Opinião

União e a legitimidade para assinar acordos de leniência

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7 de setembro de 2017, 7h27

Mais uma vez a questão da legitimidade para assinar acordos de leniência em nome do Estado Brasileiro e para tutela de interesses de diversas categorias ganhou as manchetes de meios de comunicação, inclusive da ConJur, bem como foi foco de discussões em redes sociais. Desta vez a discussão se travou na esfera judicial em agravo relacionado a ação de improbidade administrativa iniciada pelo Ministério Público Federal e, posteriormente, que poderia estar resolvida em parte por celebração de acordo de leniência.

A União, naquele caso, estaria inconformada com a possibilidade de a signatária do acordo de leniência poder movimentar uma conta que, anteriormente congelada, foi declarada disponível pelo juízo do primeiro grau.

A União é, ainda naquele caso, a mesma controladora de empresas que foram envolvidas em esquemas de corrupção nos últimos anos e que, por alguns de seus agentes públicos e políticos, permitiram que o esquema prosperasse por anos, até a "lava jato" começar e ganhar corpo.

A União também é acionista que recebeu dividendos das suas controladas, utilizadas em esquemas de corrupção porque a União permitiu que alguns de seus agentes públicos e políticos agissem maliciosamente contra os interesses das empresas a que estavam ligados e, também, contra o interesse público primário.

Além disso, a União recebeu tributos e outros pagamentos, inclusive royalties, daquelas controladas e, também, tributos das empresas do setor privado que também foram mal-usadas em esquemas de corrupção, muitas delas legítimas, ainda que mal-usadas parcialmente.

Reconhecer que a União tem, via AGU, o poder para continuar a processar empresas a despeito de acordos de leniência firmados pelo MPF e aprovados pela 5ª Câmara (ou mesmo que a União tenha o direito de vetar ou validar tais acordos, inclusive via CGU) significa desconsiderar liminarmente a personalidade jurídica das empresas controladas pela União.

Seria, de uma forma simplista, reconhecer uma espécie de shareholder derivative suit tupiniquim contra terceiros que não os ex-administradores das próprias controladas, sem o atendimento de um requisito básico do tipo de ação existente no sistema norte-americano, o de exigir que as empresas tomem providências primeiro para, se não tomar, os acionistas acionarem os terceiros[1], em nome das empresas, caso em que as verbas recebidas são direcionadas para as empresas e não para os acionistas[2].

E, mesmo assim, as controladas da União envolvidas em corrução não deveriam poder sair ilesas da situação; afinal, foi a administração delas, com o beneplácito comissivo ou omissivo da União, que permitiu que os controles internos fossem ineficazes, se é que existiam. Terão elas, portanto, um obstáculo talvez intransponível, segundo a regra há muito existente em nosso e em outros ordenamentos, do nemo potest venire contra factum proprium. Ainda que assim não fosse, há de haver algum grau de culpa concorrente das controladas pela União com as empresas, do setor privado, que foram usadas para a prática de ilícitos, o que fatalmente coloca em cheque a pretensão de reparação delas!

Qualquer posição mais leniente com as controladas da União, e com a própria União, permitirá a perpetuação de uma percepção já há tempos existentes a respeito do Brasil: a de falta de isonomia, justiça e previsibilidade. Do ponto de vista do investidor estrangeiro, a falta do último elemento, previsibilidade, já reduziu o otimismo externo num passado não tão remoto.

Em 2007, por exemplo, o Brasil optou por retirar de rodada de licitação a ser feita poucas semanas depois 41 áreas do pré-sal[3], anunciado pela Petrobras no dia anterior[4]. Tais áreas ficaram reservadas para que um novo marco regulatório do setor de O&G fosse criado, via Congresso, na prática restabelecendo o monopólio da Petrobras para o pré-sal.

Alterar as regras do jogo no curso do jogo incomoda em qualquer situação. Em questão de investimentos externos uma alteração substancial, como a retirada de 41 áreas do pré-sal de licitação futura, foi um tiro no pé, corrigido mais recentemente por alteração legislativa cujo implementação ainda não está perfeita.

Em 2007 diversas empresas internacionais perceberam o movimento da União, representada pelo Governo Federal, como um risco adicional, precificado quando já estavam no Brasil ou quando queriam entrar. Algumas nem vieram, outras saíram, reduzindo a competição no setor, com prejuízo para o Brasil e para o brasileiro, inclusive o trabalhador.

É perfeitamente possível, inclusive, que naquela situação tenha ocorrido uma redução dos valores ofertados por aquelas empresas de petróleo que participaram do round alijado das 41 áreas do pré-sal (o que, eventualmente, até pode ter contribuído para o sucesso de quem arrematou) e, além disso, uma elevação dos preços dos insumos da cadeia do petróleo. Caberia aos experts no assunto estudar os impactos inclusive inflacionários no período passado.

Os mais otimistas, por outro lado, dirão que em 2008 o Brasil conseguiu o grau de investimento, ao que se poderia rebater com o argumento de que as bases para um grau de investimento não refletem, necessária e diretamente, a percepção de insegurança jurídica gerada pela retirada de 41 áreas do pré-sal de licitação conduzida pela ANP[5]. Além disso, naquele mesmo ano de 2008 analistas do mercado de capitais reduziram seu otimismo com as ações da Petrobras, em meio a preocupações com os custos e perspectivas de receita da empresa[6].

E, se não for suficiente o ponto de necessidade de previsibilidade, que se traduz em segurança jurídica, para ilidir a persecução desenfreada contra empresas lenientes, como ficarão os demais acionistas das controladas da União em caso de recebimento de indenização, após um moroso processo judicial, por improbidade ou mesmo violação da Lei n. 12.846/13? A eles serão repassados valores proporcionais de indenização? Caberão vários outros processos? Os demais acionistas integrarão o polo ativo das ações contra as lenientes? Ou a União pagará via precatório?

Há apenas lugar para a ironia, infelizmente, já que o disposto no Parágrafo 5º do Artigo 159 da Lei 6.404/76 adstringe-se às ações intentadas por acionistas, agindo em nome da empresa, contra os administradores da própria empresa[7] e uma pretensão sob o Parágrafo 7º do mesmo Artigo 159 da Lei 6.404/76, que não confere direitos, mas não elimina aqueles eventualmente existentes de outra forma, esbarraria no já citado nemo potest venire contra factum proprium ou, no máximo, em culpa concorrente da União. Qual o percentual de culpa de cada empresa envolvida e da própria União? A quem interessa que a questão se perpetue no Judiciário? Com certeza não interessa aos trabalhadores prejudicados direta ou indiretamente e, em última análise, à sociedade civil em geral e ao próprio Estado brasileiro.

Em suma, a União deveria reconhecer a responsabilidade pelos atos praticados por seus próprios agentes passados, por mais irresponsáveis que tais atos tenham sido, acionando-os, se possível, e deixando em paz as pessoas jurídicas que já fecharam acordos de leniência que permitam uma recuperação das empresas (ou correr o risco de criar um incentivo para que acordos não sejam fechados ou não sejam honrados). Estão em risco interesses coletivos, difusos e até individuais relevantes, bem como os interesses públicos primário e secundário, prejudicados por amplo desemprego e uma arrecadação tributária aquém da que poderá ser num ambiente empresarial competitivo e com maior segurança jurídica.


1 Terceiro, no caso, alguém que não os administradores das próprias controladas da União, que estão sujeitos à responsabilização perante a sociedade nos termos do Art. 159 da Lei n. 6.404/76. É de se notar que conquanto o Parágrafo 7o daquele Artigo não nega direito a acionista eventualmente prejudicado por terceiro, mas tampouco lhe confere direitos específicos naquele diploma.

2 Cf. https://www.law.cornell.edu/wex/shareholder_derivative_suit (data de acesso: 1o de setembro de 2017)

4 http://www.investidorpetrobras.com.br/pt/comunicados-e-fatos-relevantes/fato-relevante-analise-da-area-de-tupi

5 Marins, Guilherme. Os fundamentos do investment grade brasileiro (em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/8456/1420018.pdf?sequence=1&isAllowed=y)

7 Caso em que, em defesa de pessoas físicas que eventualmente tenham assinado acordos de colaboração premiada com o MPF, talvez tais acordos não lhes socorram na integralidade, cabendo uma análise separadamente de argumentos que poderiam impedir a satisfação de uma pretensão de indenização ou até de pagamento de multa inclusive na esfera administrativa, com base no argumento no nemo potest venire contra factum proprium ou culpa concorrente.

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