Observatório Constitucional

Primeira década de vigência da repercussão geral pode ser considerada positiva

Autor

  • Marco Túlio Reis Magalhães

    é doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo mestre em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

28 de outubro de 2017, 7h05

Uma década é um marco temporal singular, que frequentemente adotamos como referência para fazer balanços em diversas situações — talvez porque uma década possa significar muito em termos de vida pessoal, bem como em termos de vida institucional e social. Não por menos, é comum ouvirmos expressões do tipo “década perdida” e “década de ouro”. Mas sabemos bem da premissa de que o tempo é relativo, não apenas em termos científicos, mas também em termos históricos. Ao fim e ao cabo, dependemos, em boa medida, de uma certa subjetividade do olhar e da percepção do observador para uma análise a seu respeito.

Transmudando esses devaneios cronológicos ao contexto de um Observatório da Jurisdição Constitucional, vale notar que há uma década entrou em vigor, em termos práticos, a exigência da demonstração da existência da repercussão geral das questões constitucionais debatidas nos recursos extraordinários submetidos ao Supremo Tribunal Federal.

Embora tal instituto tenha sido inserido em nosso ordenamento jurídico a partir da Emenda Constitucional 45, de 2004, com a introdução do parágrafo 3º do artigo 102 da Constituição Federal, e a sua regulamentação tenha se dado com a Lei 11.418/2006, é somente a partir da publicação da Emenda Regimental 21, de 30/4/2007 (DOU 3/5/2007) que o Regimento Interno do STF estipulou e detalhou normas procedimentais para a sua execução.

Feita essa regulamentação interna, a suprema corte definiu o entendimento jurisprudencial de que somente seria exigível a demonstração da repercussão geral das questões constitucionais em recursos extraordinários interpostos contra acórdãos publicados a partir de 3/5/2007[1]. Ainda segundo a jurisprudência do STF, isso não impediria que os efeitos da aplicação da sistemática da repercussão geral pudessem vir a ser aplicados a recursos extraordinários interpostos antes da referida data[2].

Nesse contexto, o transcurso da primeira década de experiência do instituto da repercussão geral permitiu enxergar muitas mudanças e desafios que ele incorporou à prática decisória do STF e à própria releitura da relevância do recurso extraordinário no nosso ordenamento jurídico.

Quanto a este último ponto, um dos aspectos doutrinários e jurisprudenciais muito debatidos foi a sua contribuição para o fortalecimento do denominado fenômeno de “objetivação” do recurso extraordinário, quer dizer, a “tendência de não-estrita subjetivação ou de maior objetivação do recurso extraordinário, que ele deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva”[3].

Nesse sentido, a doutrina afirma que o escopo do instituto seria “a maximização da feição objetiva do recurso extraordinário, característica que bem pode servir ao propósito republicano de dar coerência e integridade ao direito”[4]. Ou ainda a percepção de uma mudança consubstanciada na “transformação do recurso extraordinário, que, embora instrumento de controle difuso de constitucionalidade das leis, tem servido, também, ao controle abstrato”[5]. A possibilidade de admissão de manifestação de terceiros quanto à análise da repercussão geral também reforçaria essa compreensão[6].

Ao lado dessa constatação, ressalta-se o grande desafio ligado à nova prática decisória da suprema corte. A aplicação do instituto da repercussão geral exigiu mudanças no processo de julgamento do STF para se ajustar às novas disposições dos artigos 543-A e 543-B do CPC/73 (introduzidos pela Lei 11.418/2006), destacando-se a inovadora sessão eletrônica (Plenário Virtual), com prazos e regras específicos para a análise do reconhecimento (ou não) da repercussão geral dos recursos[7]. Destaca-se, ainda, a figura da repercussão geral presumida (situação em que o recurso extraordinário impugna decisão contrária à súmula ou jurisprudência dominante da corte ou que tenha reconhecido a inconstitucionalidade de tratado ou de lei federal)[8], a qual dispensa o rito da referida sessão eletrônica.

Tais considerações revelam um cenário de contínuo desafio para o STF, pois ele deveria concretizar as regras da Lei 11.418/2016 em sua prática institucional, garantindo publicidade, segurança jurídica e devido processo legal, em sintonia com a viabilização de meios informatizados seguros e com a tramitação célere de processos eletrônicos.

Parte do enfrentamento desse desafio pode ser demonstrado a partir do destaque que esse assunto ganhou no site da corte. Há na página eletrônica principal do STF uma aba específica sobre repercussão geral, em que é possível acessar uma série de títulos com variadas informações ("Pesquisa Avançada", "Teses de Repercussão Geral", "Plenário Virtual", "Suspensão Nacional", "Repercussão Geral em Pauta", "Representativos da Controvérsia", "Informações Consolidadas", "Sobre a Repercussão Geral", "Fórum"). Eles permitem uma visão panorâmica dos dados atuais da repercussão geral. Além disso, os dados ali existentes servem não apenas para aqueles que militam e pesquisam na área do Direito, mas também para a consulta dos cidadãos em geral.

O título denominado "Informações Consolidadas" (constante no site do STF) traz uma série de dados relevantes, destacando-se, inicialmente, aqueles reunidos em arquivo denominado “Estatística da Repercussão”, em que há números da repercussão geral, com situação atual detalhada durante o intervalo de 2007-2017, em que é possível analisar diversos aspectos, tais como: o exame da preliminar de repercussão geral por ano (em termos de quantidade de temas); os méritos de repercussão geral julgados por ano (em termos de quantidade de processos); análise estatística individualizada referida à atuação de cada ministro da corte; casos de mérito de repercussão geral pendentes de julgamento, casos de repercussão geral negada; quantitativo de situações de reafirmação de jurisprudência e quantitativo de novos temas.

De acordo com esses dados, o tribunal já teria se debruçado para análise da repercussão geral em 965 casos (sendo 651 deles de repercussão geral reconhecida e 314 deles de repercussão geral negada)[9].

Além disso, as informações apresentadas nos arquivos denominados “Boletins de Repercussão Geral”, divulgados por semestre de atuação da corte, consistem em uma lista detalhada dos temas de repercussão geral julgados, com síntese de assuntos e debates.

De forma complementar, os dados disponíveis sobre a lista de processos sobrestados nas instâncias inferiores, em razão da sistemática da repercussão geral e que aguardam decisões do STF, permitem evidenciar o tamanho do esforço que a referida sistemática exige dos tribunais de segunda instância e o volume de recursos que são retidos[10]. Afinal de contas, não custa lembrar que a maioria dos processos da suprema corte consiste em recursos extraordinários e respectivos agravos para destrancá-los.

Uma outra importante fonte de análise consiste nos dados do recente relatório gerencial de prestação jurisdicional divulgado pela Presidência do STF, intitulado “Relatório UM ANO DE GESTÃO Ministra Cármen Lúcia 12/9/2016 a 12/9/2017)”[11].

Esse relatório divulgou que, atualmente, o STF registraria o menor acervo dos últimos dez anos, com 46.586 processos em 20/9/2017 (em que 30.369 seriam de origem recursal e 16.217 seriam processos originários na corte). Ele também divulgou a redução de 23,51% do acervo de processos no primeiro ano de gestão da presidente Cármen Lúcia.

Constou ainda do referido relatório que o patamar de redução de processos na corte seria 14,70% superior ao número de processos que teriam ingressado no STF no período discriminado em tal documento e que ações estratégicas da Secretaria Judiciária do tribunal teriam sido determinantes para isso, inclusive por meio de “baixa de processos devolvidos pela repercussão geral sem contagem de prazo recursal, visto se tratar de decisão irrecorrível (início em dezembro de 2016)”[12].

Especificamente quanto ao tema da repercussão geral, no primeiro ano de gestão da ministra Cármen Lúcia, o mencionado relatório informa que houve 46 temas de repercussão geral reconhecidos e 15 negados. Além disso, 49 méritos de recursos extraordinários com repercussão geral foram julgados, além de 15 casos em que a repercussão geral foi reconhecida com reafirmação da jurisprudência do STF.

Toda essa divulgação no site do STF, com recolhimento de dados estatísticos, gerenciais e individualizados, permite evidenciar importantes passos alcançados com a experiência prático-institucional da corte em lidar com a sistemática da repercussão geral. É um avanço inegável, embora não seja isento de críticas e aperfeiçoamentos.

Mas merece destaque, ainda, um outro aspecto técnico-processual, que não diz respeito a procedimentos institucionais e de mera execução. Trata-se de evidenciar o rigor com que a corte vem consolidando sua jurisprudência quanto à apreciação jurídica da fundamentação da preliminar de repercussão geral. Nesse sentido, é certo que, ao longo desses dez anos, cada vez mais a corte vem exigindo explícita e robusta demonstração de fundamentação da repercussão geral.

Não por menos, a doutrina fala até mesmo que o tribunal tem sido implacável na exigência de sua fundamentação, devendo haver tópico destacado na peça recursal[13]. E a exigência de preliminar formal e fundamentada de repercussão geral também é exigida pela jurisprudência do STF para hipóteses de repercussão geral presumida ou declarada em outros processos, não havendo que se falar em hipótese de reconhecimento implícito[14].

De fato, tem-se consolidado o entendimento de que é insuficiente a mera alegação de que a matéria trazida ostentaria repercussão geral, exigindo-se a demonstração clara e expressa das circunstâncias que poderiam configurar a relevância — política, jurídica, social ou econômica — das questões constitucionais debatidas e a transcendência dos interesses subjetivos da causa. Não basta, assim, a mera descrição do instituto ou a simples referência a precedente recursal[15]. Essa baliza parece razoável e consentânea com a legislação de regência.

Contudo, o STF deve apreciar com prudência e temperamento os casos em que se esteja a discutir sobre a suficiência da fundamentação da preliminar de repercussão geral, pois se corre o risco de confundir fundamentação mínima (mas suficiente) com ausência de fundamentação.

Em outras palavras, é preciso cuidado para não banalizar a aplicação da jurisprudência quando se tratar de discutir sobre a deficiência (ou não) de fundamentação mínima existente quanto à preliminar de repercussão geral. E muito menos se aplicar multa processual de forma automática, em eventual recurso interno, quando se buscar rediscutir esse aspecto que, a despeito dos parâmetros legais (repercussão econômica, social, política ou jurídica), deixa ainda um espectro considerável de análise subjetiva. Pensar o contrário pode significar, ao extremo, um novo e indesejável mecanismo de jurisprudência defensiva, que acaba por prejudicar a própria prestação jurisdicional aos cidadãos.

Nesse sentido, seria até interessante se o tratamento estatístico e gerencial dado às informações sobre repercussão geral também pudesse quantificar casos desse tipo, como informação adicional que pode contribuir para uma melhor compreensão global da sistemática da repercussão geral.

Como visto, não são poucos os desafios, mudanças e avanços ligados ao desenvolvimento do instituto da repercussão geral. As considerações e precedentes jurisprudenciais aqui apresentados buscaram realçar alguns aspectos relativos a essa discussão. De todo modo, certo é que a primeira década de vigência da repercussão geral não pode deixar de ser considerada positiva.


[1] Vide AI 664.567 QO/RS, rel. min. Sepúlveda Pertence, Pleno, DJ 6/9/2007.
[2] Vide AI 715.423-RS-QO, rel. min. Ellen Gracie, julgado em 11/6/2008.
[3] Vide RE 475.812 AgR/SP, rel. min. Eros Grau, 2ª Turma, DJe 4/8/2006.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira; STRECK, Lenio Luiz. Comentário ao art. 102. §3º, CF/88. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes et al. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1407.
[5] DIDIER, Fredie Jr.; CUNHA, Leonardo José da. Comentário ao art. 102, §3º, CF/88. In: BONAVIDES, Paulo et al. (Coords.). Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 1316 et seq.
[6] Vide artigo 1.035, parágrafo 4°, do CPC/2015.
[7] Vide RE 584.247-QO, rel. min. Roberto Barroso, DJE 2/5/2017.
[8] Vide artigo 1.035, parágrafo 2°, do CPC/2015; RE 645.057 AgR, rel. min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJE 31/10/2012.
[9] Tabela denominada “Exame da preliminar de RG”, acessível pelo título “Números da repercussão geral (situação atual detalhada). (novo)”, disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaRepercussaoGeral&pagina=numeroRepercussao>. Acesso em 27/10/2017.
[10] Acessível pelo título “Processos sobrestados em razão da repercussão geral”, disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=sobrestadosrg>. Acesso em 27/10/2017.
[11] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RelatrioCompletodaGesto1ano_MinistraCrmenLcia.pdf> Acesso em 27/10/2017.
[12] Página 13 do referido relatório, disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RelatrioCompletodaGesto1ano_MinistraCrmenLcia.pdf>. Acesso em 27/10/2017.
[13] MENDES, Gilmar Ferreira; STRECK, Lenio Luiz. Comentário ao art. 102. §3º, CF/88. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes et al. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1407.
[14] Vide ARE 886.344-AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, Pleno, DJE 26/10/2015; AI 744.686/SP-AgR, rel. min. Gilmar Mendes, Pleno, DJe 26/6/2009; AI 688.760/RJ-AgR, rel. min. Cármen Lúcia, 1ª Turma, DJe 17/4/2009.
[15] Vide ARE 704.288/PI-AgR, rel. min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, Dje 25/9/2012; RE 575.983-AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, DJe 13/5/2011; RE 611.400/MG-AgR, rel. min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJe 16/10/2012; RE 663.637-AgR-QO/MG, rel. min. Ayres Britto, Pleno, DJE 5/5/2013; ARE 1.080.910/SP, rel. min. Rosa Weber, DJe 24/10/2017; RE 1.033.056-AgR/RN, rel. min. Edson Fachin, 2ª Turma, DJe 27/10/2017.

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  • Brave

    é doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

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