303/2016 pelas empresas estatais, estas deverão justificar suficientemente as contratações efetivadas por preço superior ao valor orçado, vez que o preço máximo admissível nas licitações reguladas pelo novo diploma legal é o próprio preço estimado da contratação (art. 56, inciso IV)

(TCU. Acórdão nº 1.549/2017, Plenário, Representação, Relator Ministro José Múcio Monteiro).

 

Quanto à necessidade de divulgação dos valores estimados dos contratos a ser celebrados pelas empresas públicas, o art. 34, da Lei nº 13.303/2016, ressalva expressamente “[o] detalhamento dos quantitativos e das demais informações necessárias para a elaboração das propostas” do sigilo da proposta. Ou seja, muito embora o valor estimado do contrato a ser celebrado pela empresa estatal seja sigiloso, os itens que compõem as propostas, como as planilhas, são ressalvados do sigilo imposto pelo art. 34, caput, da Lei nº 13.303/2016.

O TCU, em entendimento sobre o sigilo da contratação da empresa estatal, já estabeleceu:

Nas licitações realizadas pelas empresas estatais, ainda que o valor estimado da contratação seja sigiloso, qualquer modificação no orçamento estimativo que envolva o detalhamento dos quantitativos e as demais informações necessárias para a elaboração das propostas deve ser objeto de divulgação nos mesmos termos e prazos dos atos e procedimentos originais, ensejando a reabertura do prazo para apresentação das propostas, nos termos do art. 39, parágrafo único, da Lei 13.303/2016

(TCU. Acórdão nº 3.059/2016, Plenário, Representação, Relator Ministro Benjamin Zymler).

Em relação ao art. 32, IV, da Lei nº 13.303, ficou estabelecido que as empresas estatais devem adotar, preferencialmente, o regime de pregão eletrônico. Em recente entendimento, o TCU já decidiu que as Empresas Estatais devem observar a preferência da modalidade de licitação de pregão, na forma eletrônica, para a aquisição de bens e serviços, conforme o art. 32, IV, da Lei nº 13.303/2016:

[No presente caso] verificou-se na Concorrência Emgea 01/2016 a escolha indevida da modalidade concorrência, do tipo técnica e preço, uma vez que não restou demonstrada a impossibilidade da especificação de critérios técnico-operacionais que viessem a estabelecer a capacidade mínima razoável de atendimento condizente com os padrões de qualidade, rendimento e produtividade dos serviços que se desejava contratar, sendo a jurisprudência do TCU remansosa quanto à obrigatoriedade de utilização da modalidade pregão, de preferência na forma eletrônica, para a contratação de bens e serviços comuns, bem como diante do disposto no art. 32, inciso IV, da Lei 13.303/2016.
(TCU. Acórdão nº 2.853/2016, Plenário, Tomada de Contas. Relator: Ministro Raimundo Carreiro)

Mesmo que cada empresa estatal tenha a prerrogativa de regulamentar as suas especificidades, acredita-se que o Tribunal de Contas da União já possui precedentes no sentido de dar guarida/proteção ao regime de licitação e contratos específico para as empresas estatais (o que não era admitido anteriormente com a Petrobras).[1]

Conclusão 

Em conclusão, este um ano de vigência da Lei de Empresas Estatais (ainda que em partes) demonstrou que a incidência plena de muitas de suas disposições ainda dependerá daquilo que ainda está por vir.

O atingimento do prazo de 24 (vinte e quatro) meses desde a sua edição, no ano de 2018, quando a sua observância se tornará obrigatória a todas as empresas públicas e sociedades de economia mista brasileiras, será crucial para a definição do futuro da Lei de Empresas Estatais, mesmo que já se considere que as disposições relativas à governança corporativa estejam em pleno vigor (como o próprio Decreto Presidencial nº 8.945/2016 faz inferir).

No específico caso do regime de licitações e contratos da Lei de Empresas Estatais, observou-se que o Tribunal de Contas da União vem se posicionando de maneira favorável ao seu regime, determinando que várias empresas estatais federais já observem as disposições da Lei nº 13.303/2016, mesmo que estas não tenham editado regulamento específico de licitações e contratos.

 


[1] Destaca-se que o Tribunal de Contas da União chegou a declarar a inconstitucionalidade do regime licitatório diferenciado da Petrobras, mas cuja decisão encontra-se suspensa por determinação do Supremo Tribunal Federal.

Autores

  • Brave

    é doutorando em Direito do Estado pela UFPR, mestre em Direito pela USP e advogado em Curitiba na área de Direito Público.

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