A Nova Constituição

O poder regulamentar do TSE na jurisprudência do Supremo

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29 de outubro de 2017, 7h00

Spacca
Os Poderes da República são, nos termos do artigo 2º da Constituição Federal de 1988, independentes e harmônicos[1]. Enquanto ao Legislativo e ao Executivo compete criar e administrar as leis, a responsabilidade do Judiciário é aplicar os direitos e deveres. Em que pesem a indelegabilidade e exclusividade de competências de cada um dos Poderes, o Código Eleitoral[2], a Lei das Eleições[3] e a Lei dos Partidos Políticos[4] autorizam o Tribunal Superior Eleitoral a expedir instruções convenientes à execução da lei eleitoral.

O Supremo Tribunal Federal debruçou-se sobre a aparente contradição entre separação dos Poderes e poder regulamentar da Justiça Eleitoral no julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade 3.999/DF e 4.086/DF, cuja discussão ocorreu a partir das resoluções 22.610[5] e 22.733[6], por meio das quais o Tribunal Superior Eleitoral regulamentou a perda do mandato parlamentar por infidelidade partidária.

As resoluções são atos normativos editados pelo Plenário do Tribunal Superior Eleitoral com o objetivo precípuo de regulamentar, organizar e executar as eleições na dinâmica que o processo eleitoral demanda. De acordo com a lição de Manuel Carlos de Almeida Neto, “o poder regulamentar e normativo da Justiça Eleitoral deve ser desenvolvido dentro de certos limites formais e materiais. Os regulamentos eleitorais só podem ser expedidos segundo a lei (secundum legem) ou para suprimir alguma lacuna normativa (praeter legem). Fora dessas balizas, quando a Justiça Eleitoral inova em matéria legislativa ou contraria dispositivo legal (contra legem), por meio de resolução, ela desborda da competência regulamentar, estando, por conseguinte, sujeita ao controle de legalidade ou constitucionalidade do ato”[7]. Embora situada em nível hierarquicamente inferior, a instrução é dotada da mesma eficácia geral e abstrata atribuída às leis — a chamada “força de lei”.

A função regulamentar remete ao Decreto 22.076/32, considerado o primeiro Código Eleitoral, cujo artigo 5º instituiu a Justiça Eleitoral com competência para “fixar normas uniformes para a aplicação das leis e regulamentos eleitorais, expedindo instruções que entenda necessárias”. Por mais que a função regulamentar da Justiça Eleitoral não consista propriamente em novidade, a controvérsia mantém-se viva na doutrina devido à circunstância de a Constituição de 1988 não prever taxativamente essa competência, ao contrário das Constituições anteriores, que atribuíam implicitamente à Justiça Eleitoral a prerrogativa de adotar ou propor as previdências necessárias à realização das eleições.

De um lado, Eneida Desiree Salgado entende inconstitucional a atuação regulamentar da Justiça Eleitoral ao argumento de que, sem a previsão expressa no texto constitucional e em se tratando de função atípica, não se deveria chancelar a possibilidade de elaboração de normas, ainda que secundárias, pelo Poder Judiciário[8]. Por outro lado, Clèmerson Merlin Cléve argumenta que a função regulamentar foi, sim, recepcionada na nova ordem por força do artigo 121 da Constituição, que reserva à lei complementar “a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais”[9].

Ao longo dos pleitos, as resoluções prestaram-se como ferramenta essencial à evolução do arcabouço legislativo eleitoral[10]. Na Resolução 22.610, 25 de outubro de 2007, o Tribunal Superior Eleitoral consolidou e imprimiu efeitos vinculantes à jurisprudência sua e do Supremo Tribunal Federal em torno da infidelidade partidária, disciplinando as hipóteses de justificação de desfiliação do partido político, as sanções para a desfiliação sem justa causa, o rito a ser observado, os prazos e legitimados ao ajuizamento da ação de perda de cargo eletivo por infidelidade partidária.

A Resolução TSE 22.610 foi editada a partir da resposta à Consulta 1.398[11]. Em divergência com o posicionamento até então dominante no Supremo Tribunal Federal, cuja jurisprudência entendia que o mandato era de titularidade do candidato eleito[12], o Tribunal Superior Eleitoral respondeu que o mandato pertencia ao partido, que teria o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema proporcional. Após a resposta do TSE à consulta, o STF foi chamado a se manifestar sobre a controvérsia, terminando por rever sua posição[13]. Em atenção à nova orientação jurisprudencial do Supremo, o Tribunal Superior Eleitoral editou a Resolução 22.610.

Em face da resolução da fidelidade partidária, foram propostas duas ações diretas de inconstitucionalidade: uma pelo Partido Social Cristão e outra pela Procuradoria-Geral da República. Nas ações, julgadas em conjunto, sustentava-se que as resoluções TSE 22.610 e 22.733 violavam a reserva de lei complementar para definir as competências dos tribunais eleitorais, como determina o artigo 121 da Lei Fundamental e usurpavam as funções do Poder Legislativo e Executivo em dispor de matéria eleitoral e processual, como previsto nos artigos 22, inciso I, 48 e 84, inciso IV, da Constituição de 1988[14]. Ao legislar sobre fidelidade partidária, teria o tribunal invadido competência do Poder Legislativo e, assim, desrespeitado o princípio da separação dos Poderes, como inscrito nos artigos 2º e 60, parágrafo 4º, da Carta Magna[15].

As ações diretas também impugnaram a nova atribuição conferida ao Ministério Público Eleitoral pelas resoluções. Para os proponentes, a legitimidade à propositura da ação de perda do mandato afrontaria a cláusula de reserva de lei estabelecida pelos artigos 128, parágrafo 5º, e 129. Inciso IX, da Constituição[16]. Por fim, colocava-se que as resoluções não disciplinavam a possibilidade do suplente requerer o cargo. Assim, permitir ao suplente fazê-lo implicaria violação à segurança jurídica e à proteção da confiança.

Ao apresentar informações, a Presidência do Tribunal Superior Eleitoral esclareceu que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não mais admite a infidelidade partidária, pelo que as resoluções não consistiriam em inovação normativa e consequente invasão da Justiça Eleitoral no âmbito de matéria reservada aos Poderes Legislativo e Executivo — na realidade, os atos davam cumprimento às decisões do Supremo nos MS 26.602, 26.603 e 26.604. Ao final, acrescentou o tribunal que as resoluções asseguravam o contraditório e a ampla defesa no procedimento de perda do mandato.

A Advocacia-Geral da União, no exercício do dever constitucional e legal de defender a constitucionalidade do ato normativo atacado, sustentou que as resoluções imprimiam efetividade à decisão do Supremo no MS 26.603, fixando “diretriz hermenêutica em torno da compreensão, aplicabilidade e incidência da norma constitucional que prevê o sistema proporcional, art. 45, caput, da Constituição Federal”.

Por maioria, vencido o ministro Marco Aurélio, o Supremo Tribunal Federal conheceu das ações sob o fundamento de que as resoluções veiculavam normas gerais e abstratas relativas ao processo de perda do mandato eletivo por infidelidade e ao processo judicial de determinação de justa causa na desfiliação partidária. Nos termos do voto do relator, ministro Joaquim Barbosa, o controle abstrato de constitucionalidade seria possível em razão da “densidade normativa própria e suficiente” dos atos impugnados.

Vencido na preliminar de conhecimento, o ministro Marco Aurélio julgou não restarem configurados os requisitos do controle concentrado, por não caber ao Tribunal Superior Eleitoral legislar sobre Direito Eleitoral Processual ou Material. Adentrando o mérito das ações, não vislumbrou competência do TSE para editar leis e, mesmo ante a inexistência e diploma legal que normatizasse os temas veiculados na resolução, seria competência do Supremo Tribunal Federal julgar eventual mandato de injunção. Também vencido no mérito, o ministro Eros Grau entendera que as resoluções tratavam de temas reservados à lei complementar, inovando no Direito Processual Eleitoral e nas atribuições funcionais do Ministério Público Eleitoral.

A maioria formou-se a partir do voto do relator, ministro Joaquim Barbosa, para quem os casos de perda de cargo eletivo e o respectivo procedimento deveriam ser discutidos nos órgãos de representação popular por meio do debate legislativo, por serem questões de natureza eminentemente política. Porém, o ministro consente que ao Poder Judiciário é permitido intervir para definir os critérios de orientação, manutenção e perda do cargo por infidelidade sob pena de o Supremo Tribunal Federal sair enfraquecido em razão da reiterada inércia do Poder Legislativo e contumaz inobservância dos princípios básicos do sistema representativo.

Face à transitoriedade da solução a ser dada pelo Tribunal Superior Eleitoral, devido aos projetos de lei à época em trâmite no Congresso Nacional acerca da matéria, o respeito ao princípio da disciplina colegial implicaria no reconhecimento da constitucionalidade das resoluções 22.610 e 22.733, vez que foram expedidas pelo TSE para criar os meios processuais que efetivassem as consequências ao desrespeito da decisão do STF: “Vale dizer, de pouco adiantaria a Corte reconhecer um dever — fidelidade partidária — e não reconhecer a existência de um mecanismo ou de um instrumento legal para assegurá-lo”, de acordo com o ministro Joaquim Barbosa.

O voto do ministro relator foi acompanhado pelos ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Carlos Ayres Britto, Ellen Gracie, Cezar Peluso e Gilmar Mendes, destacando a importância das resoluções na concreção da decisão do Supremo Tribunal Federal enquanto o Congresso Nacional não regrasse a matéria diversamente e a relevância do princípio da colegialidade dentro do Poder Judiciário.

Mais do que reconhecer constitucionais as resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, o Supremo Tribunal Federal firmou a excepcionalidade da função regulamentadora. Para a maioria dos ministros, em respeito ao princípio da colegialidade, era dever do STF ter por hígida a resolução editada pelo TSE a fim de viabilizar a efetividade das decisões do próprio tribunal federal. Contudo, frisou-se a atipicidade da medida, que não substitui a iniciativa do Poder Legislativo em disciplinar sobre Direito Eleitoral.

Não há dúvidas de que o Poder Judiciário, ainda que bem intencionado, não pode atuar como Poder Legislativo, sob pena de contrariar a essência do Estado Democrático de Direito. A Justiça Eleitoral, a pretexto de regulamentar, vale-se dessa função a fim de elaborar resoluções com conteúdo completamente inovador se comparado à legislação em vigência, usurpando assim a competência do Congresso Nacional[17]. Ao Tribunal Superior Eleitoral não é permitido, não é constitucional, expedir resolução que restrinja direitos e fixe sanções diferentes das estabelecidas pelo legislador.


[1] Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
[2] Art. 23 – Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior (…):
X – expedir as instruções que julgar convenientes à execução deste Código
[3] Art. 105. Até o dia 5 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas nesta Lei, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua fiel execução, ouvidos, previamente, em audiência pública, os delegados ou representantes dos partidos políticos
[4] Art. 61. O Tribunal Superior Eleitoral expedirá instruções para a fiel execução desta Lei.
[5] O Tribunal Superior Eleitoral, no uso das atribuições que lhe confere o art. 23, XVIII, do Código Eleitoral, e na observância do que decidiu o Supremo Tribunal Federal nos Mandados de Segurança nº 26.602, 26.603 e 26.604, resolve disciplinar o processo de perda de cargo eletivo, bem como de justificação de desfiliação partidária, nos termos seguintes (…)
[6] Altera o art. 11 da Resolução-TSE nº 22.610, de 25 de outubro de 2007
[7] ALMEIDA NETO, Manoel Carlos. Direito eleitoral regulador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 219-220
[8] SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais eleitorais. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 252
[9] CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade Legislativa do Poder Executivo. 3 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 79
[10] LACERDA, Paulo José M.; CARNEIRO, Renato César; SILVA, Valter Félix. O poder normativo da Justiça Eleitoral. João Pessoa: Sal da Terra, 2004. p. 28.
[11] Consulta nº 1.398/DF, rel. Min. Francisco Cesar Asfor Rocha, DJ 08.05.2007.
[12] MS nº 20.927, rel. Min. Moreira Alves, DJ 15.04.1994
[13] MS nº 26.602, rel. Min. Eros Grau, DJe 17.10.2008; MS nº 26.603/DF, rel. Min. Celso de Mello, DJe 19.12.2008; MS nº 26.604/DF, rel. Min. Carmen Lúcia, DJe 03.10.2008
[14] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho (…).
Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre (…)
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República (…):
IV – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução
[15] § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir(…):
III – a separação dos Poderes
[16] § 5º Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros.
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público (…):
IX – exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.
[17] COÊLHO, Marcus Vinicius Furtado. Direito eleitoral, direito processual eleitoral e direito penal eleitoral. 4 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 77.

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