Opinião

Pedido de acesso a informações públicas não exige motivação

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31 de outubro de 2017, 5h43

A Lei 12.527/2011 é uma bela página da nossa incipiente cultura republicana. Logo no artigo 3º, caput e inciso I, o legislador revelou o seu propósito de impor o respeito ao direito constitucional fundamental de acesso à informação, em conformidade com os princípios básicos da administração pública e observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção.

Em qualquer república acostumada ao cumprimento da Constituição e das leis, nada mais precisaria ser dito. Mas, conhecendo o seu "gado", em especial o da raça barnabé, que viceja nos ricos pastos do serviço público, o legislador tratou de realçar o óbvio no artigo 21: "Não poderá ser negado acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais". Os dois dispositivos da Lei de Acesso à Informação (LAI) contemplam, com perfeição, toda vontade do legislador: publicidade e acesso à informação como regras gerais, notadamente quando necessárias à tutela de direitos fundamentais, e o sigilo como regra excepcional. Ainda assim, a postura ordinária — quanto à frequência e quanto à qualidade — de órgãos e servidores públicos leva a crer que o legislador malhou em ferro frio.

No romance O Diabo Mesquinho, do escritor russo Fiódor Sologub, o personagem central é a figura mesquinha do professor de escola pública Peredónov. O livro aborda questões relacionadas ao exercício da autoridade e ao funcionalismo público, sempre permeadas pelas ironias e desprezos do autor por aquelas tristes figuras humanas. Deveria ser leitura obrigatória no serviço público jaboticabeiro. Principalmente para uma geração de cabeças de apostilas que os bons cursos preparatórios vêm alçando a importantes cargos jurídicos.

Recentemente, recorri à Lei 12.527/2011 para obter informações em órgãos da administração pública federal. De forma quase unânime, as solicitações foram tratadas com má vontade e desprezo pela lei. Na Receita Federal, por exemplo, indeferiram um pedido sob o fundamento do sigilo fiscal. Ao reconhecerem, posteriormente, que se tratava de um processo administrativo comum, o assessor que o engavetara escreveu solenemente: "Propõe-se responder que não consta decisão sobre o pedido, assim como não constam razões da não apreciação e julgamento". Uma pérola daquelas que, por dever de civilidade e de probidade, não deveria ser oferecida nem aos miseráveis suínos do adágio popular. Mas coisas piores ainda estariam por vir. O abcesso da negativa de acesso a informações revelaria sua faceta mais inflamada em importante órgão jurídico federal.

Pretendi ter acesso a mensagens enviadas ou recebidas em endereços eletrônicos (e-mails) institucionais, disponibilizados pela administração pública para uso oficial, que tivessem tratado, exclusivamente, de questões referentes a processos administrativos dos quais sou parte ou interessado. Documentos que, em respeito aos princípios da transparência, da honestidade e da publicidade, deveriam ser juntados aos autos por ato de ofício das autoridades competentes.

A peça inicial do pedido fez remissão ao artigo 5º, XXXIII, da Constituição, regulamentado pela Lei 12.572, e à Lei 8.112/90, por ser esta o estatuto do servidor público federal. E registrou, mesmo sem necessidade, que as informações serviriam para subsidiar "questões a serem suscitadas na defesa, que exigem conhecimento pleno de toda a tramitação do processo, incluídos os atos oficiais, formais e informais praticados na condução do feito". A partir dessa simples observação, instalou-se o abscesso denegatório. Os argumentos construídos para indeferir o pedido honrariam o nobre professor Peredónov. Os melhores foram: i) não demonstrou a pertinência do pedido; ii) o pedido deveria ser feito à comissão; iii) não cabem mais atos de defesa e o pedido está atrelado ao “tema do direito à prova”; e iv) deseja converter em investigado o agente público que tenha atuado em processos de seu interesse.

O direito de acesso a informação pública não sigilosa é absolutamente desvinculado da demonstração de pertinência do pedido. Efetivamente, os servidores públicos, advogados inclusive, permanecem encandeados pelas luzes transparentes da Lei 12.572/11. Talvez por isso não enxergaram ainda que o parágrafo 3º, do seu artigo 10, veda, expressamente, quaisquer exigências relativas aos motivos determinantes da solicitação de informações de interesse público.

Por outro lado, o titular do endereço eletrônico (e-mail) institucional é o órgão público, e não simples comissões temporárias. A titularidade pública dos e-mails oficiais é pacífica, como bem registrou a Ouvidoria-Geral da União: "As caixas postais do correio eletrônico administradas (…) são de propriedade da Presidência da República" (Norma VIII – 101). Portanto, o pedido, obrigatoriamente, há de ser dirigido ao dirigente do órgão ou do setor que forneceu o endereço eletrônico, e não aos eventuais usuários.

O fato de o pedido estar supostamente “atrelado ao tema do direito à prova” (seja lá o que isso signifique) e as informações não mais servirem ao exercício do direito de defesa também não são argumentos idôneos para se negar, ao solicitante, informações sobre documentos referentes a processos de seu interesse.

Quanto à possibilidade de “converter em investigados servidores públicos que atuaram nos processos” objetos do pedido, parece mais um caso “atrelado ao tema” do dever de superintendência. Se o usuário de endereço eletrônico institucional “emprestado” pela administração pública, para uso oficial, utilizou-se desse instrumento de trabalho para prática de ato ilícito, a responsabilidade de investigar é da autoridade de hierarquia superior, sob pena de condescendência criminosa, e não do administrado postulante da informação. Ou talvez seja um caso de paranormalidade: a autoridade, investida de poderes sobrenaturais, adentra a mente do pedinte para auscultar suas íntimas intenções. Se constatar que pretende “denunciar” algum agente público, nega-lhe o pedido. Estranhos tempos!

Por outro lado, julgam inaplicáveis as disposições da Lei 12.527 quando a petição não se referir, expressamente, àquela norma legal, e não for feita por meio do Sistema de Informação ao Cidadão. Definitivamente, o legislador da LAI não tem sorte quanto à obediência aos seus mandamentos. Bastaria aos hermeneutas ler a cabeça do seu artigo 10 para entender que o administrado pode peticionar por qualquer meio legítimo. Ao que consta, não deslegitimaram, ainda, o papel.

Argumenta-se, ainda, que a administração pública deve negar acesso ao conteúdo de mensagens oficiais, enviadas ou recebidas em e-mails institucionais, porque nenhuma lei ou norma regulamentar impõe expressamente o fornecimento de tais documentos públicos. Obviamente, o entendimento é improbo, por violação do dever honestidade — no caso, honestidade moral e intelectual — e de lealdade às instituições de que trata o artigo 11 da Lei 8.429/1992. Ainda assim, há quem assente morada em exegeses da espécie.

O artigo 4º, caput e inciso I, da Lei de Acesso à Informação define como documento público toda e qualquer unidade de informação, independentemente do meio ou formato que a contenha. Negar às mensagens que trataram de assuntos institucionais, enviadas ou recebidas em e-mails de propriedade da administração pública, a natureza de documento público, é negar vigência à lei, o que parece não ter sido autorizado aos servidores públicos, ainda que advogados federais.

A Controladoria-Geral da União tem entendimento muito claro a respeito da questão: “Não constitui afronta à primeira parte do art. 5º, XII, CF o uso das informações contidas no e-mail institucional do servidor, não se justificando a alegação de preservação de intimidade. Isso se justifica em razão de o e-mail corporativo ter seu uso restrito a fins do trabalho, o que confere à Administração o acesso a ele ou o seu monitoramento, sem que seja necessária autorização judicial” (Manual de Processo Administrativo Disciplinar: 10.3.18.5). Também é o que sustenta a Ouvidora-Geral da União: “O email (.gov.br) não é considerado uma correspondência pessoal, mas uma comunicação institucional. Portanto, um documento público, como de fato prevê a LAI ao dispor claramente que são documentos as unidades de informação produzida sob qualquer formato”.

Outro novíssimo argumento para negar acesso a mensagens trocadas via e-mails institucionais, pertencente à administração pública, é o “sigilo profissional”, quando o usuário do endereço for advogado (Lei 8.906, de 4/7/1994, artigo 7º, inciso II). É verdade que o sigilo profissional protege indistintamente a todos os advogados, inclusive os advogados públicos. Mas exclusivamente quando no exercício de suas funções de advogado. Fora das atribuições privativas, não.

A Lei 8.906/1994 define, precisamente, quais são as atividades privativas da advocacia: "a postulação a órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais e as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas" (artigo 1º, I e II). O que não inclui, obviamente, a troca de mensagens ocultas do interessado, por meio de endereços eletrônicos da administração pública disponibilizados a servidores públicos. Sejam eles advogados ou não.

É verdade que o inciso II do artigo 2º da Lei 8.906/1994 prevê a inviolabilidade do escritório e do local de trabalho do advogado, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia. Porém, a leitura conjugada dos artigos 1º e 2º só permite uma conclusão: são absolutamente invioláveis a correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática do advogado relativas ao exercício da advocacia, cujas atividades privativas são, exclusivamente, aquelas especificadas no próprio artigo 1º Estatuto da Advocacia.

Por mais nobres que sejam as funções nos órgãos de correição e nas comissões disciplinares, as atividades ali exercidas não são privativas de advogado. Basta uma olhada na Lei Complementar 73/1993, que rege a advocacia pública federal, e no artigo 149 da Lei 8.112/90, no qual consta apenas a exigência de que os órgãos instrutores sejam compostos de "servidores estáveis e o presidente ocupe cargo efetivo superior ou de mesmo nível, ou tenha nível de escolaridade igual ou superior ao do indiciado". Não se trata, pois, de atividade privativa de advogado a atrair a cláusula de inviolabilidade do artigo 7º do Estatuto da Advocacia.

Extravagante, também, o recurso à suposta natureza sigilosa do processo disciplinar para justificar a negativa de informações ao próprio interessado. Efetivamente, o papel aceita tudo. Mas emprestar o caráter sigiloso do processo disciplinar às mensagens ocultas enviadas e recebidas de endereços eletrônicas pertencentes à administração pública margeia perigosamente a ilicitude. Ainda que o defensor da tese seja um advogado público albergado em imunidade momentânea.

Como disse um velho professor cearense à mulher, que aguardava ansiosa pela sua avaliação de pai e jurista quanto ao desempenho do filho, na primeira defesa deste perante o tribunal do júri: “Vai fazer muito sucesso, querida. Tem coragem de falar insanidades que eu jamais falaria”. Assim como hermeneutas de locação, que também são dotados de muita coragem. E quase nenhum senso.

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