Diário de Classe

Direito à tradução e à interpretação no processo penal

Autores

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Fernanda Becker

    é analista jurídico do Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina mestranda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina especialista em Direito Público e graduada em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí.

28 de outubro de 2017, 7h10

Imagine-se conduzindo um veículo que se envolve em acidente de trânsito com vítimas na Polônia. Você não fala polonês, seu inglês é sofrível e, também, o agente público responsável pela apuração das condutas não fala português. A comunicação estará fortemente prejudicada, impedindo o estabelecimento de diálogo. Mas você pode pensar que não viajará para a Polônia, então poderemos ir mais perto, quem sabe Argentina ou Chile. A quantidade de palavras cognatas, termos técnicos e práticas judiciárias é tão diversa que, por certo, mesmo com maior facilidade, a capacidade de se defender estará prejudicada.

Diante do quadro atual de massivo deslocamento de imigrantes e refugiados advindos de diversos países, bem como em face da nova Lei de Migração (Lei 13.445/2017), a matéria merece debate e atenção. Conflitos, guerras e situações humanitárias caóticas deflagraram movimentação em grande escala entre países, em que o Brasil é destino regular e consolidado.

Para isso, em todos os países civilizados, deve-se levar a sério a efetiva existência de um intérprete, tanto para o advogado, como no ambiente policial e jurisdicional. O Código de Processo Penal brasileiro indica, no seu artigo 193, que, “quando o interrogando não falar a língua nacional, o interrogatório será feito por meio de intérprete”, devendo este também ser nomeado para o caso de testemunha estrangeira, conforme artigo 223.

Esse direito é registrado no momento do interrogatório, entretanto, quanto à prisão em flagrante a Resolução 213, de 15 de dezembro de 2015, que dispõe sobre a audiência de custódia, prevê, em seu Protocolo II que “III. A pessoa custodiada estrangeira deve ter assegurada a assistência de intérprete e a pessoa surda a assistência de intérprete de LIBRAS, requisito essencial para a plena compreensão dos questionamentos e para a coleta do depoimento, atentando-se para a necessidade de (i) a pessoa custodiada estar de acordo com o uso de intérprete, (ii) o intérprete ser informado da confidencialidade das informações e (iii) o entrevistador manter contato com o entrevistado, evitando se dirigir exclusivamente ao intérprete”.

O conduzido preso se encontra em situação de vulnerabilidade, em que tem contra si disparado o aparato de força estatal, e, no momento da prisão, encontra-se em disparidade de forças. Se isso é evidente, quanto mais em relação ao conduzido estrangeiro, uma vez que está em situação de “especial vulnerabilidade”, conforme assinalado por Clara Fernández Carron em sua obra El Derecho a Interpretación y a Traducción em los Procesos Penales[1], apontando para a necessidade de garantia da qualidade da tradução e interpretação.

Referida autora tece amplo estudo sobre o direito à interpretação e tradução nos procedimentos penais, afirmando que “esta íntima relación entre el derecho de defensa y el derecho a interpretación y a traducción es precisamente el motivo que hace que éstos últimos reciban la calificación de Derechos Fundamentales de naturaleza instrumental, por cuanto su misión consiste em assegurar la viabilidade de los derechos nucleares o medulares que afectan a la esencia de la contradicción propriamente dicha por referirse a las oportunidades de alegación y prueba”[2].

Ainda, quanto à qualquer modalidade de prisão, o Supremo Tribunal Federal decidiu, no julgamento da Prisão Preventiva para Extradição 726, que a cláusula inscrita no artigo 36, 1, (b) da Convenção de Viena sobre Relações Consulares “deve ser interpretada no sentido de que a notificação consular há de ser efetivada no exato momento em que se realizar a prisão do súdito estrangeiro ‘e, em qualquer caso, antes que o mesmo preste a sua primeira declaração perante a autoridade competente”[3], dado o termo original da referida cláusula “without delay” – isto é, “sem demora”. A Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 1963 foi internalizada no Brasil pelo Decreto Legislativo 6, de 1967, e promulgada pelo Decreto 61.708, de 26 de julho de 1967, que prevê direitos subjetivos ao estrangeiro restringido em sua liberdade. De se registrar a divergência instaurada entre tal comunicação ser facultativa ou não, a depender da escolha do estrangeiro preso, dado que este poderá não querer qualquer tipo de contato com seu Estado de nacionalidade[4], o que poderá gerar responsabilização caso não se obtenha o consentimento prévio do conduzido.

Dada a necessidade de se fiscalizar o cumprimento e diante do fato de o descumprimento poder gerar a invalidade da prisão do estrangeiro e dos atos subsequentes, em decorrência da violação à cláusula constitucional do devido processo legal, o ministro da Justiça e Cidadania expediu, em 14 de janeiro de 2017, a Portaria 67[5], que estabelece que as autoridades policiais federais, estaduais e do Distrito Federal devem exercer e fiscalizar a notificação consular, cientificando, sem demora, a autoridade consular do país a que pertença o estrangeiro, sempre que este for preso, qualquer que seja a modalidade de prisão.

O Conselho Nacional do Ministério Público recomendou[6] (Recomendação 47, de 21 de novembro de 2016) aos membros do Ministério Público, em todas as suas ramificações no território nacional, que exerçam e/ou fiscalizem a notificação consular resultante da aplicação do artigo 36 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares.

Embora exista a previsão legal sobretudo no regramento acerca da audiência de custódia, na imensa maioria das agências estatais e judiciais, salvo por alguma capacidade própria do julgador, do servidor e também do estagiário, a comunicação resta afetada.

Serve de inspiração a Diretriz 2010/64, do Parlamento Europeu, no sentido de que compõe o quadro de garantias mínimas do conduzido/acusado o direito de tradução e interpretação dos fatos imputados, tendo em vista que, sem a compreensão sequer da imputação, dos meios de defesa, da linguagem básica, o processo se torna kafkaesco.

Segundo Clara Fernández Carron, deve ser ressaltada a diferença e conteúdo entre o direito à interpretação e o direito à tradução, ambos previstos na DIT – Directiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do conselho de 20 de outubro de 2010, no sentido de que o primeiro é muito mais amplo que o segundo, de que a mera tradução de um auto de prisão entregue ao conduzido não significa acesso ao seu conteúdo, ao que se estaria falando do direito de interpretação, demonstrando-se, aí, a estreita relação entre ambos: “De ahí que, aunque el derecho a interpretación y a traducción sean dos derechos distintos y diferenciados, pudiendo por ello reconocerse – y debiendo protegerse – de forma independiente el uno del outro, no deba, sin embargo, pasarse desapercebido el hecho de que ambos pudeden llegar a complementarse, puestro que existe uma estrecha interrelación del uno con el otro”[7].

A implementação de direitos implica em um custo, especialmente quando o acompanhamento do tradutor deve acontecer em sede policial, associado ao custo do advogado. Surgem propostas de ampliação do uso da teleconferência com personagens oficiais ou mesmo indicados pelo conduzido capazes de compreender e participar do diálogo, via internet (Skype, por exemplo), fazendo com que a compreensão dos fatos e a articulação da defesa possa acontecer. Deixar o conduzido/acusado preso em seu idioma, sem possibilidade de compreensão, viola o direito ao devido processo legal substancial[8].

A inovação tecnológica pode ser um mecanismo de implementação de direitos, mormente em situação de escassez de recursos estatais, autorizando, por um lado, a efetiva participação do conduzido/acusado, ao mesmo tempo em que reduz os custos de um sistema efetivo de tradutores em todas as agências policiais e judiciais[9]. O que não se pode admitir é que você deixe um estrangeiro que não domina o português trancado linguisticamente em seu idioma, entregando-lhe a denúncia, sem capacidade de entender sequer o que o defensor lhe diz. Quando estivermos em outro país, parece-nos injusto. Por que mantemos isso aqui?


[1] CARRON, Clara Fernández. El Derecho a Interpretación y a Traducción em los Procesos Penales. Valencia: Tirant lo blanch, 2017, p. 198.
[2] Idem p. 40.
[3] http://s.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/decisao-celos-mello-ppe-726.pdf.
[4] http://emporiododireito.com.br/tag/portaria-672017-do-ministerio-da-justica-e-cidadania/.
[5] http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=19&data=18/01/2017.
[6] http://s.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/recomendacao-472016-cnmp.pdf.
[7] FERNÀNDEZ CARRON, Clara. El derecho a interpretación y a traducción em los procesos penales. Valência: Tirant del Blanch, 2017, p. 65-67.
[8] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
[9] FERNÀNDEZ CARRON, Clara. El derecho a interpretación y a traducción em los procesos penales. Valência: Tirant del Blanch, 2017; MAIA NETO, Cândido Furtado. Direitos Humanos: mais atenção a brasileiro preso no exterior. http://emporiododireito.com.br/direitos-humanos-mais-atencao-a-brasileiro-preso-no-exterior/.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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    é analista jurídico do Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina, mestranda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina, especialista em Direito Público e graduada em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí.

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