Opinião

É preciso modulação sobre validade de liminar quando jurisprudência é alterada

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4 de setembro de 2017, 18h25

Seguindo à risca o princípio maior e norteador de toda a atividade jurisdicional, sobretudo pela relação de confiança que deve prevalecer entre o Estado-Juiz e seus “súditos”, o Código de Processo Civil de 2015 trouxe importante dispositivo, cuja aplicabilidade ainda se mostra tímida, senão subestimada.

Falo do seu art. 927, do CPC, assim disposto:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: […].
§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

Mencionada norma possui leitura e fácil intelecção, sendo exauriente no seu conteúdo e por demais informativa. E, apesar da facultatividade da expressão “pode haver modulação”, desde a edição do novo diploma de ritos civil, deve o julgador, ao se deparar com situações relacionadas à mudança de entendimento há muito consolidado, dispensar curial zelo aos efeitos dessa evolução jurisprudencial.

Afinal, não há como dissociar evolução jurisprudencial do requisito confiança, seja no aspecto social, econômico ou mesmo político. Até porque não se nega ser mais prejudicial ao ordenamento doméstico a constituição de um estado de instabilidade jurídica do que propriamente a perpetuação de determinada exegese “ultrapassada” ou “antiquada”.

Nesse compasso, assume significativo relevo a cassação de tutela antecipada por sentença, sobretudo quando acompanhada da ordem de restituição de valores. Com o atual CPC, algo anteriormente já prenunciado ficou muito mais nítido: a bifurcação do instituto da tutela antecipada em “medida da evidência do direito” e “medida de urgência” (art. 294).

Ao que por ora interessa, no caso a tutela de evidência, em tempos de vinculação por força de repetitivo ou de repercussão geral, sua concessão quando alinhada a causa petendi à jurisprudência remansosa dos tribunais superiores se mostra esperável e admissível, máxime se sumulada.

Com base nesse desenho de otimização, atrai-se o cidadão às vias judiciais, com a promessa de uma resposta rápida, segura e precisa, porém, deveras traiçoeira.

Não raro, após determinada liminar subsistir por considerável interregno, repousante nos autos por força do acalento jurisprudencial da moda, os tribunais de Justiça têm aderido às mudanças abruptas e vinculantes — parafraseando o ministro Eros Grau, um legítimo direito prêt-à-porter, subvertendo as regras do jogo alhures impostas, com a adoção de mirum arbitrium (decisões-surpresa), gerando extenso desconforto na seara da confiança e da pacificação social. É igualmente nefasto, por vias transversas, ao direito-loteria na pertinente crítica hermenêutica do professor Lenio Strek.

Ora, como bem se sabe, a segurança jurídica tem matiz constitucional e ocupa talqualmente considerável espaço na LINDB. Logo, ao infringi-la, antes de se violar o art. 1.036 e seguintes do CPC estar-se-á infringindo a própria Lex Mater.

Decisões dessa ordem, prolatadas sem a devida modulação, forjadas na máxime do ready-to-wear, ressalto, afugentam investidores internacionais, vulneram a economia, retiram ou diminuem a confiança na seriedade e responsabilidade da atividade judicante, inaugurando um nocivo e generalizado sentimento de incerteza e incredulidade.

Não se defende aqui o engessamento da jurisprudência, afinal o direito é dinâmico, no melhor conceito pós-positivista. O que verdadeiramente se propõe é a adoção de critérios transitórios de conformação, uma forma salutar de dialogo entre a crítica hermenêutica e o jurisprudencialismo.

Numa visão micro, imagino o quão difícil seja para qualquer advogado explicar a um idoso, regra geral aposentado, que a vantagem implantada em seu holerite por força de liminar, já integrada ao seu orçamento doméstico por longo decurso de tempo, seja-lhe impiedosamente retirada, sobejando-lhe ainda uma inexplicável e desumana parcela a restituir. E mais, em decorrência da mudança de entendimento, por vezes constituído após uma década de julgamentos, desfeito, porém, numa única e simples “tarde de quarta-feira”.

A vingar em termos absolutos essa posição, paradoxalmente, estar-se-á a punir o autor por uma situação provocada pelo próprio Poder Judiciário. Ou seja, em casos desse jaez, advindo da ruptura de paradigmas, a pretexto de se fazer justiça, pretere-se o caráter alimentar da verba e a ideia de culpa, para se imputar ao suplicante, esdruxulamente, a pecha de litigante de má-fé, com o castigo da repetição. No linguajar popular seria a mais autêntica representação da “além da queda, o coice”.

Nessa toada, o STJ, em bom tempo, parece caminhar no sentido de prestigiar em maior tom e amplitude a modulação em comento, como se vê a partir dos excertos do REsp 1.596.978-RJ, da relatoria do ministro Napoleão Maia:

“… Relativamente à segurança jurídica e à irretroatividade do novo entendimento jurisprudencial para alcançar situações pretéritas, já tive oportunidade de afirmar que a irretroação da regra nova se aplica, inclusive, à jurisprudência, e não apenas às leis, quando capazes de prejudicar situação consolidadas: Na verdade, quando se altera uma orientação consolidada na jurisprudência – e isso não se confunde com decisões esparsas ou episódicas -, orientação que previa a fruição de certo direito subjetivo, uma isenção de determinada obrigação ou dever jurídico, por exemplo, esta sé implantando, com essa alteração, a obrigação ou o dever jurídico que antes inexistia ou era inexigível. Por isso é imperativo jurídico, mas também igualmente ético, que as eventuais situações consumadas antes da alteração jurisprudencial sejam devidamente preservadas, ou seja, que os efeitos da alteração jurisprudencial somente se produzam no tempo posterior à sua adoção (da alteração); e isso pode ser um fator apontado como elementar da segurança das relações jurídicas. A irretroação da regra nova (qualquer que seja a sua natureza) é um requisito, talvez o primeiro requisito da segurança jurídica ou da segurança das relações sócio-jurídicas, cujo propósito é permitir que as pessoas possam programar, projetar, planejar ou conduzir as suas vidas e os seus negócios individuais confiando na permanência da eficácia das disposições que os regem no momento em que são tomadas as decisões relativas a esses interesses…”.

Em brilhante artigo intitulado A prospectividade da alteração da jurisprudência como expressão do constitucionalismo garantista: uma análise expansiva do art. 927, § 3.º, do NCPC, publicado no portal do Ministério Público de São Paulo, os professores Nestor Eduardo e Luciano Athayde Chaves bem resumem e definem a problemática, tornando fácil algo que o Judiciário, em vã resistência, tem complicado:

“… Na tradição dos sistemas nos quais as decisões judiciais, de forma mais aberta, são também produtoras de direito, o respeito aos precedentes é muito grande. É a expectativa do stare decisis, isto é, da manutenção do mesmo entendimento em casos futuros, síntese da doutrina dos precedentes obrigatórios (doctrine of binding precedents)… Sob o ângulo da segurança jurídica, Canotilho examinou o problema da uniformidade ou estabilidade da jurisprudência, concluindo inexistir direito subjetivo do cidadão à inalterabilidade da jurisprudência. No entanto, considerou como uma questão em aberto os efeitos dessa mudança. Nas suas palavras: “sempre se coloca a questão de saber se e como a proteção da confiança pode estar condicionada pela uniformização, ou, pelo menos, estabilidade, na orientação dos tribunais…”.

Mais adiante, pontuam:

“… Como se procurou diagnosticar, até o advento do NCPC o tratamento da modulação das decisões judiciais estava legalmente circunscrito à jurisdição constitucional exercida pelo STF, tendo, como fonte normativa, as leis de regência procedimental das ações de controle concentrado, ainda que utilizada, de forma expansiva, pelo próprio tribunal, em caráter excepcional, a processos e controle difuso, em especial àqueles subsumidos ao crivo do certiorari, ou seja, da transcendência ou repercussão geral. Esse mesmo fenômeno expansivo também alcançou o STJ e o TST, ainda que em escala incipiente, notadamente quanto ao problema específico da (i) retroatividade da mudança de orientação da jurisprudência, até mesmo porque, no caso do STJ, não há a competência constitucional para o controle de constitucionalidade. Com o advento do NCPC, a questão tende a ganhar outra latitude. Primeiro, porque se trata de um diploma legal edificado já sobre um momento mais elaborado do constitucionalismo. Por isso, cuida de enunciar, logo no seu art. 1.º, que “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil”, o que já indica uma umbilical relação entre o NCPC e o garantismo, na medida em que este, enquanto modelo de constitucionalismo, baseia-se na força normativa dos direitos fundamentais…”.

E, ao final, destacando a viabilidade e a necessidade dessa modulação alcançar Tribunais localizados fora do perímetro de Brasília, concluem:

“… Portanto, nessa linha de raciocínio, o excepcional interesse público e a segurança jurídica, como indica o texto legal, hão de justificar, em casos muito particulares, a retroatividade do overruling, já que, em regra, o afastamento do precedente somente deve produzir efeitos prospectivos. Na excepcionalidade dos efeitos retroativos, podem ser considerados, a par do que sucede na experiência norte-americana, a aplicação retroativa restrita às partes que buscaram essa solução judicialmente, inclusive provocando o tribunal – com a necessária apresentação do caso concreto – para o afastamento do precedente.
Nessa hipótese (regular prospective application), tanto se protege a confiança das decisões anteriores, aplicando a decisão derrogatória aos atos jurídicos posteriores, como se prestigia aqueles que questionaram a regra (rule) anterior. Se a leitura do art. 927, § 3.º, do NCPC for literal, considerando o prospective overruling apenas como uma condição excepcional do judicial departure ou afastamento do precedente, restariam solapados os direitos fundamentais, o que não pode se compatibilizar com o Estado Democrático de Direito, que deve preservar a confiança, a estabilidade e a segurança jurídica. Outra possibilidade de interpretação expansiva do dispositivo diz respeito aos atores judiciais, destinatários da norma.
Neste aspecto, o NCPC, ainda que mostre avanço, limita o protagonismo do prospective overruling ao STF e tribunais superiores. No entanto, essa limitação, no cenário de um Poder Judiciário com mais de 90 tribunais, não atende aos postulados constitucionais mencionados, na medida em que retira da maioria deles o poder-dever de estabelecer condições sobre a mudança de sua jurisprudência. E não se diga que a estabilidade da jurisprudência é questão somente afeta aos tribunais superiores, o que seria de logo desmentido pelo caput do art. 926 do NCPC, que afirma que os tribunais (e, por certo, todos eles) devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
Se assim o é, a questão do afastamento ou superação, total ou parcial, de sua jurisprudência não pode ficar adstrita a certos tribunais, ainda que o art. 927, § 3.º, do NCPC trate daqueles que têm missão constitucional de uniformização da interpretação da CF e das leis no país…
Em arremate, tem-se que a norma inscrita no § 3.º do art. 927 do NCPC somente se compatibiliza inteiramente com a CF e com o modelo garantista, que visa a salvaguardar a efetividade dos direitos e garantias fundamentais, se: (a) for considerado o prospective overruling como regra, não como excepcionalidade; (b) for possível seu exercício por todos os tribunais que integram o Poder Judiciário, e não apenas pelo STF e pelos tribunais superiores…
De um lado, defende-se que o rol de tribunais indicado no mencionado § 3.º do art. 927 do NCPC (STF e tribunais superiores) deve ser considerado como meramente ilustrativo, já que não pode ser interpretado em numeros clausus, sob pena de excluir dezenas de tribunais da obrigação de proteger a sociedade dos deletérios efeitos de uma mudança retroativa da jurisprudência dominante, sumulada ou não, desses tribunais. Por outro lado, considera-se que a modulação prospectiva (prospective overruling) deve se constituir a regra, e não a exceção, como parece sugerir uma leitura mais literal da norma em estudo…”.

Sob essa perspectiva, faltam, então, às cortes regionais e estaduais vigor e sensibilidade para se aderir com maior frequência e habitualidade a essa ideologia, tornando a atividade judicante mais coerente, oxalá adequada e justa.

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