Estado da Economia

Crise é bom momento para repensar nossas políticas de incentivo à cultura

Autores

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

  • Nichollas Alem

    é fundador e presidente do Instituto de Direito Economia Criativa e Artes (Idea) advogado atuante nas áreas de Direito do Entretenimento e Direito da Inovação Tecnológica mestre em Direito Econômico pela USP consultor da Unesco em equipamentos culturais e membro da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual.

3 de setembro de 2017, 8h00

O desenvolvimento econômico de uma nação não é apenas uma questão de aumentar a sua produção total. Ao lado da dimensão do crescimento econômico, outros fatores são relevantes para construir uma nação melhor, sobretudo aquelas que nunca tiveram um papel central e de liderança na economia internacional, como o Brasil. Assim, ao lado da dimensão econômica da produção, outros fatores reforçam e compõem a dimensão maior do desenvolvimento econômico, como a questão social e cultural.

Sobretudo em países que não alcançaram um elevado grau de desenvolvimento, os aspectos sociais e culturais (incluindo os científicos, tecnológicos e de inovação) são fatores indispensáveis para a perseguição daqueles objetivos fundamentais dispostos em nossa Constituição: “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

O mercado brasileiro interno – não aquele global, idealizado pelos teóricos de plantão – integra o patrimônio nacional e deve ser incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio econômico, de acordo com o texto de nossa Constituição, novamente (art. 219).

Temos tratado em nossas colunas da ConJur de alguns instrumentos fiscais de política econômica (benefícios tributários, creditícios e financeiros). Os gastos indiretos tributários (que são benefícios tributários) podem se prestar a reforços indutores de políticas culturais. Essas políticas são de interesse de pesquisa daquilo que podemos chamar de direito econômico da cultura, que vê nesse fator cultural, justamente, um elemento primordial para o próprio desenvolvimento econômico.

Como todo objetivo que precisa ser perseguido por meio de políticas, a cultura envolve vários desafios e não foge àquela regra de se bem decidir por quais meios ela deve ser reforçada. Em termos fiscais, o desafio começa pela própria escolha jurídica entre gastos públicos diretos (orçamento para tal) ou gastos indiretos (renúncias tributárias que visam a induzir, por meio de reduções da carga tributária, resultados culturais).

A Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2017 reservou R$ 2,34 bilhões como Dotação Inicial para a função “cultura”, o equivalente a apenas 0,07% da Dotação Inicial da União prevista para o ano. Esse valor já representa um decréscimo se comparado aos quatro últimos anos.

A função “cultura” está subdividida em quinze programas orçamentários. Porém, apenas os programas “cultura: dimensão essencial do desenvolvimento”, “proteção e promoção dos povos indígenas” e “programa de gestão e manutenção do Ministério da Cultura” contaram com alguma Dotação Inicial. Os demais representam apenas restos a pagar inscritos, ou seja, valores residuais a serem quitados em políticas e ações iniciadas em anos anteriores.

O Ministério da Cultura, principal responsável pelos programas orçamentários acima mencionados, recebeu dotação inicial total de R$ 2,7 bilhões. Este valor é substancialmente comprometido com programas ligados à sua própria atividade burocrática. O programa “Cultura: dimensão essencial do desenvolvimento”, diretamente relacionado às suas atividades finalísticas, por exemplo, representa 47,40% do total previsto para a pasta.

Importante mencionar ainda que apenas 15,57% da dotação inicial para a função cultura está atrelada diretamente ao Ministério da Cultura enquanto unidade orçamentária. Os demais 84,43% são direcionados especialmente às entidades a ele vinculadas, como a Fundação Nacional das Artes (Funarte) e a Fundação Biblioteca Nacional.

Se por um lado as fragilidades orçamentárias do ministério corroboram a tese da escassez de recursos para a cultura, por outro, observa-se o contínuo crescimento e consolidação de uma política pública assentada em incentivos fiscais. A Receita Federal, em seu Demonstrativo dos Gastos Governamentais Indiretos de Natureza Tributária (DGT), estimou gastos tributários na ordem de R$ 1,83 bilhões para a função cultura – o que representa 0,64% do total de gastos indiretos da União para 2017.

Conforme mencionamos em outros artigos de nossa coluna, os gastos tributários (ou indiretos) configuram renúncia de receita e se valem da legislação tributária para atender a objetivos econômicos e sociais. No caso, o Estado maneja seus instrumentos jurídicos para criar condições mais benéficas à produção, circulação e fruição da cultura. São exemplos de políticas assentadas em gastos indiretos: a Lei do Audiovisual, o Programa Nacional de Apoio à Cultura e o Vale-Cultura (que ainda não teve seu incentivo fiscal renovado pelo Congresso).

Vale lembrar que, a partir de 2003, o crescimento dos gastos públicos diretos com cultura foi acompanhado por um movimento institucional no qual o Ministério da Cultura pretendeu ampliar a participação e o papel do Estado nesse campo. Ainda assim, os gastos indiretos aumentaram rapidamente, reforçando-se uma tendência anterior de priorizar políticas culturais pautadas em incentivos fiscais.

Essa discrepância fica mais evidente se comparamos a Dotação Inicial e os valores efetivamente pagos (gastos diretos) com a projeção dos gastos indiretos. Com exceção de 2016, os gastos tributários superam inclusive a soma dos valores pagos com os restos pagos dos anos anteriores. Entre 2001 e 2017, o orçamento total executado (pago e restos pagos) com a função cultura foi de R$ 14 bilhões, enquanto a projeção de gastos indiretos foi de R$ 23 bilhões.

É inegável que os gastos indiretos representam um alento e reforço aos recursos totais destinados à cultura. Porém, devemos sublinhar que as políticas econômico-tributárias possuem limitações inerentes ao seu próprio funcionamento e sua natureza “indutora”. Vejamos a seguir um exemplo.

O Programa Nacional de Apoio à Cultura, instituído pela Lei 8.313/1991 (Lei Rouanet), foi criado com a finalidade de captar e canalizar recursos para o setor cultural. Nesse contexto, foram pensados três mecanismos de financiamento e fomento de projetos culturais: um de natureza pública, (i) o Fundo Nacional de Cultura (FNC); um de natureza privada, (ii) os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart); e um de características público-privadas (iii) o incentivo fiscal a projetos culturais por meio do mecenato.

Por meio desse último, doadores e patrocinadores podem deduzir do Imposto de Renda devido as contribuições realizadas a projetos culturais previamente aprovados pelo Ministério da Cultura. A parcela de dedução do imposto varia de acordo com o tipo de projeto cultural, se o contribuinte é pessoa física ou jurídica e se o apoio se dá a título de doação ou patrocínio (quando há exposição do nome e/ou marca).

Na prática, o Ministério da Cultura faz apenas uma análise técnica e orçamentária dos projetos culturais que lhes são submetidos, validando sua viabilidade e adequação aos objetivos da Lei. Em outras palavras, não lhe compete fazer juízos estéticos, estratégicos, ideológicos ou mesmo de “necessidade” sobre os projetos e sobre o aproveitamento dos recursos públicos advindos das renúncias.

Uma vez aprovado, o proponente pode captar os recursos junto à iniciativa privada. Cabe então aos apoiadores decidir quais iniciativas e setores culturais merecem apoio. Doadores e patrocinadores realizam aportes em uma conta bancária vinculada ao projeto, que serão utilizados na execução do projeto. Ao final, o proponente presta contas ao Ministério da Cultura.

Ainda que o mecenato da Lei Rouanet tenha ajudado a financiar uma série de iniciativas, projetos e entidades culturais de relevo como o Museu da Língua Portuguesa, a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), a Osesp, a Bienal de São Paulo, entre outras, não se furta de uma série de críticas. A mais contundente delas denuncia o caráter concentracionista da lei de incentivo, que se manifesta no perfil dos apoiadores, dos proponentes, nos tipos de projeto e até nos territórios que mais utilizam o instrumento.

Na série histórica de 1996 e 2005, os dez seguimentos culturais mais expressivos representaram 74,65% do total de projetos aprovados e 73,20% do montante captado. Isso significa que muitas formas de expressão cultural não conseguem encontrar incentivadores, sobretudo, em razão da possível falta de visibilidade ou de “apelo mercadológico”.

Do ponto de vista territorial, o Sudeste representa mais de 65% do total de projetos aprovados e mais de 75% do total de captação em 2015. Nos parece que isso ocorre por ao menos três: (1) concentração dos apoiadores nessa região; (2) interesse das empresas em veicular sua marca para a maior quantidade de consumidores possível; (3) maior grau de organização e profissionalização dos produtores e proponentes culturais da região. Fato é que essa concentração no Sudeste sequer é proporcional à sua população (42,05% em 2013) e à participação na arrecadação do Imposto de Renda (66,04% em 2013) ou no PIB brasileiro (55,27% em 2013).

Há de se mencionar ainda a baixa participação de recursos privados no incentivo aos projetos. A Lei Rouanet foi criada como um instrumento para impulsionar a parceria entre o Poder Público e privado no fomento à cultura nacional. Porém, por ser possível obter a dedução integral dos aportes realizados, o que se constata, a partir do próprio banco de dados do Ministério da Cultura, foi a diminuição da parcela da iniciativa privada no total captado.

O Ministério da Cultura não está alheio a tais apontamentos. A necessidade de reforma da Lei Rouanet foi mencionada em diversas gestões. Todavia, é possível dizer que sempre há uma enorme cautela para que quaisquer alterações visando seu aprimoramento não acabem por desestimular proponentes ou os próprios apoiadores. Ainda assim, em março desse ano, foi aprovada a Instrução Normativa 1/2017 – MinC, que alterou significativamente o funcionamento do mecenato para sanar algumas das distorções geradas pela lei.

As leis de incentivo à cultura (aquelas baseadas em gastos indiretos) não podem ser tratadas como a única via para garantir o pleno exercício dos direitos culturais, o acesso às fontes da cultura nacional e a valorização e a difusão das manifestações culturais – conforme rege o artigo 215, da Constituição Federal. É preciso conciliar tais instrumentos indutórios com ações de intervenção direta, regulação e outras formas de atuação do estado sobre o domínio econômico.

Isso perpassa não apenas a questão orçamentária, mas o estabelecimento de bons modelos de governança, inclusive, com a eventual reestruturação de competências. Afinal, por que a cultura deveria ser objeto apenas de um órgão? Não interessa aos órgãos de desenvolvimento econômico apostar em setores criativos – reconhecidos pelos excelentes índices de crescimento, empregabilidade e externalidades positivas? A cultura, assim como os gastos públicos diretos e indiretos com cultura, não deveriam ser assunto isolado de apenas um ministério. É justamente em momentos de crise e transformação que precisamos repensar nossos valores, hábitos, símbolos, modos de pensar e sonhos.

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    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da USP, livre-docente e doutor pela FDUSP, sócio da Gaia, Silva, Gaede & Associados. Foi secretário-adjunto da secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

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    é mestre em direito econômico pela USP, advogado especialista em Direito do Entretenimento, fundador e presidente do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes.

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