Olhar Econômico

O que mostram as decisões judiciais sobre recuperação de empresas — Parte 2

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

7 de setembro de 2017, 8h00

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]As decisões judiciais abaixo pertencem, em continuação, ao segundo bloco relativo à necessidade ou não da intervenção do Poder Judiciário nos casos de planos abusivos de recuperação de empresas, aprovados pelos credores[1].

(iii) Recurso especial, concluso ao Gabinete em 17/7/2013, no qual se discute a possibilidade e os limites do controle jurisdicional sobre os atos praticados pela assembleia-geral de credores no procedimento de recuperação judicial. Ação ajuizada em 27/1/2009.

2. A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como violados e quanto aos argumentos deduzidos nas razões recursais obsta o exame da insurgência. (…)

Convém ressaltar, a respeito do tema, que o conteúdo do plano de recuperação judicial, apresentado e aprovado em assembleia-geral pela vontade soberana dos credores, não pode, em regra, ser alterado pelo Poder Judiciário. Com efeito, ao regular a recuperação judicial, a Lei n. 11.101/2005 optou por submeter à vontade da coletividade diretamente interessada na realização do crédito a faculdade de opinar e autorizar os procedimentos necessários ao reerguimento econômico da sociedade empresária em crise, de modo a se alcançar uma solução de consenso que abarque os interesses envolvidos.

De acordo com o disposto no art. 56 da pré-citada lei, à assembleia é atribuído, inclusive, o poder de deliberar a respeito das eventuais objeções apresentadas por qualquer credor.

Todavia, ao contrário do que sustenta a recorrente, é certo que se submete a controle jurisdicional a análise do preenchimento das condições prévias à concessão da recuperação e das exigências legais relativas à elaboração e à aprovação do plano. Somente quando verificada, pelo Juiz, a presença dos requisitos estabelecidos pela lei é que ele será homologado e a recuperação, concedida. Trata-se de disposição expressa do art. 58, caput, da Lei de Falência e Recuperação de Empresas. Ademais, a assembleia-geral de credores é constituída por uma sucessão encadeada de atos de natureza eminentemente contratual, praticados por particulares, que, como tais, sujeitam-se, dentro dos limites legais, à autoridade jurisdicional[2].

(iv)DIREITO EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL DE EMPRESA. PLANO DE RECUPERAÇÃO. APROVAÇÃO PELA ASSEMBLEIA DE CREDORES. CONTROLE JUDICIAL DE LEGALIDADE. CABIMENTO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO VERIFICADA. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC.

1. Cabe à assembleia de credores aprovar o plano de recuperação judicial da empresa, inclusive quanto aos aspectos da viabilidade econômica, porém, o juiz tem o dever de velar por sua legalidade, a fim de evitar que sejam autorizadas cláusulas e condições em desacordo com as normas legais. (…)

Embora o juiz não possa se imiscuir nos aspectos da viabilidade econômica da empresa, matéria de competência exclusiva da assembleia de credores, tem ele o dever de velar pela legalidade do plano, de modo a evitar que os credores aprovem pontos que estejam em desacordo com as normas legais. Conforme lição de Luiz Roberto Ayoub e Cássio Cavalli, "conquanto a assembleia-geral de credores seja soberana para apreciar o plano de recuperação judicial, o juiz deverá controlar a legalidade da assembleia. Vale dizer, o juiz deverá controlar a legalidade do procedimento de deliberação assemblear, verificando a regularidade do exercício do direito de voto pelos credores, bem como depurar do plano aprovado as cláusulas que não observem os limites legais. Conforme se lê no Enunciado 44 da Primeira Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal: 'a homologação de plano de recuperação judicial aprovado pelos credores está sujeita ao controle judicial de legalidade". (A Construção jurisprudencial da Recuperação Judicial de Empresas, Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 254) [3].

(v) DIREITO EMPRESARIAL. PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. APROVAÇÃO EM ASSEMBLEIA. CONTROLE DE LEGALIDADE. VIABILIDADE ECONÔMICO-FINANCEIRA. CONTROLE JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE.

1. Cumpridas as exigências legais, o juiz deve conceder a recuperação judicial do devedor cujo plano tenha sido aprovado em assembleia (art. 58, caput, da Lei n. 11.101/2005), não lhe sendo dado se imiscuir no aspecto da viabilidade econômica da empresa, uma vez que tal questão é de exclusiva apreciação assemblear.

2. O magistrado deve exercer o controle de legalidade do plano de recuperação – no que se insere o repúdio à fraude e ao abuso de direito -, mas não o controle de sua viabilidade econômica. Nesse sentido, Enunciados n. 44 e 46 da I Jornada de Direito Comercial CJF/STJ.

3. Recurso especial não provido. (…)

Com efeito, a matéria devolvida a esta Corte não consiste em saber se, concretamente, é ou não viável economicamente o plano de recuperação, mas se cabe ao Judiciário tal análise – depois da aprovação pela Assembleia de Credores -, questão exclusivamente jurídica, razão pela qual conheço do especial.

3. Cumpre ressaltar, para logo, que a Lei n. 11.101/2005, no tocante à recuperação de empresas, inspirou-se em ditames maiores de ordem constitucional ,como o princípio da função social da propriedade (art. 170, inciso II, da CF/1988) e a diretriz segundo a qual o Estado, como agente regulador e normativo, exerce incentivo da atividade econômica, na forma da lei (art. 174, caput, CF/1988). (…)

Se é verdade que a intervenção judicial no quadrante mercadológico de uma empresa em crise visa tutelar interesses públicos relacionados à sua função social e à manutenção da fonte produtiva e dos postos de trabalho, não é menos certo que a recuperação judicial, com a aprovação do plano, desenvolve-se essencialmente por uma nova relação negocial estabelecida entre o devedor e os credores reunidos em assembleia. (…)

De fato, internamente às tratativas referentes à aprovação do plano de recuperação, muito embora de forma mitigada, aplica-se o princípio da liberdade contratual, decorrente da autonomia da vontade. São apenas episódicos – e pontuais, com motivos bem delineados – os aspectos previstos em lei em que é dado ao Estado intervir na avença levada a efeito entre devedor e credores.

Têm-se, como exemplos, as seguintes hipóteses de ingerência legal na seara negocial do plano de recuperação: (a) que o plano não preveja "prazo superior a 1 (um) ano para pagamento dos créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho vencidos até a data do pedido de recuperação judicial", ou "prazo superior a 30 (trinta) dias para o pagamento, até o limite de 5 (cinco) salários-mínimos por trabalhador, dos créditos de natureza estritamente salarial vencidos nos 3 (três) meses anteriores ao pedido de recuperação judicial" (art. 54); (b) possibilidade de alteração do plano apresentado, desde que não implique "diminuição dos direitos exclusivamente dos credores ausentes" à assembleia (art. 56, § 3º); (c) aprovação do plano de recuperação judicial por todas as classes de credores (art. 45), salvo na hipótese da cram down, quando se mitiga tal exigência, nos termos do art. 58, § 1º, mas que fica ainda interditada a possibilidade de tratamento diferenciado entre os credores da classe que houver rejeitado o plano (art. 58, § 2º). Nessa linha de raciocínio, cumpre ressaltar, mais uma vez, que o interesse público subjacente à recuperação judicial refere-se à possibilidade de manutenção da empresa e das fontes de produção e trabalho.

Bem por isso que há previsão legal para o magistrado conceder, manu militari, a recuperação judicial contra decisão assemblear – cram down, art. 58, § 1º -, mas não o inverso, porquanto isso geraria exatamente o fechamento da empresa, com a decretação da falência (art. 56, § 4º), solução que se posiciona exatamente na contramão do propósito declarado da lei.

Assim, cumpridas as exigências legais, o juiz deve conceder a recuperação judicial do devedor cujo plano tenha sido aprovado em assembleia (art. 58, caput), não lhe sendo dado se imiscuir no aspecto da viabilidade econômica da empresa, uma vez que tal questão é de exclusiva apreciação assemblear.

Assim é que o magistrado deve exercer o controle de legalidade do plano de recuperação – no que se insere o repúdio à fraude e ao abuso de direito -, mas não o controle de sua viabilidade econômica. Seja porque a lei induz tal postura, seja para não correr o risco de se adotar o que Canotilho, na seara do controle judicial dos direitos econômicos, chamou de "metodologia fuzzy" (ou fuzzismo ), uma metodologia da vagueza e da indeterminação, pela qual o judiciário abraça controvérsias que não lhe são afeitas e transita por conceitos que, efetivamente, não domina (CANOTILHO, J. J. Gomes. "Metodologia Fuzzy" e "Camaleões Normativos" na problemática atual dos direitos econômicos, sociais e culturais . In: Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2008. p. 99).

Na I Jornada de Direito Comercial CJF/STJ, foram aprovados os Enunciados n. 44 e 46, que refletem com precisão esse entendimento:

44. A homologação de plano de recuperação judicial aprovado pelos credores está sujeita ao controle de legalidade.

46. Não compete ao juiz deixar de conceder a recuperação judicial ou de homologar a extrajudicial com fundamento na análise econômico-financeira do plano de recuperação aprovado pelos credores.

Deveras, o magistrado não é a pessoa mais indicada para aferir a viabilidade econômica de planos de recuperação judicial, sobretudo daqueles que já passaram pelo crivo positivo dos credores em assembleia, haja vista que as projeções de sucesso da empreitada e os diversos graus de tolerância obrigacional recíproca estabelecida entre credores e devedor não são questões propriamente jurídicas, devendo, pois, acomodar-se na seara negocial da recuperação judicial.

5. Diante do exposto, nego provimento ao recurso especial[4].

Os acórdãos, cujos excertos foram apresentados, representam parcela diminuta das muitas decisões judiciais exaradas com base na vigente Lei 11.101/2005. Do mesmo modo, que o sumário da doutrina, presente nos artigos referidos na nota de rodapé 1, serve apenas de introdução à discussão existente sobre o tema. Como contribuição para um aprofundamento, o Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (www.cedes.org.br), think tank sem fins lucrativos, realizará no próximo dia 11 de setembro uma mesa redonda intitulada: Recuperação Judicial e Impacto nos Negócios.

Quanto mais debates houver sobre o aprimoramento da Lei 11.101/2005, maiores subsídios existirão para a reforma em curso no Congresso Nacional.


[1] O presente texto é continuação do artigo de Rodas, João Grandino, O que mostram as decisões judiciais sobre recuperação de empresas, Revista Eletrônica ConJur, 31 de agosto de 2017. Para melhor compreender a problemática ver, também: Rodas, João Grandino, Urge força tarefa para adequar a recuperação de empresas, Revista Eletrônica ConJur, 25 de maio de 2017; e Maior viabilidade para a recuperação judicial, idem, 17 de agosto de 2017.

2 REC. ESPECIAL 1.388.051-GO (2013/0169896-0) – REL. MIN. NANCY ANDRIGHI – 3ª Turma – J. 10/09/2013

3 RECURSO ESPECIAL 22.011-GO (2011/0083682-1) – REL. MIN. JOÃO OTÁVIO NORONHA – J. 02/02/2015

4 REC. ESPECIAL 1.359.311 – SP (2012/0046844-8) – REL. MIN. LUIS FELIPE SALOMÃO – 4ª Turma – J. 09/09/2014

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    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (CEDES) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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