Opinião

O julgamento kafkiano da magistratura pela imprensa brasileira

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1 de setembro de 2017, 14h51

O ato de julgar é muito sério. Exige preparo técnico, isenção, equilíbrio, conhecimento da causa e das normas jurídicas a ela pertinentes, oitiva dos envolvidos, colheita e exame de provas, reflexão sobre os argumentos apresentados, estudo, exposição minuciosa sobre as razões de se estar decidindo num ou noutro sentido e, acima de tudo, respeito pelos interessados, sobretudo por aquele em desfavor de quem se está julgando.

Ironicamente, os juízes brasileiros, a imensa maioria dos quais, com absoluta retidão e sacrifício pessoal e familiar, se dedica diuturnamente à árdua missão de julgar, estão sendo julgados por órgãos de imprensa sem os cuidados que se espera do julgador e, pior, sendo sumariamente expostos à opinião pública como indivíduos de probidade no mínimo duvidosa, que se locupletam do dinheiro público.

É claro que não se pode esperar da atividade jornalística o apuramento que deve existir no processo judicial. Contudo, não se pode admitir a leviandade que, a meu ver, vem marcando a conduta recente de certos órgãos de imprensa na abordagem de questões referentes à magistratura.

Assim é que, apenas para exemplificar, (a) anomalias pontuais são apresentadas como se constituíssem a regra, e repetidas à exaustão; (b) verbas remuneratórias de valores bastante expressivos aos olhos da opinião pública são apontadas sem o esclarecimento sobre as respectivas composições e sobre a circunstância de, em grande parte dos casos, envolverem parcelas eventuais, com o conhecimento e chancela do Conselho Nacional de Justiça (diferenças relacionadas a remunerações pagas a menor em períodos antecedentes, indenização por férias não gozadas, adiantamento de 13º salário, entre outras); (c) editorialistas e comentaristas loquazes, dando ares de grandes jurisconsultos, se manifestam de maneira visivelmente tendenciosa e iracunda, sem verdadeiro conhecimento sobre as questões tratadas; (d) esclarecimentos e desmentidos de órgãos de direção dos tribunais e de entidades associativas não são publicados; (e) jornais de renome publicam holerites de magistrados sem a menor preocupação quanto à intimidade e segurança desses agentes públicos (informações essas que, conquanto possam ser obtidas mediante acesso aos portais de transparência dos tribunais, encontram algum resguardo, por tal meio, na possibilidade de identificação do endereço eletrônico de onde partiu a consulta).

Curioso é que esses mesmos órgãos de imprensa não se dão ao trabalho de abordar a importância do juiz para a existência e manutenção do Estado de Direito, principalmente para a proteção da sociedade, dos indivíduos em geral contra atos dos detentores do poder, seja econômico, seja político, aí incluídos os próprios governantes.

Não informam o público sobre os méritos do Judiciário brasileiro, que é integrado por inúmeras pessoas de enorme valor, entre magistrados e servidores, e que não se resume aos profissionais envolvidos nos processos relacionados à chamada operação “lava a jato”.

Não mencionam o brutal aumento do número de litígios trazidos ao Judiciário graças à Constituição Federal de 1988, e o esforço desumano de juízes e servidores para dar-lhes atenção e solução em tempo razoável.

Omitem que corrupção é algo excepcionalíssimo no âmbito da Magistratura, embora, lamentavelmente, seja frequente em inúmeros outros setores do serviço público e do meio empresarial.

Não reconhecem a necessidade de bem remunerar o juiz e de garantir-lhe, no mínimo, o reajuste monetário anual dessa remuneração, nos exatos termos da Constituição Federal, quer para possibilitar-lhe a necessária tranquilidade financeira e dedicação ao trabalho, que é exclusiva, quer para melhor resguardá-lo da sanha dos poderosos.

Embora saibam perfeitamente disso, não esclarecem que muitos dos por eles denominados “penduricalhos”, entre os quais o tão decantado auxílio-moradia, não passam de artifícios concebidos por governantes do passado para mascarar reajustes monetários da remuneração da magistratura, então enormemente defasada por efeito da inflação, de modo a que não houvesse repercussão desses reajustes a outras carreiras do serviço público.

E, em meio à cruzada contra a magistratura, cuja desmoralização e enfraquecimento interessa a muitos dos atuais detentores do poder político e econômico, os órgãos de imprensa têm deixado de lado questões que representam o verdadeiro sumidouro dos recursos públicos, como, por exemplo, o uso indiscriminado de cartões corporativos no âmbito do Poder Executivo; o número gigantesco de cargos comissionados no Executivo e no Legislativo; o peculiar regime previdenciário de que desfrutam os detentores de mandato político; e, mais que tudo, as excessivas verbas de gabinete e outras vantagens indiretas pagas a parlamentares, cujos valores suplantam gritantemente a remuneração da magistratura e, por consequência, o teto constitucional.

A impressão que se tem é a de que certos órgãos de imprensa agem movidos por interesse, ou por ressentimento frente às condenações que por vezes lhes são impostas, justamente pelos tantos casos de ultraje sensacionalista à honra alheia.

É preciso meditar sobre isso e sobre a cultura que os meios de comunicação acabam incutindo nas camadas menos esclarecidas da população brasileira, a de que só jogadores de futebol, artistas de televisão e outros personagens com apelo midiático são dignos de reconhecimento, de remuneração diferenciada — que também é paga, direta ou indiretamente, por todos nós.

Não por acaso, o ensino público brasileiro, incluído o universitário, vem se deteriorando ano a ano, do mesmo modo que a produção científica. Os abnegados professores de outrora migraram para o setor privado, de há muito; as grandes mentes do mundo científico, para o exterior.

Idêntico fenômeno ocorrerá no seio da magistratura, a persistir a injusta e generalizada campanha que lhe é dirigida.

São as considerações que submeto à reflexão dos que têm honestidade de propósitos e que verdadeiramente desejam um Brasil melhor.

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