Opinião

Meta fiscal x meta de educação — uma questão de prioridade

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4 de setembro de 2017, 7h47

A notícia do veto à prioridade atribuída às metas do Plano Nacional de Educação (PNE) na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2018, que prevê as linhas mestras da atuação da administração pública federal, foi recebida com indignação.

A previsão da vinculação dos recursos na área de educação ao cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação, inclusive com a implantação do Custo Aluno Qualidade inicial (CAQi — artigo 21), foi vetada sob o argumento de que “a medida restringiria a discricionariedade alocativa do Poder Executivo na implementação das políticas públicas e reduziria a flexibilidade na priorização das despesas discricionárias em caso de necessidade de ajustes previstos na Lei Complementar no 101/2000 (LRF), colocando em risco o alcance da meta fiscal.”

Embora a escolha de onde serão alocados os recursos públicos tenha um importante componente político, não pode deixar de ser considerado o seu aspecto jurídico, na medida em que devem ser observadas as diretrizes estabelecidas nas normas constitucionais e nos tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro.

Observa Ana Paula de Barcellos que as escolhas alocativas de recursos recebem a “influência direta das opções constitucionais acerca dos fins que devem ser perseguidos em caráter prioritário. Dito de outra forma, as escolhas em matéria de gastos públicos não constituem um tema integralmente reservado à deliberação política; ao contrário, o ponto recebe importante incidência de normas jurídicas de estatura constitucional. (…) a definição do conjunto de gastos do Estado é exatamente o momento no qual a realização dos fins constitucionais poderá e deverá ocorrer”[1].

Além das normas constitucionais que direcionam a utilização dos recursos públicos para a implementação do direito à educação, é importante ter presente que o artigo 3º, de forma abrangente, endereça aos Poderes Públicos metas prospectivas voltadas ao atingimento da justiça social.

A enunciação dessas metas evidencia a preocupação da Constituição em fortalecer e ampliar o grau de concretização dos direitos, sobretudo dos direitos sociais que são, em última instância, o pano de fundo para a promoção do desenvolvimento nacional, para a efetivação de uma sociedade livre e justa, para a erradicação da pobreza e da marginalização, para a promoção do bem de todos e para a redução das desigualdades sociais e regionais[2].

Além das prioridades constitucionais, os compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro também impõem a priorização de recursos públicos para a área social[3]. Nesse passo, o artigo 2º, parágrafo 1º do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU)[4] e o artigo 1º do Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (OEA)[5] exigem que sejam implementados progressivamente os direitos sociais, utilizando-se “o máximo dos recursos disponíveis”.

A noção de progressividade traduz-se em um duplo comando: a) a obrigação de adotar medidas com vistas à implementação gradual dos direitos sociais; b) a obrigação de não retroceder com relação ao nível da fruição dos direitos já conquistados.

O princípio da implementação progressiva requer que o Estado crie as condições materiais necessárias para a plena fruição dos direitos sociais, priorizando os recursos necessários para gradualmente atingir essa finalidade. Por sua vez, o princípio da proibição do retrocesso requer que ao longo do processo de efetivação dos direitos sociais não ocorram pioras no seu grau de fruição[6].

Um longo caminho pela frente
O direito à educação é o primeiro direito social elencado no artigo 6º da Constituição Federal. É um direito de empoderamento, visto que é indispensável para a realização dos outros direitos humanos.

O Plano Nacional da Educação, como política de Estado, prevista no artigo 214 da Constituição Federal, tem a função de articular os entes da Federação em torno do cumprimento de metas e estratégias relacionadas à erradicação do analfabetismo, à universalização do atendimento escolar e à melhoria da qualidade do ensino, dentre outros objetivos.

A missão do Estado brasileiro está longe de ser concluída. O Brasil ainda possui cerca de 13 milhões de analfabetos e está posicionado entre as piores nações no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), realizado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), figurando, em 2015, na posição 65ª de 70 países.

Há uma grande desigualdade regional, socioeconômica e em virtude de raça/cor. Os dados são alarmantes. Enquanto 52,3% das crianças de 0 a 3 anos pertencentes aos 25% de famílias mais ricas estão matriculadas na creche, apenas 21,9% das que pertencem ao quartil mais pobre frequentam essa etapa da educação infantil. Já com relação ao ensino fundamental, enquanto somente 65,9% dos jovens de 16 anos concluíram essa etapa na região Nordeste, esse indicador é de 83,5% para o Sudeste. Já no Ensino Médio, a taxa de atendimento entre os jovens brancos é 71%, mas entre os pretos e pardos é bem menor: 56,8% e 57,8%, respectivamente[7].

No tocante ao alfabetismo, apenas 45,4% das crianças com nível socioeconômico muito baixo apresentam proficiência em leitura no 3º ano do ensino fundamental, com 8 anos de idade, enquanto esse percentual é de 98,3% para as crianças com nível socioeconômico mais alto. A situação é ainda pior quando analisada a proficiência em matemática das crianças com nível socioeconômico muito baixo: 14,3%. No ensino médio a situação não é menos dramática: o nível de proficiência no 3º ano é de 7,3% em 2015 e, quando comparado aos anos anteriores, houve um crescente retrocesso[8].

Limites das escolhas políticas
Há um longo caminho a ser percorrido para que o direito à educação de qualidade seja uma realidade para toda a população brasileira.

Para assegurar o financiamento da educação, o PNE previu, na estratégia 20.6, a implantação, no prazo de dois anos após a sua vigência (que expirou em junho de 2016), do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQI), calculado com base nos insumos indispensáveis para se atingir um mínimo padrão de qualidade na educação, que será progressivamente reajustado até a implantação plena do Custo Aluno-Qualidade (CAQ).

O veto da LDO, que afasta as metas do PNE da prioridade para a alocação de recursos da administração pública federal em 2018, inclusive com a implantação do Custo Aluno Qualidade inicial, sinaliza o descumprimento do dever de implementação progressiva do direito à educação, que pode resvalar em um retrocesso social, o que é censurado pelas normas constitucionais e compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Questão similar já foi submetida ao Supremo Tribunal Federal no início dos anos 2000.

Ainda que tenha sido julgada prejudicada em virtude da perda superveniente de seu objeto, não se pode deixar de dar destaque à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 45-DF/MC[9], que questionava o veto do Presidente da República ao parágrafo 2º do artigo 55[10] da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2004. A alegação era de que o veto presidencial desrespeitava o preceito fundamental decorrente da Emenda Constitucional 29/2000, que foi promulgada para garantir recursos financeiros mínimos a serem aplicados nas ações e serviços públicos de saúde, do que poderia resultar grave comprometimento para a área da saúde pública.

Em sua decisão, o ministro Celso de Mello enfatizou que “a ação constitucional em referência [ADPF], considerando o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso (Emenda Constitucional 29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República”.

Destacou que, muito embora não esteja incluída no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário a atribuição de formular e implementar políticas públicas, tal incumbência, em bases excepcionais “poderá ser atribuída ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídico que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático”.

A respeito das escolhas políticas e seus limites, o ministro Celso de Mello observou que “não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado — e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico —, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado”.

Não se pode olvidar que o Plano Nacional de Educação está previsto no texto constitucional (artigo 214) e a não priorização de recursos para a concretização de suas metas, inclusive as relacionadas ao financiamento da educação, como é o caso do CAQI, pode resultar grave comprometimento da educação em nosso país.

O questionamento do veto feito ao artigo 21 da LDO para 2018, por meio da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é, portanto, uma possibilidade concreta e viável.

Resta ainda uma importante mensagem a ser dita: é fundamental o recurso, na luta pela realização do PNE, aos standards de progressividade e retrocesso, extraindo-se do universo de normas constitucionais e dos tratados internacionais o instrumental necessário para assegurar a concretização do direito à educação.

Desse modo, estar-se-á caminhando, sem paradas ou desvios, em direção à construção do projeto de Nação que possui, como pilar central, a garantia da educação de qualidade para todos.


1 Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org). Direitos Fundamentais ─ orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 117

2 GOTTI, Alessandra. Direitos Sociais: Fundamentos, regime jurídico, implementação e aferição de resultados. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 87.

3 Convém aqui ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já pacificou o entendimento, por decisão majoritária, adotada em 3/12/2008, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 349.703-RS (Relator Min. Ayres Britto e Relator p/ acórdão Ministro Gilmar Mendes), de que os tratados internacionais de direitos humanos possuem status de norma infraconstitucional, mas supralegal, de modo que tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.

4 “Artigo 2º. 1º. Cada Estado-parte no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”.

5 Artigo 1º. “Os Estados-partes neste Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos comprometem-se a adotar as medidas necessárias, tanto de ordem interna como por meio da cooperação entre os Estados, especialmente econômica e técnica, até o máximo dos recursos disponíveis e levando em conta seu grau de desenvolvimento, a fim de conseguir, progressivamente e de acordo com a legislação interna, a plena efetivação dos direitos reconhecidos neste Protocolo”.

6 Alessandra Gotti, Direitos Sociais: Fundamentos, regime jurídico, implementação e aferição de resultados, p. 110.

7 Anuário Brasileiro da Educação Básica – 2017. Todos pela Educação. Editora Moderna.

8 Ibid.

9 “ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental – Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal – Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais – Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador – Considerações em torno da cláusula da ‘reserva do possível’ – Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do ‘mínimo existencial’ – Viabilidade instrumental da arguição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração)”. (Brasil – STF – Decisão monocrática – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45-DF/MC – Argte.: Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB – Argdo.: Presidente da República – Relator: Ministro Celso de Mello –29/04/2004).

10 O dispositivo vetado estabelecia que: “Para efeito do inciso II do caput deste artigo, considera-se ações e serviços públicos de saúde a totalidade das dotações do Ministério da Saúde, deduzidos os encargos previdenciários da União, os serviços da dívida e a parcela das despesas do Ministério financiada com recursos do Fundo de Combate à Erradicação da Pobreza”.

Autores

  • Brave

    é sócia do Hesketh Advogados. Doutora em Direito do Estado pela PUC/SP, é membro titular do Comitê de Assessoramento à Coordenadoria da Infância e Juventude do TJ-SP. Consultora da UNESCO, Consultora da Câmara de Educação Básica do CNE e Membro do GEAL - Grupo de Administração Legal do CRAS.

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