Ambiente Jurídico

A participação como escopo político da jurisdição em matéria ambiental

Autor

  • Álvaro Luiz Valery Mirra

    é juiz de Direito em São Paulo doutor em Direito Processual pela USP especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França) coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

16 de setembro de 2017, 8h00

Spacca
No último dia 18 de agosto, o Instituto Brasileiro de Direito Processual e a comunidade jurídica brasileira renderam justa homenagem ao professor Cândido Rangel Dinamarco, por ocasião do 80º aniversário do eminente jurista. Com atuações destacadas no Ministério Público, na Magistratura e na Advocacia, Cândido Dinamarco tem se notabilizado, ainda, como um dos grandes processualistas brasileiros de todos os tempos, de renome internacional, desenvolvendo pesquisas e formando diversas gerações de estudiosos do direito processual na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Autor de extensa obra na área do processo civil, Dinamarco, com sua tese intitulada A Instrumentalidade do Processo, foi o grande responsável pelo desenvolvimento, no Brasil, de uma visão instrumentalista do processo civil dotada de amplitude jamais vista e imaginada pela doutrina até então.

Privilegiando a análise do sistema processual pelo ângulo externo, vale dizer, a partir dos resultados que se esperam do processo em prol dos destinatários do exercício da jurisdição e da sociedade como um todo, Cândido Dinamarco descortinou diversos objetivos, variados escopos a serem atingidos pela jurisdição, não só de natureza jurídica, como também de ordem social e política. Assim, desde A Instrumentalidade do Processo deixou de ser suficiente o estudo do processo como mero instrumento do direito material, sem a devida consideração de outros fins a serem cumpridos pelo ordenamento processual nos planos ético, social e político.[1]

Nessa ordem de ideias, sistematizou o ilustre Professor como sendo de três ordens os escopos da jurisdição e do sistema processual no Estado contemporâneo: sociais, jurídico e políticos.

Os escopos sociais da jurisdição consistem na pacificação com justiça e na educação para o exercício e o respeito aos direitos. O escopo jurídico da jurisdição evidencia-se na atuação da vontade concreta do direito, vale dizer, na realização do direito material aplicado aos casos concretos. E os escopos políticos da jurisdição consistem na afirmação da capacidade do Estado de decidir imperativamente e impor as suas decisões, na concretização do culto ao valor liberdade (hoje, ao valor dignidade humana) e na viabilização da participação dos cidadãos nos destinos da sociedade.[2]

Essa orientação aplica-se integralmente ao sistema de direito processual coletivo, por intermédio do qual se dá a proteção judicial do meio ambiente, anotadas as peculiaridades da jurisdição na matéria, em razão da natureza dos conflitos levados ao exame dos juízes (metaindividual), da especificidade do direito incidente nos casos concretos — de titularidade coletiva e caráter intergeracional — e dos objetivos perseguidos com o seu exercício — não só a pacificação e a realização do direito material, como, também, de forma bastante acentuada, a participação pública destinada a assegurar vigilância e controle social mais amplos e efetivos sobre as ações e omissões dos particulares e do próprio Estado que repercutem sobre a qualidade ambiental.[3]

Importante notar que, dos escopos da jurisdição acima assinalados, os políticos são, sem dúvida, aqueles que, de forma mais decisiva, definem a especificidade do exercício da jurisdição em matéria ambiental, sobressaindo-se, dentre todos, a participação. Aqui, a jurisdição ganha relevância como espaço institucional capaz de veicular a participação pública na preservação da qualidade ambiental, tema central no direito ambiental.

De fato, por se tratar de uma questão eminentemente política, relacionada em última instância à própria definição do modo de vida em sociedade e da estrutura de produção e consumo socialmente desejável, tem-se entendido que a necessidade de proteção do meio ambiente somente pode ser equacionada de maneira adequada com a participação democrática dos cidadãos. Por essa razão, não basta que a participação pública ambiental se desenvolva informalmente ou no âmbito das funções legislativa e administrativa. É preciso, também, que a participação em tema de meio ambiente encontre no âmbito da função jurisdicional seu espaço institucional, dentro do contexto do acesso à justiça.[4]

Registre-se que, no Brasil, o acesso participativo à justiça em matéria ambiental tornou-se realidade com a disciplina constitucional e infraconstitucional do processo coletivo, em que se abriu a titularidade do poder de agir em juízo na defesa do meio ambiente aos indivíduos e aos entes representativos dos interesses da sociedade na preservação da qualidade ambiental, tanto privados, como as associações civis, quanto públicos, como os entes estatais independentes (Ministério Público, Defensoria Pública). A propósito, a Constituição de 1988, ao cuidar de diversos instrumentos processuais capazes de propiciar a proteção jurisdicional do meio ambiente, como a ação popular, a ação civil pública, o mandado de segurança coletivo e as ações direta de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade de leis e atos normativos, estabeleceu, no próprio texto constitucional, um nível mínimo de participação pela via do processo civil, ao atribuir, conforme o caso, a legitimidade ativa ao cidadão, ao Ministério Público, à Defensoria Pública e a outros entes intermediários (associações civis, sindicatos, OAB), o que foi reforçado nas leis infraconstitucionais.[5]

Como qualquer modalidade de participação pública ambiental, a participação pelo processo e pela via da jurisdição na defesa do meio ambiente visa a ampliar a participação da sociedade na gestão da qualidade ambiental, como forma de aproximar o exercício do poder à vontade concreta do povo. Nesse sentido, a participação judicial ambiental não apenas permite à sociedade fazer valer os princípios e objetivos da política nacional do meio ambiente em face dos particulares, como também conduz, frequentemente, à integração e ao reforço da atuação estatal na área ambiental, chegando ao ponto, muitas vezes, de viabilizar a correção e a execução, pela via judicial, de programas de ação e de políticas públicas ambientais, sobretudo nas situações de inércia da Administração Pública[6], sem que se possa falar na violação ao princípio da separação dos poderes, como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal.[7]

São inúmeros, no ponto, os exemplos da jurisprudência, em que se tem admitido a ampliação do controle social, por intermédio da jurisdição, não só das ações, mas igualmente das omissões do Poder Público em tema de meio ambiente: saneamento básico[8], tratamento e destinação final de resíduos sólidos[9], fiscalização da ocupação irregular de áreas protegidas[10] e, até mesmo, implantação de parques e espaços naturais protegidos.[11]

Em todos esses casos, de modo a assegurar a participação judicial ambiental, verifica-se a expansão da função jurisdicional, para além das hipóteses restritas e tradicionais de prevenção e reparação de degradações ambientais específicas e localizadas espacialmente, a fim de abranger o controle concentrado e difuso de constitucionalidade de leis e atos normativos contrários às normas constitucionais protetivas do meio ambiente, o já referido controle de atos e omissões do Poder Público lesivos ao meio ambiente e a correção de práticas degradadoras do ambiente empregadas nos processos produtivos pelos agentes privados, legitimando-se, com isso, sob o prisma político, significativa e intensa intervenção do Poder Judiciário em esferas públicas e privadas.[12]

Bem se vê por aí que a viabilização da participação pela via judicial na implementação do direito ambiental e no controle das ações e omissões públicas e privadas que interferem com a preservação do meio ambiente não teria se dado sem a valorização da dimensão política da jurisdição no sistema do processo coletivo, para o que concorreu, decisivamente, a identificação dos escopos políticos da jurisdição no sistema processual como um todo, ao lado do escopo jurídico e dos escopos sociais.

Inegável, portanto, a íntima relação existente entre os escopos políticos da jurisdição, tal como sistematizados por Dinamarco, e a participação pelo processo coletivo na defesa do meio ambiente, no contexto do acesso participativo à justiça. Não somente porque constitui escopo político da jurisdição a preservação da dignidade humana, indispensável à conformação do poder do Estado, para o que se mostra imprescindível a concretização do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e dos respectivos direitos procedimentais ou instrumentais (direito à informação, direito à participação e direito de acesso à justiça), mas, igualmente, porque viabilizar a própria participação pública para a tutela de bens, direitos e valores essenciais à sociedade é tarefa política atribuída à jurisdição, de importância cada vez maior no Brasil.[13]

Nesses termos, propiciar a participação pública na implementação e defesa do direito ao meio ambiente constitui, definitivamente, escopo político da jurisdição no ordenamento jurídico brasileiro. E a aceitação generalizada desse objetivo crucial da jurisdição, na doutrina e na jurisprudência brasileiras, com todas as consequências que daí decorrem para o fortalecimento da implementação do direito ambiental entre nós, deve-se, indubitavelmente, à obra máxima do Professor Cândido Rangel Dinamarco, o qual, melhor do que ninguém, foi capaz de compreender que, entre os escopos da jurisdição, está o de canalizar a participação democrática dos cidadãos — individualmente, reunidos em grupos e associações ou representados por entes estatais independentes – nos destinos da sociedade e do país.[14]


[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 181 e seguintes (nºs 18 e seguintes).
[2] DINAMARCO, Cândido Rangel, op. cit., p. 181 e seguintes (nºs 18 e seguintes).
[3] MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, processo civil e defesa do meio ambiente. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011, p. 373.
[4] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 29 e ss.
[5] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 174 e ss.
[6] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 174-188; 372-388.
[7] STF – 1ª T. – AgRg no RE n. 417.408/RJ – j. 20.03.2012 – rel. Min. Dias Toffoli.
[8] TJSP – 2ª Câmara Cível – Ap. Cív. n. 158646-1/0 – j. 26.05.1992 – rel. Des. Cezar Peluso; TJSP – 4ª Câmara de Direito Público – Ap. Cív. n. 241625-1/4 – j. 02.05.1996 – rel. Des. Soares Lima; TJSP – Câmara Reservada ao Meio Ambiente – Ap. Cív. n. 363851-5/0 – j. 12.07.2007 – rel. Des. Jacobina Rabello; TJSP – 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente – Ap. Cív. n. 9159315-96.2009.8.26.0000 – j. 18.04.2013 – rel. Des. Antonio Celso Aguilar Cortez; STJ – 2ª T. – REsp 1366331/RS – j. 16.12.2014 – rel. Min. Humberto Martins; STJ – 2ª T. – REsp n. 1.220.669/MG – j. 17.04.2012 – rel. Min. Herman Benjamin; STF – 1ª T. – AgRg no RE 417408/RJ – j. 20.03.2012 – rel. Min. Dias Toffoli.
[9] TJSP – 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente – Ap. Cív. 0164830-08.2008.8.26.0000 – j. 31.01.2013 – rel. Des. Antonio Celso Aguilar Cortez; TJSP – 8ª Câmara de Direito Público – Ap. Cív. 201.361-5/0-00 – j. 04.06.2003 – rel. Des. Teresa Ramos Marques; STJ – 1ª T. – REsp 575998/MG – j. 07.10.2004 – rel. Min. Luiz Fux; STJ – 2ª T. – REsp 1367549/MG – j. 02.09.2014 – rel. Min. Humberto Martins.
[10] STJ – 2ª T. – REsp 1071741/SP – j. 24.03.2009 – rel. Min. Herman Benjamin; STJ – 2ª T. – REsp 604725/PR – j. 21.06.2005 – rel. Min. Castro Meira; STJ – 1ª T. – AgRg no Ag 822.764/MG – j. 05.06.2007 – rel. Min. José Delgado; STJ – 2ª T. – AgRg no Ag 973577/SP – j. 16.09.2008 – rel. Min. Mauro Campbell Marques; STJ – 2ª T. – REsp 1376199/SP – j. 19.08.2014 – rel. Min. Herman Benjamin.
[11] STJ – 2ª T. – REsp 1163524/SC – j. 05.05.2011 – rel. Min. Humberto Martins; TJSP – 8ª Câmara de Direito Público – Ap. Cív. n. 35.935.5/00 – j. 11.08.1999 – rel. Des. José Santana.
[12] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 378-380.
[13] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 378.
[14] DINAMARCO, Cândido Rangel, op. cit., p. 207-214 (nºs 24 e 25).

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  • é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito Processual pela USP, especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França), coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

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