Opinião

Em decisão, STJ permite o bis in idem na infração ambiental

Autor

  • Jean Marc Sasson

    é advogado especialista em Direito Ambiental no Tabet Bueno & Franco Advogados. Bacharel em Direito e especialista em Direito Ambiental pela PUC-Rio especialista em Gestão Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestre em Engenharia Ambiental e Urbana pela PUC-Rio e pela Universidade Técnica de Braunschweig/Alemanha. Membro da União Brasileira da Advocacia Ambiental (Ubaa).

6 de setembro de 2017, 6h26

Em recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, prolatada pelo relator Herman Benjamin — reconhecido jurista e doutrinador da área ambiental — decidiu que a Petrobras terá de pagar uma multa no valor de R$ 10 milhões ao município de Angra dos Reis (RJ), em razão do derramamento de óleo na Baía de Ilha Grande ocorrido em maio/2002, em que pese a existência de multa prévia aplicada pela União, no valor de R$ 150 mil (REsp 1.132.682).

Ou seja, segundo o entendimento do STJ, uma sanção imposta pelos estados, municípios ou pelo Distrito Federal poderá substituir a multa imposta pela União em relação ao mesmo fato, mas, ao contrário, a multa imposta pela União não impossibilitaria a imposição de uma nova multa por outro ente federativo, neste caso, o município.

Ainda segundo o relator, é “inafastável a competência municipal para aplicar multa em virtude dos danos ambientais provocados pelo incidente ocorrido na Baía da Ilha Grande, visto que a área é abrangida pelo município de Angra dos Reis”. Conforme seu entendimento, os entes federativos possuem o poder-dever de controle e fiscalização ambiental que emerge da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente — Lei 6.938/81 — e da Lei dos Crime e Ilícitos Administrativos contra o Meio Ambiente — Lei 9.605/98), “que fixam normas gerais sobre a matéria”.

Além disso, aduziu o relator que é “impossível deixar de reconhecer a competência da União, exercida pela Marinha do Brasil/Capitania dos Portos, especialmente considerando que a atividade desenvolvida pela Petrobras implica alto risco de causar lesões a seus bens naturais”.

Ora, se este entendimento for ratificado, implicará na prática que qualquer infrator — pessoa física ou jurídica e até mesmo a Administração Pública, poderá ser multado quantas vezes forem necessárias por diferentes esferas administrativas pelo mesmo fato.

Neste aspecto, o relator pondera que “embora passível de questionamento, o fato é que, no âmbito infraconstitucional, houve uniforme e expressa opção no sentido de que, em relação ao mesmo fato, a sanção imposta por estados, municípios, Distrito Federal e territórios predomina sobre a multa de natureza federal”. Para o ministro, “a situação inversa não foi contemplada de forma intencional”.

Por fim, argumenta que “não há margem para interpretação de que a multa paga à União impossibilita a cobrança daquela aplicada pelo município, sob pena de bitributação“, “uma vez que a atuação conjunta dos poderes públicos, de forma cooperada, na tutela do meio ambiente, é dever imposto pela Constituição Federal”.

Primeiramente, esta decisão viola o artigo 17 da Lei Complementar 140/2011 que fixa normas, nos termos dos incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do artigo 23 da Constituição Federal, para a cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção ambiental.

A LC 140/11 ao ser editada e promulgada foi festejada justamente por definir claramente os critérios de eleição dos órgãos licenciadores e por acabar — o que não parece ser mais o caso após esta decisão — a guerra entre os órgãos ambientais sobre quem deveria autuar e lavrar o termo de autuação nas infrações ambientais.

Aqui vale um parênteses: Antigamente, nesta guerra, prevalecia a multa mais barata. No presente caso, como se verifica , não prevaleceu a multa mais barata (aplicada pela União).

Assim, o artigo 17 da LC 140 trouxe segurança jurídica ao sistema licenciatório ao definir expressamente que o órgãos autuador, isto é, aquele que poderá multar e autuar o infrator, será aquele competente para licenciar a atividade:

Art. 17. Compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada.

Ora, neste caso, tratando-se de exploração de petróleo em alto mar, quer me parecer que o órgão federal seria competente para licenciar a atividade (artigo 7º, XIV, b da LC 140) e, portanto, autuar e multar o infrator.

Ressalta-se que estamos discutindo a responsabilidade administrativa e não a responsabilidade civil. Em relação à esta última, significa que todos impactados pelo dano ambiental deverão ser indenizados, ou seja, caberia ao município de Angra dos Reis indenização pelos danos ambientais causados pelo derramamento em seu litoral, mas não deveria receber qualquer multa derivada da infração administrativa, simplesmente por não ser o ente federativo competente para tal.

Resta claro que a presente decisão afrontou não só o referido dispositivo da LC 140, como também o pacto federativo (artigo 1°,CF) e o artigo 23, que disciplina as competências ambientais administrativas.

Por fim, e não menos importante, a decisão ainda afrontou o princípio do "non bis in idem", uma vez que o exercício em paralelo e sobreposto do poder sancionador por parte de órgãos ambientais distintos é vedado legalmente, inclusive pelo artigo 76 da Lei 9.605/98, mencionado pelo ministro.

Ou seja, há impossibilidade expressa da atuação simultânea dos entes federativos em razão de uma mesma conduta e um mesmo dano. Desta forma, a autuação e a sanção devem ser únicas, assim como o é a pretensão punitiva do Estado. Isto porque a atuação dos órgãos ambientais, sejam estes federais, estaduais ou municipais, é regida por um só sistema de atuação harmônica, o Sisnama, com fundamento no artigo 6º da Lei 6.938/81.

Paulo de Bessa Antunes corrobora este entendimento, afirmando:

"Se se admitisse que os órgãos públicos de diferentes esferas federativas pudessem, a seu talante, embargar, paralisar e contestar atividades que se encontram autorizadas regularmente pelos demais integrantes do Sisnama, no uso normal e legal de suas atribuições, o sistema se tornaria completamente inviável. Aliás, a própria criação do Sisnama tem por finalidade última a organização de atribuições diferenciadas e a descentralização administrativa de forma cooperativa e harmônica [ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 8ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 110]."

Dito isto, o poder de polícia ambiental deve ser exercido por um só órgão integrante do Sisnama, não podendo a mesma conduta causadora de danos ao meio ambiente ser punida em diferentes esferas da Federação, especialmente em obediência ao princípio do Non Bis in Idem no âmbito do Direito Ambiental.

No mais, vale a ressalva que a presente discussão sequer deveria existir, tendo em vista que a responsabilidade compartilhada ou o poder-dever de proteção do meio ambiente, incumbiria ao órgão não competente a responsabilidade de evitar, cessar ou mitigar o dano ambiental. Neste caso, após autuar o infrator, o Município deveria comunicar o fato ao órgão ambiental competente — Ibama — e encaminhá-lo o auto de infração lavrado, conforme disposto no artigo 17, § 3º da Lei Complementar 140/2011:

"§ 3º O disposto no caput deste artigo não impede o exercício pelos entes federativos da atribuição comum de fiscalização da conformidade de empreendimentos e atividades efetiva ou potencialmente poluidores ou utilizadores de recursos naturais com a legislação ambiental em vigor, prevalecendo o auto de infração ambiental lavrado por órgão que detenha a atribuição de licenciamento ou autorização a que se refere o caput."

Em suma, este caso em análise está coberto de ilegalidades e inconstitucionalidades que deveriam ser evitadas pelo nosso emérito ministro. Em que pese esta decisão equivocada, é consolador perceber que é uma decisão isolada em meio a tantas outras já proferidas por ele que servem de parâmetro na proteção ambiental.

Autores

  • Brave

    é advogado ambiental, consultor jurídico ambiental e urbanístico do IBAM, mestre em Engenharia ambiental e urbana pela PUC/RJ em parceria com a Technische Universität Braunschweig/Alemanha.

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