Ideias do Milênio

"Todos os governos americanos e do mundo tentam manipular a imprensa"

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7 de setembro de 2017, 17h17

Entrevista concedida pelo jornalista Martin Baron, editor do The Washington Post, ao jornalista Marcelo Lins para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05)

Reprodução/GENsummit
Reprodução/GENsummit

Martin Baron, jornalista americano e editor chefe do The Washington Post desde 2013, foi decisivo na cobertura da equipe Spotlight, do jornal Boston Globe. O grupo investigou o escândalo de padres pedófilos na igreja católica em 2012 e recebeu vários prêmios Pulitzer. Um deles, pela série de reportagens sobre investigações secretas da Agência Nacional de Segurança dos EUA.

Marcelo Lins — Quais são as principais mudanças que você vivenciou desde que entrou no jornalismo, em meados dos 70, e o que não mudou porque não pode mudar?
Martin Baron —
O que mais mudou foi a forma como as pessoas consomem notícias e informações. Estamos na era digital, e não era assim quando me tornei jornalista profissional. Não havia a internet aplicada à indústria de notícias. As pessoas estavam apenas começando a falar da internet, que só começou a afetar nosso negócio no início dos anos 1990, com as conexões de banda larga de alta velocidade. Essa foi a mudança mais fundamental que enfrentamos.

O que não mudou foi a nossa missão. Nossa missão primordial é informar sobre o que acontece no mundo, informar o básico. Além disso, acho que nossa missão mais importante é responsabilizar instituições e indivíduos poderosos, principalmente o governo, mas também outros indivíduos e instituições poderosos. Essa é uma missão que persigo desde o início de minha carreira e que já existia antes dela.

Marcelo Lins — Como está o ambiente da imprensa nos Estados Unidos de Trump? Ele está tão diferente quanto parece para nós, de fora, do que era durante a era Obama?
Martin Baron — Todos os governos americanos tentam manipular a imprensa, assim como qualquer governo de qualquer país do mundo. Muitas vezes existe um conflito entre a imprensa e o governo, e isso é natural, porque tentamos obter informações que às vezes o governo não quer divulgar.

Havia uma relação difícil entre o governo Obama e a imprensa. Eles eram muito controladores, às vezes muito hostis, lançaram várias investigações sobre vazamentos de informações confidenciais, tentaram obter registros telefônicos e outros de jornalistas que cobriam segurança nacional, portanto a relação com o governo Obama era bem difícil.

Mas a situação agora é pior, de certa forma radioativa, porque o presidente atual, durante a campanha e durante seu governo, está, nas próprias palavras, travando uma guerra contra a imprensa. Ele procura nos marginalizar, nos deslegitimar, nos denegrir…

Marcelo Lins — Ele chamou a imprensa de inimigo público.
Martin Baron —
Quer nos desumanizar. Ele nos chamou de lixo, de forma mais primitiva de ser humano, depois achou pouco e nos chamou de forma mais primitiva de vida. Depois nos chamou de inimigo do povo americano, o que considero muito perigoso. Isso leva a uma relação extremamente hostil e sugere que nós representamos traidores ou que praticamos traição, o que é absurdo.

Eu já disse que, apesar de o presidente afirmar que está em guerra com a imprensa, não estamos em guerra com o governo. Nós estamos trabalhando. Esse é o nosso trabalho, é o que devemos fazer. Está escrito na Declaração de Direitos, é o que nossos fundadores imaginaram, é a nossa função e posso dizer que é isso que vamos fazer.

Marcelo Lins — O senhor tem uma carreira bem longa. Começou como repórter, mas logo se tornou editor. O que o atraiu? Foi a visão mais ampla que o cargo oferece ou algum outro motivo?
Martin Baron — Ser repórter é bem diferente de ser editor. O repórter se concentra em uma matéria, assina a matéria e está bem claro quais são suas responsabilidades. Depois ele parte para outra. Para um editor, isso não está totalmente claro. Você precisa entender que tenta causar impacto na organização como um todo, orientá-la certa numa direção, inspirar a equipe a fazer o melhor trabalho possível e exigir altos padrões, os padrões que o público exige de nós. Então como editor seu impacto é maior do que como repórter.

Marcelo Lins — E foi como editor já que talvez o Martin Baron tenha conseguido a maior exposição mundo afora, no início dos anos 2000, com a investigação sobre abusos sexuais dentro da Igreja Católica em Boston. Pelo que aparece no filme Spotlight, você pediu para a equipe se aprofundar na investigação sobre os abusos em seu primeiro dia de trabalho no Boston Globe, co m base em um artigo que havia lido. Isso é verdade?
Martin Baron —
Sim, é verdade, e o que o filme mostra foi o que aconteceu de fato. Eu tinha acabado de chegar a Boston, não tinha morado nem trabalhado lá, não conhecia ninguém. Quando cheguei, comecei a ler o jornal, claro, e na véspera de meu primeiro dia de trabalho, li uma coluna de opinião do Boston Globe sobre o caso de um padre acusado de abusar de até 80 crianças.

O advogado dos autores da ação, dos pais de crianças que sofreram abusos e de pessoas que alegaram ter sofrido abusos, disse que o cardeal Bernard Law sabia dos abusos do padre e o transferia de paróquia em paróquia sem contar a ninguém. O padre voltava a praticar os abusos e era novamente transferido. Isso durou muito tempo, e o próprio cardeal sabia de tudo. A resposta do cardeal e da Igreja foi que eram acusações irresponsáveis e infundadas. E, no final do texto, a colunista dizia que a verdade poderia nunca vir à tona, porque os documentos eram confidenciais e não viriam a público.

Então, no meu primeiro dia de trabalho, tivemos nossa primeira reunião de pauta às 10h, todos disseram no que estavam trabalhando e ninguém mencionou esse caso. Perguntei se não poderíamos continuar investigando para tentar descobrir a verdade. Por que tínhamos de aceitar um lado dizendo uma coisa e o outro lado dizendo exatamente o contrário? Alguém disse que um juiz decretara confidencialidade e que os documentos não seriam divulgados. Eu disse que tinha lido isso na coluna, mas que poderíamos entrar com uma moção para tentar tornar os documentos públicos.

Acho que os jornalistas se surpreenderam, porque eu era novo em Boston, era meu primeiro dia, minha primeira reunião, e sugeri entrar com uma ação contra a instituição mais poderosa de Boston e da Nova Inglaterra: a arquidiocese de Boston.

Marcelo Lins — Quase 20 anos depois desse caso, a igreja de novo é abalada por mais um escândalo, envolvendo o principal cardeal da Austrália, George Pell, acusado oficialmente de envolvimento com o acobertamento e envolvimento direto também em crimes de abuso sexual lá na Austrália…
Martin Baron —
Eu sabia do caso, sabia de um grande escândalo na Austrália, não fiquei surpreso com as acusações, embora seja impressionante, porque o cardeal Pell é muito próximo ao papa. Esse caso demonstra claramente que a Igreja ainda não resolveu essa questão. O problema persiste. É um caso significativo nesse aspecto.

Marcelo Lins — Ficou satisfeito com a forma como Liev Schreiber o retratou no filme?
Martin Baron — Não posso reclamar. Claro, como poderia? Muitos amigos e colegas disseram que foi uma interpretação precisa. Já outros amigos disseram que eu tenho senso de humor e que isso não transpareceu no filme, mas é importante frisar que aquele foi um capítulo da minha vida. O filme retrata 6 ou 7 meses da minha carreira. Foi um período de seriedade para mim. Eu não tinha amigos na cidade, então não sei se estava muito bem-humorado na época.

Marcelo Lins — Já ouvi o senhor falar sobre a importância da modéstia para o jornalismo. Por que modéstia?
Martin Baron —
Precisamos nos perguntar o que torna um jornalista bom, e eu acho que um bom jornalista não é aquele que se impressiona com o quanto sabe, mas que se impressiona com o quanto ainda não sabe. Temos muito o que aprender. Devemos sempre aprender a ouvir. Acho importante não deixar nosso ego inflar demais, reconhecer que há muitas coisas que não sabemos e que quanto mais investigarmos e fizermos perguntas, mais saberemos. Devemos ser ótimos ouvintes. Então devemos encarar nosso trabalho com modéstia e humildade e reconhecer que não sabemos tudo, que há muita coisa que não sabemos e devemos sempre trabalhar para descobri-las.

Marcelo Lins — Então é importante ser modesto e também cético, não é?
Martin Baron — Acho que o ceticismo é outra qualidade importante. Nós sabemos que nem sempre nos contam a verdade ou a história completa, precisamos fazer perguntas difíceis. Não devemos ser cínicos, mas sim céticos.

Marcelo Lins — Qual é o lugar da emoção no jornalismo? Tem lugar além de no chamado jornalismo sensacionalista?
Martin Baron — É uma boa pergunta. Não sei se tenho a resposta. Nunca pensei profundamente sobre isso. Nós precisamos ter empatia, precisamos nos colocar no lugar de nossos personagens, ver o mundo do ponto de vista deles. Precisamos tomar cuidado para não deixar as emoções falarem mais alto, porque precisamos de um certo distanciamento, de um certo ceticismo, precisamos ser analíticos, precisamos buscar documentação adicional, provas adicionais. Não podemos confiar na palavra das pessoas só porque elas têm uma história emocionante. Por outro lado, depois de termos sido meticulosos, de termos sido cuidadosos, justos e honestos com nossa reportagem, fomos céticos e fizemos todo o trabalho, pode haver uma história muito emocionante para contar. E uma coisa que devemos fazer quando isso se justificar é instilar emoção em nossos leitores, ouvintes ou espectadores. Portanto, caso se justifique, devemos tentar ajudar os leitores a entender para que eles se emocionem. Nós devemos ser mais contidos.

Marcelo Lins — Quando a internet começou a crescer muito rápido e as pessoas começaram a ficar com medo de todas as possibilidades que ela apresentava, elas também começaram a pensar no futuro do jornalismo. Jeff Bezos, da Amazon, comprou o Washington Post e você, que já estava lá, passou a fazer parte dessa nova fase do jornal. O que pode nos falar sobre essa interseção entre a Amazon e o mundo da mídia? Teve medo ou é uma boa oportunidade de desenvolvimento?
Martin Baron —
É bom frisar que somos um investimento pessoal de Bezos, não fazemos parte da Amazon. Somos totalmente independentes. Mas eu encarei como uma ótima oportunidade. Nossos donos anteriores, que eram incríveis, que criaram a marca Washington Post, uma empresa que mudou a história em Watergate e em outras ocasiões, ficaram sem ideias sobre o que fazer neste novo ambiente jornalístico. Então Jeff nos comprou e chegou não só com capital financeiro, que precisávamos, mas com capital intelectual, com um conhecimento muito sofisticado de tecnologia e internet e um conhecimento sofisticado do comportamento do consumidor, que é o negócio dele. Ele mudou a estratégia do jornal fundamentalmente, o que foi imensamente positivo.

Marcelo Lins — Em relação ao futuro, qual é o futuro do jornal impresso na sua opinião? Vai sobreviver ou virar o vinil do jornalismo?
Martin Baron — Achamos que ele vai durar ainda algum tempo, talvez mais do que se espera. Eu acho que daqui a 10 ou 15 anos o jornal impresso ainda existirá, mas um dia vai acabar desaparecendo. Jeff Bezos disse que continuará existindo, mas que, em algum momento, será encarado como um lixo. Será como alguém dizer que tem um cavalo. As pessoas verão um jornal impresso e dirão: “Que legal! Você tem um jornal. Interessante.” Mas o fato é que vivemos num mundo digital. As pessoas vivem no computador e principalmente no celular. É nele que buscam informações, é assim que vivem. Sempre que têm um tempinho, consultam o celular. Se estão esperando o ônibus, olham o celular, andando na calçada também. É assim que as pessoas vivem. É digital, é o mundo das redes sociais e é móvel.

Marcelo Lins — Quando pensa no Brasil, o que vem à sua mente?
Martin Baron — No momento, um grande escândalo, mas… É um país com oportunidades tremendas, e é isso que todos dizem sobre o Brasil, que é um país com muitas oportunidades, recursos…

Marcelo Lins — Muitas oportunidades perdidas também.
Martin Baron — Há muitas piadas sobre o Brasil nessa linha, mas ele ainda tem oportunidades, tem recursos. Seu maior recurso, como em todo país, é seu povo, uma população instruída, empreendedora, uma população que quer progredir, que em geral dá valor à democracia e à liberdade de expressão.

Marcelo Lins — É possível atingir a imparcialidade?
Martin Baron — Acho que podemos ser imparciais no início de nossa investigação, estar abertos a várias possibilidades. Podemos ter uma hipótese inicial e os fatos não a comprovarem. Devemos ser honestos e dizer: “Não há história aí.” Mas acho que devemos informar o que descobrimos. Fala-se muito em sermos justos e concordo totalmente. Devemos ouvir todo mundo, estar abertos ao que as pessoas dizem e às provas que elas apresentam, mas também devemos ser justos com nossos leitores, o que significa contar a eles o que nossa investigação revelou. Se investigarmos corretamente, o que descobrimos? Em vez de fingir que não investigamos e esconder a reportagem. Devemos ser justos com nosso público e dizer o que descobrimos com a investigação que fizemos.

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