Diário de Classe

Esse estranho ilustre desconhecido: o saneamento compartilhado

Autores

  • Flavio Quinaud Pedron

    é sócio do Pedron Advogados doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) professor na UniFG (Bahia) na PUC-Minas e no IBMEC editor-chefe da Revista de Direito da Faculdade Guanambi e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional da Associação Brasileira de Direito Processual e da Rede Brasileira de Direito e Literatura.

  • Fernando Lage Tolentino

    é advogado mestre em Direito Processual pela PUC-Minas. Professor Assistente IV na Escola Superior Dom Helder Câmara.

2 de setembro de 2017, 11h09

Ao longo de mais de dez anos lecionando processo civil em vários cursos de graduação e pós-graduação lato sensu, pensando às vezes na distância existente entre a teoria legalmente positivada e a prática forense, nos deparamos com várias questões que despertaram e continuam despertando nosso interesse — e porque não dizer, nossa angústia.

Dentre esses vários pontos de dificuldade, gostaríamos de destacar hoje a questão do correto e adequado saneamento procedimental. Não obstante a importância do saneamento para o desenvolvimento regular e racional de um procedimento, sabemos que o dia a dia forense não apresenta como regra magistrados, que imersos em um grande mar de casos concretos a serem analisados e julgados, gastam o devido tempo na atividade de saneamento.

Essa talvez seja uma herança ruim que foi deixada pelos anos de prática processual baseada no CPC/1973, que não era exatamente um primor na regulamentação da fase de saneamento procedimental. De forma assistemática, tínhamos a regulamentação das chamadas providências preliminares (artigos 323 a 328) que misturavam questões relativas à verificação de efeitos da revelia, à possibilidade de ajuizamento de ação declaratória incidental, bem como à abertura de prazo para oferecimento de réplica pelo autor; do chamado julgamento conforme o estado do processo (artigos 329 e 330) com as hipóteses de extinção do processo e com o julgamento antecipado da lide; e a chamada audiência preliminar (artigo 331), de raro uso prático, que impunha ao magistrado, em caso de não verificação de um acordo, a necessidade de fixação dos pontos controvertidos da lide, a resolução de eventuais questões processuais pendentes e a delimitação do objeto/meios de prova.

Todavia, somos levados a crer que o novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) busca alterar essa realidade. E são três os argumentos que nos levam a pensar dessa forma.

De início podemos destacar nova sistematização legal a respeito do saneamento procedimental. O artigo 357 do novo Código busca regular de forma mais clara e objetiva o que denomina de saneamento e organização do processo[1].

Nos termos legais, não sendo possível o julgamento conforme o estado do processo, quais sejam: a extinção do procedimento (artigo 354) ou o julgamento antecipado do mérito (total ou parcial — artigos 355 e 356), devemos analisar os objetivos do saneamento: (I) resolução de eventuais questões processuais pendentes, caso existentes ou a certificação de sua inexistência ou já solucionadas; (II) delimitação das questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória (fixando os fatos que já não dependem de prova e os que ainda dependem), com a correlata especificação dos meios de prova admitidos (no intuito de impedir a produção de meios provas inúteis; (III) definição judicial a respeito da distribuição do ônus da prova, em especial em casos de inversão/redistribuição; (IV) delimitação das questões de direito relevantes para a decisão do mérito; e (V) designação, caso seja necessária a produção de provas orais, em audiência de instrução e julgamento.

Após a delimitação dos objetivos do saneamento, podemos perceber que o novo Código institui aquilo que parecem ser três tipos distintos de saneamento.

O primeiro, nos termos do § 1º do artigo 357, apresenta aquilo que tradicionalmente tínhamos como saneamento (ou saneamento solipcista),[2] onde o magistrado profere uma decisão (incorretamente chamada ainda hoje de “despacho saneador”) saneando o feito; ou seja, manifestando-se a respeito dos aspectos formais do procedimento até então desenvolvido, bem como deferindo/indeferindo provas a serem produzidas. Caso as partes queiram, podem manifestar-se no prazo legal de cinco dias solicitando ajustes ou esclarecimentos a respeito de pontos com os quais não concordem. Em caso de manutenção da decisão pelo magistrado, podemos pensar a interposição de eventual recurso de agravo de instrumento em caso de manifestação judicial sobre matérias arroladas no artigo 1.015 (em especial, exclusão de litisconsorte, rejeição do pedido de limitação do litisconsórcio, admissão ou inadmissão de intervenção de terceiros e redistribuição do ônus da prova).

O segundo tipo (ou forma) de saneamento, previsto no § 2º do artigo 357, permitiria às partes anteciparem-se à manifestação judicial e apresentarem proposta de delimitação das questões fáticas e jurídicas sobre os quais teríamos o desenvolvimento procedimental, sobretudo os atos instrutórios. Homologada a proposta consensual de parcial saneamento, magistrado e partes estariam vinculados.

O terceiro tipo de saneamento, previsto no § 3º do artigo 357, traz grande inovação em termos de desenvolvimento coparticipado do procedimento. Segundo o novo Código, entendendo o magistrado que o caso em julgamento seria complexo (seja no aspecto fático, seja no aspecto jurídico) poderia ser designada audiência específica para saneamento do feito em atividade conjunta com as partes (denominado por nós como saneamento compartilhado). Enxergamos essa terceira forma de saneamento como a mais adequada para o sistema processual brasileiro.

Aliás, encontramos nessa modalidade a exata forma de também dar cumprimento para o artigo 6º do CPC/2015, que estabelece um modelo de contraditório diverso da tradicional noção de bilateralidade de audiência de paridade de armas, qual seja, o dever de coparticipação sempre tão bem explicado pelo amigo Dierle Nunes em seus textos. Nesse mesmo caminha o Enunciado 298 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, afirmando que a utilização do saneamento compartilhado independe da complexidade da causa, podendo (ou até devendo) se tornar a modalidade padrão.

Por fim, entendemos que a nova regulamentação legal a respeito do saneamento, em especial a figura do saneamento compartilhado, vai ao encontro da regra da primazia do julgamento do mérito. Sabemos que ao longo de décadas o direito processual foi taxado, com certa razão, de extremamente legalista e de apegado às formas. Talvez o mais correto seria dizer que a leitura razoavelmente deturpada de alguns tribunais pátrios, ao desenvolverem ideias vinculadas às conhecidas jurisprudências defensivas, acabou por dar interpretação muito formalista das normas processuais. A regra da primazia do julgamento do mérito busca alterar essa realidade. Apesar da forma processual ser claramente manifestação em torno da ideia de segurança jurídica, não podemos deixar de ter em mente que o desenvolvimento de um procedimento judicial tem como ponto principal a análise e julgamento do seu mérito.

Na eventualidade de nos depararmos com vícios sanáveis que possam impedir ou dificultar a análise do mérito, cabe ao magistrado, contando com a colaboração ativa das partes e demais sujeitos processuais envolvidos, buscar sanar tais problemas, ao invés de simplesmente descartar o procedimento instaurado. Nesse sentido, relevante a transcrição de dois dispositivos do novo Código. Em primeiro lugar o artigo 4º, que afirma que as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa. Em segundo lugar, temos o artigo 317, que dispõe que antes de proferir decisão sem resolução de mérito, o juiz deverá conceder à parte oportunidade para, se possível, corrigir o vício.

Podemos concluir que o artigo 4º traz uma espécie de cláusula geral de primazia do mérito, vez que determina de forma genérica a todos os procedimentos regulados pelo Código a necessidade de busca pela resolução do mérito, de forma integral, incluída eventual etapa satisfativa. Já o artigo 317, inserido dentre as regras iniciais do procedimento comum, busca afastar sempre que possível a prolação de decisões terminativas (sem resolução do mérito), no intuito de implementar o conceito de busca pela resolução das questões centrais vinculadas à lide, ao direito debatido. É, portanto, medida preocupada muito mais com uma noção qualitativa – e não meramente formal – de atendimento do princípio de acesso à jurisdição (artigo 3º do CPC/2015).

Por fim, não podemos deixar de mencionar que se o saneamento for realizado com sua adequada qualidade, na forma do artigo 357 do CPC/2015, com a análise prévia corretiva de vício e incorreções na estrutura do procedimento, com a fixação dos pontos fático-jurídicos incontroversos e controvertidos, com a correta (re)distribuição do ônus de prova e definição dos meios probantes suficientes, auxilia enormemente para que a audiência de instrução e julgamento aconteça de maneira coordenada, racionalizada e otimizada.

Tal situação pode, claramente, vir a representar uma condição favorável, primeiro para que o mesmo se coloque atento às questões e às discussões que realmente importante para aquela audiência; e segundo, fornece ao magistrado um coerente esquema para a elaboração de sua sentença, haja vista já ter identificado todo o substrato fático relevante para o seu futuro relatório, além de tê-lo feito atento para se aquela parte, que detinha o ônus de prova sobre determinado fato controvertido, foi ou não com sucesso capaz de desincumbir-se do mesmo em juízo. Visto dessa forma, a adequada elaboração da decisão de saneamento poderá poupar tempo valioso no momento de sentenciar.


1 Aliás, na nossa opinião estamos diante de um certo pleonasmo, pois sanear, em termos processuais, não significa apenas verificar a ocorrência de possíveis vícios e corrigi-los, mas também organizar o procedimento com vistas ao desenvolvimento das próximas fases (instrutória e decisória) de forma mais racional, ou seja, organizada de forma a evitar atos processuais inúteis.

2 Terminologia adotada em nossa obra: THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Novo CPC – Fundamentos e sistematização. 3ª ed. Rio de Janeiro: GEN Forense, 2016.

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