Contas à Vista

Universidades públicas agonizam pela falta de recursos

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19 de setembro de 2017, 8h00

Spacca
A crise financeira que assola o país está se assemelhando a um verdadeiro “furacão” que não para de produzir vítimas. E mostra como a má gestão pode produzir resultados muito piores do que desastres naturais de grandes proporções. Enquanto o furacão Irma destelhou casas, causou danos materiais e até mortes, por aqui alguns anos de administrações que foram um verdadeiro desastre, e nada natural, provocaram a destruição de nossas universidades públicas que levaram décadas para serem construídas.

Nas últimas semanas chamou especial atenção o caso da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que está “agonizante”, asfixiada por falta de recursos, tendo recebido até uma “extrema unção” do governo federal, que insinuou deva ser extinta.[1] Mas não é a única. A Universidade de São Paulo (USP) já teve o auge de sua crise há pouco tempo, e ainda sofre com o orçamento apertado. As Universidades federais também estão em colapso. A Universidade Federal de Sergipe (UFS) ameaçou suspender as atividades, a Universidade de Brasília (UnB) anunciou um déficit acumulado de R$ 10 milhões de reais no ano e o desligamento de funcionários terceirizados, a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) demitiu funcionários e suspendeu obras em andamento e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) ameaça suspender os pagamentos das bolsas de iniciação científica.[2]

Um cenário desolador, como registra Sabine Righetti em percuciente análise do tema.[3] Em resumo, a crise financeira instalou o caos no ensino público superior. E uma crise que não escolhe ente federado, haja vista que abrange várias universidades federais e também estaduais. A questão do financiamento das universidades é bastante interessante sob o ponto de vista do Direito Financeiro, e há várias questões que merecem abordagem e melhor reflexão.

Nosso federalismo cooperativo fica bem evidente no âmbito da educação, em que a Constituição distribui as receitas e encargos entre os entes federados, estabelecendo um regime de cooperação para a prestação desse serviço público fundamental para o desenvolvimento do país. E onde se vê uma distribuição que procura respeitar critérios de eficiência alocativa, deixando a cada ente federado a responsabilidade por atender a necessidade em matéria educacional que melhor se ajusta às suas características. É o que justifica a atribuição prioritária aos Municípios da responsabilidade pelo ensino fundamental e educação infantil (Constituição, artigo 211, b), onde a mobilidade do usuário é baixa. Já no ensino superior, em que o usuário tem facilidade de locomoção, os níveis mais próximos do governo central mostram-se mais adequados sob o ponto de vista federativo, evitando as distorções do “efeito-carona” (free-rider effect).[4]

Daí porque a maior parte das universidades públicas integra a administração pública federal, e apenas alguns estados financiam o ensino público superior, mantendo universidades próprias. Nossa Constituição dá especial destaque ao ensino superior e às universidades, assegurando-lhes “autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial” (art. 207, caput). A autonomia financeira de órgãos que integram o ente federado, à semelhança dos poderes, ainda que fixada constitucionalmente, é sempre relativa, até porque a capacidade arrecadatória de que dispõem é muito pequena, insuficiente para fazer frente às vultosas despesas nas quais incorrem, como as relativas ao pagamento de pessoal.

Sendo assim, a regra é dependerem de dotações orçamentárias, com recursos oriundos essencialmente do sistema próprio de arrecadação do ente federado, e que se soma a outras fontes de naturezas diversas, como as arrecadações próprias, transferências, contratos, doações e outros. E são valores expressivos.

No âmbito federal, há inclusive um volume do anexo da lei orçamentária de 2017 (vol. V) especificamente destinado a detalhar as despesas do Ministério da Educação, que congrega as instituições de ensino superior federais. Prevê para este exercício de 2017 um montante superior a 100 bilhões de reais (R$ 107.517.408.946,00), distribuído entre dezenas de universidades, institutos, fundações e hospitais.[5]

Nos estados que mantêm instituições de ensino público superior, a situação não é diferente. Em São Paulo, destacam-se as três universidades públicas estaduais: USP (Universidade de São Paulo), Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e Unesp (Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho), cujas dotações orçamentárias para o exercício financeiro de 2017 são, respectivamente, R$ 5.052.466.860,00, R$ 2.711.717.611,00 e R$ 2.497.059.952,00, perfazendo um total, para as três universidades, superior a 10 bilhões de reais. A Uerj foi contemplada com dotação orçamentária superior a 1 bilhão de reais para o exercício financeiro de 2017.[6]

Alguns instrumentos importantes para assegurar a autonomia financeira das universidades públicas podem ser encontrados, como nos estados acima citados, e colaboram para torná-las mais independentes sob o ponto de vista da gestão financeira, o que, como se pode constatar, parece não ter sido suficiente para evitar as crises pelas quais tem passado.

No estado de São Paulo criou-se um compromisso político de se destinar às três universidades estaduais um porcentual (9,57%) da arrecadação do ICMS, o que se materializa juridicamente pela inserção de tal determinação nas leis de diretrizes orçamentárias, que se renovam anualmente, criando o que André Carvalho denomina de “vinculação simbólico-institucional”.[7] O Rio de Janeiro optou por dar uma garantia constitucional à UERJ, fazendo constar de sua Constituição a destinação do porcentual mínimo de 6% da receita tributária líquida.[8]

No entanto, apesar de todas essas garantias, vê-se que não se conseguiu evitar esse colapso financeiro. Disso é importante extrair algumas lições. Uma delas é de que as vinculações (entendidas em seu significado “lato sensu”, abrangendo aquelas que importam na destinação de receitas específicas a determinados gastos, as despesas mínimas obrigatórias e outros instrumentos do gênero) não são uma panaceia para os problemas financeiros.[9]

Nos casos citados em que elas estavam presentes, vê-se que o fato de a recessão econômica provocar a redução das receitas tributárias (hipótese do Rio de Janeiro) e do ICMS (no caso de São Paulo) fez com que houvesse uma queda nos recursos destinados às universidades públicas, e estas, sem margem para reduzir suas despesas, viram-se diante de uma situação de insustentabilidade financeira difícil de reverter.

Outra lição é que as universidades padecem da falta de gestores preparados, como ressaltou José Matias-Pereira, professor de finanças públicas da UnB, que considerava esse colapso uma “tragédia anunciada”.[10] Aperfeiçoamentos na gestão dos recursos públicos são cada vez mais necessários em toda a administração pública, e na área da educação a situação não é diferente.[11] Em se tratando de áreas prioritárias como a educação, as vinculações são mais do que bem vindas, e colaboram para evitar que gestores despreparados reduzam os recursos que deveriam lhe ser destinados realocando para setores menos relevantes. Mas não podem ser mal aplicados, especialmente em épocas de crise financeira, em que os recursos ficam cada vez mais escassos, e portanto mais valiosos.

Há muitos hospitais universitários entre as unidades orçamentárias que integram o ensino superior do Brasil hoje. Agora que as universidades públicas estão verdadeiramente na UTI, é hora de eles mostrarem sua utilidade, antes que nos próximos orçamentos passemos a encontrar funerárias no orçamento da educação.


[1] O Parecer Conjunto  1/2017/CORFI/COREM/COPEM/COAFI/COINT/SURIN/STN/MF-DF propõe a extinção de mais empresas públicas e revisão do papel do Estado, e entre as medidas de ajuste sugere “a revisão da oferta de ensino superior” (“Parecer do Ministério da Fazenda sugere o fim da UERJ”, in Jornal do Brasil, 5.9.2017; “Tesouro sugere ‘revisão da oferta’ de universidades públicas do Rio”, in Portal UOL, 5.9.2017).
[2] “Acabou o dinheiro: universidades públicas estão perto do colapso”, por Gabriel Castro, in Gazeta do Povo, 8.8.2017.
[3] RIGHETTI, Sabine. Crise nas universidades, in Ciência e  Cultura, vol. 69, n. 2, São Paulo, abr/jun 2017.
[4] Falei sobre o tema em “O orçamento público e o financiamento da educação no Brasil”, in (HORVATH, Estevão; CONTI, José Mauricio; SCAFF, Fernando F. (Orgs.). Direito Financeiro, Econômico e Tributário. Homenagem a Regis Fernandes de Oliveira. São Paulo: Quartier Latin, 2014, pp. 481-496.
[5] Lei Orçamentária Federal de 2017 (Lei 13.414, de 10.1.2017, vol. V).
[6] R$ 1.113.007.786,00, cf. Lei Estadual-RJ n. 7574, de 17.1.2017, vol. II, p. 370, Unidade orçamentária 4043 – Fundação Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
[7] CARVALHO, André Castro. Vinculação de receitas públicas. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 43.
[8] Art. 309, § 1º – O poder público destinará anualmente à Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, dotação definida de acordo com a lei orçamentária estadual nunca inferior a 6% da receita tributária líquida, que lhe será transferida em duodécimos, mensalmente.
[9] Como já foi abordado na coluna Vinculações orçamentárias não são a panaceia dos problemas, publicada em 8/4/2014, e que consta do livro “Levando o Direito Financeiro a sério”, edição Blucher-Conjur, 2016, pp. p. 133-136, cuja versão impressa pode ser adquirida na Livraria ConJur, e a versão eletrônica gratuita baixada no site da editora Blucher.
[10] “Acabou o dinheiro: universidades públicas estão perto do colapso”, texto já citado anteriormente.
[11] Veja-se a coluna Nem só com royalties se melhora qualidade da educação, publicada em 30.7.2013, e que consta do livro mencionado na nota de rodapé 9, pp. 31-34.

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