Opinião

A natureza autoritária de decisões recentes do Supremo Tribunal Federal

Autor

  • Pedro Benedito Maciel Neto

    é advogado pós-graduado em Processo Civil Filosofia Social e Planejamento Fiscal pela PUC-SP tendo cursado Economia Monetária no IE da Unicamp sócio da Maciel Neto Advocacia autor de Reflexões sobre o Estudo do Direito (ed. Komedi) conselheiro da Sanasa S.A ex-professor universitário ex-secretário municipal em Campinas e Sumaré.

16 de setembro de 2017, 9h00

Recentemente o advogado Ives Gandra afirmou que há um desequilíbrio nas ações exercidas pelo Poder Judiciário, poder que vem atuando como se fosse o Poder Legislativo e o Ministério Público se acha no direito de tomar decisões que geram desemprego e maculam a imagem do país no exterior. O advogado diz que hoje “temos a ditadura do Ministério Público e do Judiciário” [1].

Bem, em setembro de 2008 escrevi que as relações entre o sistema judicial e o sistema político atravessavam um momento de tensão sem precedentes[2], afirmei que a judicialização da política conduziria à politização do Judiciário, o que parece ter ocorrido.

Para qualificar o meu argumento citei a opinião do sociólogo português Boaventura Santos, que ensina haver judicialização da política sempre que os tribunais, no desempenho normal das suas funções, afetam de modo significativo as condições da ação política ou de questões que originariamente deveriam ser resolvidas na arena política e não nos tribunais.

A judicialização pode ocorrer por duas vias principais. A primeira, de baixa intensidade, ocorreria quando membros isolados da classe política são investigados e eventualmente julgados por atividades criminosas que podem ter ou não relação com o poder ou a função que a sua posição social destacada lhes confere.

A segunda, chamada de alta intensidade, ocorreria quando parte da classe política, não se conformando com suas derrotas ou não podendo resolver a luta pelo poder através dos mecanismos habituais do sistema político democrático, transfere para os tribunais os seus conflitos internos, através de denúncias ao Ministério Público ou ajuizando ações diversas.

Bem, nesses tempos sombrios há exemplos, aos montes, da judicialização de alta intensidade e dos efeitos nefastos que ela e a politização do judiciário e do Ministério Público causam. Podemos citar o mandado de segurança impetrado pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro em face de ato da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados para suspender a tramitação de PL aprovado na Câmara dos Deputados e enviado ao Senado Federal.

Essa iniciativa do deputado é triste exemplo de judicialização da Política de alta intensidade. O citado mandado de segurança afirmava que uma Emenda de Plenário, acessória ao Projeto de Lei 4.850/2016, acrescentou um substitutivo sobre crimes de abuso de autoridade de magistrados e membros do ministério público ao PL original e que tal acréscimo seria inconstitucional, pois estaria violado o devido processo legislativo.

O deputado paulista sustentava que a emenda de plenário violaria o âmbito do anteprojeto de iniciativa da lei anticorrupção, acrescentando matéria que fugiria ao objeto do projeto. Por isso tudo requereu liminar para a anulação da votação da Emenda bem como a cessação de seus efeitos na redação final da Câmara dos Deputados e, consequentemente, a supressão do Título III (artigos 8º e 9º) do Projeto de Lei da Câmara nº 80/2016, então em tramitação no Senado Federal.

A decisão coube ao ministro Luiz Fux que argumentou e fundamentou segundo sua convicção e concedeu a liminar para suspender os efeitos dos atos praticados no bojo do processo legislativo referente ao citado PL.

A suspensão dos efeitos praticados no bojo de processo legislativo é, em si, uma violência institucional, comparável aos atos institucionais da ditadura militar, mas reputo ainda mais grave a determinação do ministro Fux de retorno do PL, então em tramitação no Senado Federal, à Câmara dos Deputados.

Ou seja, o Ministro do STF interferiu no processo legislativo. Uma interferência inadmissível de um poder no outro. Qual era a norma emanada do Congresso que mereceria intervenção liminar de órgão monocrático do STF? A resposta é nenhuma. O PL ainda tramitava.

O STF, cuja competência está definida no artigo 102 da Constituição Federal, poderia suspender os efeitos de Projeto de Lei que ainda tramita no Congresso Nacional? Penso que não. A liminar de Fux representou violência sem precedentes à independência dos poderes; tal violência refletiu esse tempo sombrio no qual a aristocracia urbana, especialmente a togada, busca relativizar a democracia representativa e substituí-la por algo muito próximo de um estado de exceção e de viés claramente totalitário.

É inegável a natureza autoritária dessa e de muitas outras decisões do STF. Me lembro de entrevista à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, em que Ives Gandra afirmou que o ex-ministro José Dirceu fora condenado sem provas pelo STF[3] e que a tal Teoria do Domínio do Fato havia sido aplicada de forma inédita e autoritária pelo STF para condená-lo e que, ainda de acordo com o citado jurista, tal ineditismo trazia insegurança jurídica "monumental" e permitiria que, a partir daquele momento, um inocente pudesse ser condenado com base apenas em presunções e indícios.

Tanto na liminar de Fux, quanto no julgamento da AP 470, o STF criou normas, arvorou-se colegislador. No caso do MS de Bolsonaro o STF “deu de ombros” ao Poder Legislativo e no caso de Zé Dirceu o condenou "porque a literatura permitia" e não porque havia provas.

No caso de Bolsonaro o Ministro Fux deveria ter aguardado existir uma lei para declara-la inconstitucional ou não, mas preferiu monocraticamente interferir no processo legislativo. No caso de Zé Dirceu, o Plenário do STF introduziu no ordenamento jurídico a condenação sem provas.

Criar normas pode derivar da fé de membros do STF de que essa função é prerrogativa compartilhada entre o STF e o Congresso (pode até ser, mas há limites para isso). Bem, não sou daqueles que afirmam que há indevida interferência na esfera legislativa sempre que o STF invalida ou dá uma nova interpretação a uma lei, por outro lado é inegável que é prerrogativa do Congresso Nacional a elaboração de normas jurídicas e não ao STF.

Ou seja, a invalidação ou interpretação de uma lei pelo colegiado do STF é fato normal e necessário, mas não é dado aos integrantes do STF, nem de nenhum outro tribunal promover inovações no ordenamento normativo como se parlamentares fossem, mas ao Poder Judiciário não é dado o poder de criar normas jurídicas.

Essa interferência do STF no Legislativo é algo que comprometeu a separação dos poderes, ultrapassou o campo da tensão entre os poderes e lançou o país num caos institucional sem precedentes. Se fosse aceitável o Poder Judiciário criar leis se estaria negando dois princípios adotados pela constituição brasileira: a separação de poderes, arranjo por meio do qual se busca prevenir o abuso de poder e a democracia, ideal político que almeja institucionalizar um governo do povo.

Esses dois princípios conferem ao parlamento eleito, e somente a ele, a função de legislar, e aos outros dois poderes outro papel de acordo com a constituição. O controle judicial de constitucionalidade é competência do STF e permite ao Supremo declarar a inadequação de uma lei em relação ao texto constitucional, nada além disso.

Mas nem de longe o controle judicial de constitucionalidade dá a qualquer órgão do STF o status de colegislador, pois a atividade de controle não faz da suprema corte um legislador positivo (aquele que cria normas), mas apenas um legislador negativo, que se limita a vetar certas normas emanadas do Congresso Nacional, permanecendo assim preservada a integridade da separação de poderes e da democracia.

Transformar o Poder Judiciário em colegislador, como pretendem alguns, tem viés elitista e golpista, pois falta ao Poder Judiciário: legitimidade jurídica, legitimidade Política e competência institucional para criar leis. Contudo para nossa tristeza, tristeza dos democratas, o STF se porta como um colegislador positivo e com isso quebrou a tradição de nunca invadir as competências de outro poder.

Isso tudo é uma violência e um crime que se comete contra a Constituição da República. Por isso e com fundamento no artigo 49, inciso XI, da Constituição, cabe ao Congresso anular todas as decisões do STF que representem violência contra o Legislativo para colocar ordem no caos.

Mas e sociedade? Como a sociedade fará para proteger-se nesse tempo de colapso institucional, esquizofrenia dos diversos atores de todos os Poderes e processos kafkianos?


[1] Boletim da AASP 3043, p. 20.

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