Limite Penal

Não dá para ficar seco na chuva da delação? O caso Janot-Joesley

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8 de setembro de 2017, 8h00

Spacca
O procurador-geral da República Rodrigo Janot requereu a instauração de procedimento para verificar se os delatores do Grupo J&F, em especial Joesley Batista e Ricardo Saud, diante das últimas mídias apresentadas, teriam violado a cláusula 12 do termo de colaboração (seguirei adiante nos termos do acordo de Joesley, que teria realizado um “golpe de mestre”). A pretensão do artigo é demonstrar o trajeto e a lógica do pleito.

Isso porque Joesley Mendonça Batista assinou o “Termo de Acordo de Delação Premiada” em 3 de maio de 2017, tendo por fundamento os crimes “relacionados ao grupo empresarial J& F” (cláusula 2ª), devidamente homologado pelo ministro Edson Fachin (Pet. 7.003). Logo, válido.

O objeto da delação foi o seguinte: “todos os fatos ilícitos praticados pelo COLABORADOR até a data da assinatura do Termo, assim como todos os fatos ilícitos que sejam de seu conhecimento, os quais estão explicitados nos anexos que compõem e integram o Acordo” (Cláusula 3ª), sendo que o parágrafo 2º dispõe que: “O COLABORADOR terá o prazo máximo de 120 dias contados da assinatura do acordo para apresentar novos anexos, desde que não seja caracterizada má-fé na sua omissão. Parágrafo 3. Identificado fato ilícito praticado pelo COLABORADOR que não tenha sido descrito nos anexos que integram este acordo, inclusive após o transcurso do prazo fixado no parágrafo anterior, o Procurador-Geral da República poderá repactuar a presente avença ou rescindi-la, submetendo, em qualquer caso, ao Juízo homologatório”.

Diante da dimensão da colaboração, o Ministério Público ofereceu como prêmio o “benefício legal do não oferecimento da denúncia, nos termos do artigo 4º, §4º, da Lei 12.850/2013”, bem assim: “No caso de existirem investigação criminal e/ou denúncias já oferecidas em face do colaborador, em outros órgãos do Ministério Público, relacionadas a alguns dos temas dos anexos, o Procurador-Geral da República comunicará o conteúdo deste acordo ao membro do Ministério Público oficiante para fins de seu cumprimento, que, no caso de investigações, será a imunidade, e no caso de denúncia já oferecida, o perdão judicial” (cláusula 4º e parágrafo único).

Entretanto, cabe sublinhar as condições e obrigações do delator: “Para que o presente acordo possa produzir os benefícios nele relacionados, especialmente os constantes na cláusula 4ª, a colaboração deve ser voluntária, ampla, efetiva, eficaz e conducente aos seguintes resultados:

a) a identificação dos autores, coautores, partícipes das diversas organizações criminosas de que tenha ou venha a ter conhecimento, notadamente aquelas sob investigação em decorrência de crimes relacionados nos anexos deste acordo, bem como à identificação e à comprovação das infrações penais por ele praticadas, que sejam ou que venham a ser do seu conhecimento, inclusive agentes políticos que tenham praticado ilícitos penais ou deles participado;

b) a revelação da estrutura hierárquica e a divisão de tarefas das organizações criminosas de que tenha ou venha a ter conhecimento;

c) a recuperação total ou parcial do produto e/ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa de que tenha ou venha a ter conhecimento, tanto no Brasil quanto no exterior;

d) a identificação de pessoas físicas e jurídicas utilizadas pelas organizações criminosas supramencionadas para a prática de ilícitos penais;

e) ao fornecimento de documentos e outras provas materiais, notadamente em relação aos fatos referidos nos anexos deste acordo;

f) a entrega de extratos bancários de contas, objeto das investigações, no exterior até a presente data, salvo impossibilidade material de acesso a essas informações devidamente comprovada pelo colaborador” (Cláusula 11).

Também se obrigou a falar a verdade incondicionalmente, dentre outras questões, “sem malícia ou reservas mentais, a) esclarecer espontaneamente todos os esquemas criminosos de que tenham conhecimento, especialmente aqueles apontados nos anexos deste acordo, fornecendo todas as informações e evidências que estejam ao seu alcance, bem como indicando provas potencialmente alcançáveis; b) falar a verdade incondicionalmente, em todas as investigações criminais, disciplinares tributárias, além de ações penais em que doravante venham a ser chamados a depor na condição de testemunha ou interrogado, nos limites deste acordo; c) falar a verdade incondicionalmente, em todas as investigações cíveis e administrativas em que doravante venham a ser chamados a depor na condição de testemunha ou interrogado, nos limites deste acordo, observados o disposto na cláusula atinente à validade da prova; d) cooperar sempre que solicitado, mediante comparecimento pessoal sob suas expensas a qualquer das sedes do Ministério Público Federal, do Departamento de Polícia Federal ou da Receita Federal do Brasil, para analisar documentos e provas, reconhecer pessoas, prestar depoimentos e auxiliar peritos na análise pericial que sejam objeto da presente colaboração; e) entregar todos os documentos, papéis, escritos, fotografias, banco de dados, arquivos eletrônicos, etc., de que disponha, quer estejam em seu poder, quer sob a guarda de terceiros sob suas ordens, e que possam contribuir a juízo do Ministério Público Federal, para a elucidação dos crimes que são objeto da presente colaboração;”

O descumprimento das obrigações por parte dos COLABORADORES, nos termos da Cláusula 26, implicará na rescisão do acordo nas seguintes hipóteses: a) se o COLABORADOR descumprir, sem justificativa, qualquer dos dispositivos deste acordo; b) se o COLABORADOR mentir ou omitir, total ou parcialmente, em relação a fatos ilícitos que praticou, participou ou tem conhecimento; c) se o COLABORADOR recusar-se a entregar documento, prova ou senha que tenha em seu poder ou sob a sua guarda pessoal de suas relações ou sujeito a sua autoridade ou influência, salvo se, diante da eventual impossibilidade de obtenção direta de tais documentos ou provas, o COLABORADOR indicar ao Ministério Público Federal a pessoa que o guarda e o local onde poderá ser obtido para a adoção das providências cabíveis; e) se ficar provado que, após a celebração do acordo, o COLABORADOR sonegou, adulterou, destruiu ou suprimiu provas que tinha em seu poder ou sob sua disponibilidade, assim como fatos ilícitos de que tivesse conhecimento”; (omissis)

Em face do surgimento de novas mídias, em princípio comprometedoras da boa-fé do delator Joesley, caberá ao relator a análise da rescisão dos termos, com a retirada do prêmio do colaborador e da sua obrigação de cooperação, embora a prova entregue continue sendo válida. O que se deverá avaliar, diante da dimensão da delação, é a violação da boa-fé, para não se excluir a validade do instituto da delação por questões irrelevantes, a saber, o descumprimento deverá ser capaz de excluir o núcleo do termo de delação, sob pena de levar o instituto ao descrédito e desencorajar novos delatores – talvez um fim anunciado.

Não se pode excluir, também, a existência de agentes duplos, mercenários da informação, que atuam conforme as vantagens que podem obter. Logo, a atividade de contrainteligência em face dos próprios jogadores sempre é uma forma de limitar e garantir a segurança das informações, principalmente na delação/colaboração premiada. O gerenciamento dos aliados é sempre sensível. A existência de “agentes infiltrados” de modo informal, a venda de informações e o (possível) vazamento de elementos relevantes sempre deve ser monitorada. Além do que, podem existir agentes duplos. Não é filme de espionagem, mas amplo jogo de interesses (manifestos e latentes). Em operações com grandes somas de dinheiro ou sensíveis, não se preocupar com isso é ingênuo. Além do mais, as pessoas podem se sentir preteridas, prejudicadas pelas mais diversas razões (inveja, carreira, holofotes etc.), ou podem modificar a compreensão sobre os limites que a operação está tomando e simplesmente debandar/desertar (ficando ou rompendo). A existência de defenestrações com informação relevante é algo que tocaia toda investigação (acusatória ou defensiva). Os desertores (em potência) estão aí, agindo sem que sejam descobertos. Alguns esperam uma “proposta indecente” para mudar de lado. Eis o espetáculo da delação em que poucos sabem jogar. Todo cuidado é pouco.

O que se pode dizer é que a negociação para delação é um jogo; e não é para amadores[1]. Acreditar a priori em negociadores hábeis e com império comercial não pode se dar sem maiores cuidados, nem desconsiderando a advertência de Stephen S. Trott[2]: “Criminosos estão dispostos a dizer e a fazer qualquer coisa para obterem o que querem, especialmente quando o que eles desejam é livrar-se de seu problema com a lei. Este desejo de fazer qualquer coisa inclui não somente espalhar os segredos de amigos e parentes, mas também mentir, cometer perjúrio, fabricar provas, solicitar a outros que corroborem suas mentiras com mais mentiras e trair qualquer um que tiver contato com eles, incluindo o promotor. (…) Para alguns, ‘manipular’ pessoas é uma forma de vida”. O profissionalismo pode parecer performático, mas resta sempre uma sombra.  De uma hora para outra o jogo vira. Muito.


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction. Florianópolis: E Modara, 2017. Em especial o capítulo 17 do: MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
[2] TROTT, Stephen S. O uso de um criminoso como testemunha: um problema especial. Trad. Sérgio Fernando Moro. Revista do CEJ, Brasilia, Ano XI, n. 37, p. 68-93, abri.jun.2007.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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