Opinião

Liberdade de expressão encontra limites na dignidade da pessoa humana

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15 de setembro de 2017, 17h00

O caso da menina carioca de 11 anos que levou uma pedrada na cabeça após ser vítima de um ato de intolerância religiosa precisa ser repudiado pela sociedade brasileira, e os agressores não podem ficar impunes. O fato foi registrado na Delegacia de Polícia de Irajá (RJ – 38ª DP) como lesão corporal e capitulado no artigo 20 da Lei 7.716/89, que engloba a prática, indução ou incitação à discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Esse fato nos remete a outro, igualmente grave, que foi a veiculação pelo Google Brasil (e pela internet) de conteúdos claramente denotativos de intolerância e discriminação religiosa às crenças de matrizes africanas, o que levou o Ministério Público Federal a ajuizar Ação Civil Pública com vistas à condenação da empresa a retirar dos meios públicos virtuais todos os conteúdos ofensivos.

O Tribunal Federal da 2ª Região decidiu pela imediata retirada dos vídeos listados pelo MPF da rede mundial de computadores, exatamente por entender que eram potencialmente ofensivos e fomentadores do ódio, da discriminação e da intolerância contra tais religiões, o que não corresponde ao legítimo exercício do direito à liberdade de expressão.

A menina, de acordo com dados amplamente publicados pela mídia, saía de um culto de candomblé e não estava só, mas acompanhada de um grupo de pessoas com roupas típicas da religião. Os agressores, paradoxalmente, levantaram a Bíblia e começaram primeiro a agredi-las verbalmente — “diabos”, “vão para o inferno” —; em seguida, lançaram pedras na direção em que estavam. Uma delas acertou a cabeça da menina, que, ferida e sangrando muito, foi levada às pressas para o hospital.

A contradição está no fato de usarem o livro sagrado para cometerem atos de violência, desconhecendo o amor de Cristo, transcrito em mais de um evangelho, a Maria Madalena, que estava sendo apedrejada por populares que a julgavam e a condenavam em uma espécie de júri popular.

Ora, a Constituição Federal protege os direitos do indivíduo, sobretudo os relacionados à liberdade de pensamento e de expressão, portanto, de consciência, de crença e de culto. Também a Lei 12.966, de 24 de abril de 2014, trata, expressamente, da proteção à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos.

Como direitos fundamentais, as liberdades asseguradas na Constituição garantem aos seus destinatários não apenas a obrigação do Estado em respeitá-las, como também a obrigação de cuidar para que sejam respeitadas pelos próprios particulares em suas relações recíprocas. São as diferenças e o absoluto respeito a elas que se constituem a expressão do Estado liberal laico.

O discurso do ódio (ou de incitação ao ódio), conjunto de manifestações de ideias capazes de suscitar atos de violência, ódio e/ou discriminação racial, social ou religiosa, precisa ser continuamente reprimido. No caso da menina, temos a concretização de tão nefasta prática, eis que, não satisfeitos em xingar o grupo de candomblecistas e de tratá-lo como algo profundamente maléfico e desprezível, houve a agressão física.

É entendimento dominante, não apenas no Brasil, mas também no Direito Comparado, que a liberdade de expressão encontra limites na dignidade da pessoa humana de todos os indivíduos integrantes do grupo afetado por manifestações de teor discriminatório. Logo, as liberdades públicas não são incondicionais, razão pela qual devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal, que garantem a prevalência dos direitos humanos.

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    é desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF), mestre e doutor em Direito.

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