Opinião

CNMP suplanta o Legislativo e define regras de competência da União

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10 de setembro de 2017, 10h34

Já faz um certo tempo que a poeira da discussão sobre os poderes de investigação do Ministério Público parece ter se assentado. De um modo ainda um tanto genérico, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 593.727 definiu que, sim, o MP pode conduzir investigações criminais, desde que amparado em certos critérios que preservem a publicidade, os direitos elementares dos investigados, o controle jurisdicional e a legalidade. A “reforma” da disciplina dos assim chamados Procedimentos Investigatórios Criminais, porém, por meio da Resolução 181 de 2017 introduziu uma “autoprerrogativa” audaz: a possibilidade de um “acordo de não persecução penal”.

Não há dúvidas de que a possibilidade de empreender investigações criminais sem qualquer apoio policial (ou gerenciando a atividade das polícias) tem sido a joia da coroa do Ministério Público nos últimos anos. Apesar da clara repartição dessas atividades pela Constituição, cometendo às polícias federal e civil a competência para tocar as investigações, o Ministério Público passou a entender que também pode agir sozinho para colher provas de fatos criminosos, com finalidade de futura ação penal. O Conselho Nacional do Ministério Público, como já de conhecimento da comunidade Jurídica, editou resolução nesse sentido ainda em 2006, com um implemento que, agora, permite a qualquer promotor dirigente de investigação criminal celebrar acordo com o investigado, mediante confissão, suprimindo a ação penal caso determinados requisitos sejam preenchidos. É o correspondente, no campo do Direito Penal e do processo penal, da imagem que imortalizou Napoleão Bonaparte, pintada por Jacques-Louis David: o imperador apanha a coroa das mãos de Pio VII e a coloca, ele próprio, sobre sua cabeça.

Segundo o poder “autoconferido” ao Ministério Público pelo CNMP, o acordo de “não persecução penal” depende de pormenorizada confissão do investigado, com entrega de provas de sua conduta criminosa, ficando o promotor ou promotores responsáveis pela investigação comprometidos em não oferecer denúncia. Em troca, o investigado, além da confissão “colaborativa”, pode ter que se comprometer a reparar o dano, submeter-se a restrições iguais às penas restritivas de direitos ou prestar serviços à comunidade, tudo isso sem previsão de qualquer ato jurisdicional de homologação ou supervisão. O acordo não pode ser celebrado em crimes com violência contra a pessoa, não podem versar sobre fatos criminosos que envolvam quantias acima de 20 salários mínimos e o delito não pode ser passível de transação penal.

Em outras palavras, o tal acordo de não persecução estende e retorce, a critério do Ministério Público, medidas despenalizantes que se encontram na Lei 9.099 de 95 e tanto isso é verdade que a resolução expressamente ressalva, da possibilidade de acordo de “não persecução”, justamente casos em que seja permitida a transação penal, instituto que, como se sabe, só tem validade mediante homologação judicial.

Trata-se, portanto, de iniciativa que cria verdadeiros critérios de despenalização, colocando-os nas mãos do Ministério Público e sem qualquer participação do Poder Judiciário. Como se não bastasse a distorção em que delitos de menor potencial ofensivo só podem receber solução “negocial” sob os olhos da jurisdição e delitos em tese mais graves podem ser despenalizados conforme proposta do promotor, sem qualquer acionamento do Poder Judiciário, o acordo de não persecução avança sobre medidas que só poderiam existir mediante legislação específica. Não há como dormir com essa estranheza: se para crimes de menor potencial ofensivo há lei definindo a aplicação da transação, exigindo a intervenção do Poder Judiciário, como uma resolução pode tratar de uma forma diferenciada de transação penal (mediante confissão), instituindo penas e limitações, sem o debate legislativo e sem a intervenção do judiciário para crimes mais graves do que aqueles definidos na Lei 9.099 de 1995?

Ora, a Constituição (artigo 22, I) é clara quando determina que apenas a União pode legislar sobre “Direito Civil, Comercial, Penal, Processual, Eleitoral, Agrário, Marítimo, Aeronáutico, Espacial e do Trabalho” e as regras sobre o acordo de não persecução penal nada mais são do que regras que transitam entre medidas de despenalização (de matiz penal) e regras para aferição e controle de medidas despenalizadoras (de caráter processual).

Pior é ainda notar que não há qualquer referência ao Poder Judiciário para controlar o cumprimento das medidas eventualmente impostas em troca da confissão. O investigado pode cumprir com uma pena de prestação de serviços sob supervisão exclusiva do Ministério Público, sem que o Poder Judiciário tenha conhecimento ou controle sobre o cumprimento da pena. Da mesma forma, fica a cargo do Ministério Público a vigília sobre todas as outras formas de contraprestação do investigado para o caso de acordo, tornando o Ministério Público uma entidade gestora de mecanismos que, ainda que tenham por objetivo reduzir a possibilidade de aplicação da pena e reduzir os processos criminais, não tem nem a participação do Poder Judiciário como guardião do devido processo legal e das garantias fundamentais dos acusados.

Os autopoderes que o Ministério Público tem se concedido parecem agora ter alcançado um nível impensável de escárnio com a repartição de competências que a Constituição determina. Não é porque o Ministério Público, mercê do marketing da “lava jato”, alcançou um heroísmo salvacionista tão napoleônico que agora lhe é permitido colocar coroas sobre a cabeça.

Tomara que o Poder Judiciário dê cabo disso.

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