Senso Incomum

E o juiz não seguiu o realismo retrô e o voluntarismo... e bingou!

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26 de outubro de 2017, 7h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Palavras do juiz: “Os limites semânticos dos textos legais em questão são claríssimos e não podem ser ultrapassados com base em juízo discricionário e voluntarista do juiz, em autêntico ativismo judicial, utilizado para atropelar a legislação vigente e corrigir o legislador”

A coluna de hoje trata de parabenizar o juiz federal Clécio Braschi, da 8ª Vara Federal Cível de São Paulo, por decisão que chegou recentemente à minha atenção e que meus alunos discutiram em seminário. A decisão (Processo 0008950-50.2016.403.6100), indeferiu pedido de concessão de liminar solicitando reingresso da parte autora a processo seletivo organizado pela União. Além de acertar (aqui), o juiz (i) compreendeu muito bem minha teoria da decisão e (ii) acabou por lançar luz a uma questão problemática que exsurge do positivismo exclusivo. Ao ensejo, quero destacar alguns trechos da decisão e trabalhar a partir deles. Já ressalto, de antemão, que os grifos são meus.

O juiz Braschi diz que “[n]ão cabe nenhuma ponderação de regras, com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. A Administração somente está autorizada a fazer o que a lei a autoriza. Os limites semânticos dos textos legais em questão são claríssimos e não podem ser ultrapassados com base em juízo discricionário e voluntarista do juiz, em autêntico ativismo judicial, utilizado para atropelar a legislação vigente e corrigir o legislador”. Corretíssimo!

O juiz complementa, além de mencionar uma coluna minha aqui da ConJur (sobre a equivocada recepção brasileira de teorias estrangeiras, que pode ser acessada aqui), dizendo que “[o]s citados princípios não podem ser utilizados para justificar qualquer coisa. Na obra Compreender o Direito – Desvelando as obviedades do discurso jurídico (Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2013, páginas 116/117), no texto intitulado Leis que aborrecem devem ser inquinadas de inconstitucionais!, o professor Lenio Streck mostra como os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade não servem como álibi retórico para provar qualquer coisa, a fim de apenas justificar posição já previamente escolhida subjetivamente pelo intérprete (juiz não escolhe, e sim decide dentro do sistema normativo)”.

Perfeito! É exatamente isso! O juiz Braschi diz, na mesma linha, que as únicas hipóteses nas quais um juiz pode deixar de aplicar uma lei estão na “teoria da decisão judicial, que o professor Lenio Luiz Streck tem desenvolvido em toda sua obra”. Bingo!

Além da grata surpresa, há, na decisão do juiz, outro fator interessante que me motiva a escrever essa coluna: sua fundamentação nas teorias do positivismo exclusivo de Joseph Raz e, principalmente, Scott Shapiro. Explico: com aprofundamento teórico, o juiz Braschi diz que “[p]ara lembrar o pensamento do grande filósofo do Direito Joseph Raz, toda ordem jurídica reivindica autoridade”. Alude, porém, principalmente — prestigiando doutrina brasileira —, à obra de Shapiro — fazendo referência também a André Coelho,[1] que participou conosco do II Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito —, cujo ponto principal seria “que a natureza última do direito, ou a juridicidade […] diz respeito a uma atividade compartilhada de planejamento, ou à fixação de planos coletivos vinculantes com vista ao futuro”. Seguindo Shapiro, o juiz diz que “o Direito não teria sentido se em cada caso se reabrisse a deliberação prática com base em argumentos morais ou de justiça, justamente porque a moralidade principal do Direito é cumprirmos estritamente os planos que estabelecemos previamente, por meio de nossos representantes eleitos no Parlamento”.

O que a decisão acaba nos mostrando, portanto, é que o positivismo exclusivo, que se pretende descritivo, acaba, sem querer, implodindo a dicotomia ser/dever ser. Vejamos: se da acertada compreensão do Juiz Clécio Braschi acerca da teoria de Shapiro surgiu uma aplicação, verificamos, uma vez mais, que a) não há uma cisão entre aplicação e interpretação, e b) o positivismo descritivo torna-se prescritivo/normativo sem assumi-lo!

Esse é o ponto. Ao expor, talvez sem querer, mas com maestria, a prescrição-que-se-pretende-descrição do positivismo, a decisão do juiz Clécio Braschi reforça aquilo que venho chamando da Guilhotina de Lenio: o que separa o Direito da moral… é a moral.[2] Por quê? Simples. Não há um Bodenlösigkeit (sobre isso, ver o verbete Positivismo jurídico, em meu Dicionário de Hermenêutica), isto é, não há um grau zero de sentido (ponto arquimediano) do qual se parta para que se possa fazer descrições neutras (sem a presença de injunções morais).

Nesse sentido, para mostrar a impossibilidade do “grau zero”, Alasdair MacIntyre trabalha isso com exemplos muito elucidativos. Vejamos: das premissas aparentemente descritivas que dispõem que (i) “o relógio não marca a hora corretamente” e (ii) “o fazendeiro teve um índice de produção maior do que todos os outros” se seguem, logicamente, as premissas “o relógio é ruim” e “o fazendeiro é bom”. Porque “o conceito de relógio não pode ser definido independentemente do conceito de um bom relógio e o conceito de fazendeiro independentemente do bom fazendeiro”.[3]

Ou seja: o positivismo que separa Direito e moral não é paradoxal somente quando é obrigado a descrever a moral que acaba entrando no Direito quando da aplicação. Mais do que isso, “o colapso da dicotomia ser/dever ser” (para homenagear Hilary Putnam, autor de livro exatamente com esse título) expõe que toda descrição acaba tendo em si uma avaliação e uma prescrição, e a decisão do juiz federal Clécio Braschi me ajuda a demonstrar a autoimplosão do positivismo descritivo.

Mas, atenção: lembro sempre, contudo, que, com isso, não quero condenar o positivismo como uma teoria sem importância. Mais: jamais diria que os positivistas não têm o que dizer, ou que suas teorias não têm acertos. O positivismo sempre se mostrou como importante fator de identificação. Algo como O que é isto – o Direito. O positivista dirá: “Eu digo o que é o Direito, mas as suas insuficiências não são de minha responsabilidade”. Não é por nada que Calsamiglia inaugura seu clássico texto dizendo que o grande déficit das teorias positivistas é que nunca se preocuparam com a decisão. Esse, pois, é o problema do positivismo, e, ao mesmo tempo, o acerto do juiz federal: é preciso ir além da pretensão descritiva-positivista para que se chegue na questão de como os juízes decidem. O juiz Braschi, acertadamente, vai além da (pretensa) descrição, e, ao fazer referência à teoria da decisão, demonstra o que quero dizer na coluna de hoje: não é necessário ser textualista para que se defenda o cumprimento do Direito democraticamente aprovado. Também não é necessário apelar para argumentos morais para fazer cumprir o Direito democraticamente aprovado (aplicadas, é claro, as seis hipóteses). Portanto, há outros modos de fazê-lo; modos que fecham esse gap existente entre as descrições positivistas e a aplicação textualista que não consegue dar conta do problema fundamental da discricionariedade judicial.

Post scriptum: antes que alguém, de forma açodada, levante algum questionamento sobre a decisão proferida pelo juiz Braschi que extinguiu uma Ação Civil Pública promovida pelo MP, relacionada à Lei de Anistia — a decisão pode ser lida aqui —, explicito alguns pontos:

(i) Esta coluna trata sobre uma decisão específica do juiz em que ele, de forma acertada, levanta pontos interessantíssimos sobre a teoria do Direito, e não sobre sua carreira ou sobre eventuais críticas — morais ou políticas — que alguém possa dirigir a essa decisão sobre a citada ACP;

(ii) Essa decisão na ação do MP tratava de matéria cível, e não penal.

(iii) O juiz se baseou em decisão do STF, que declarou a constitucionalidade da Lei da Anistia (ADPF 153), isto é, considerou-a recepcionada, eis que anterior a CF/88. E sobre isso, vale dizer que eu mesmo fui um dos que muito lutou para que o Supremo fizesse o contrário, isto é, declarasse a inconstitucionalidade da lei. Escrevi sobre isso em diversos textos, inclusive uma publicação em alemão (Congresso realizado em Frankfurt), para o Transitional Justice – Das Problem gerechter strafrechtlicher Vergagenheitsbewältigung.[4] Concordando ou não, o STF colocou um final na discussão — pelo menos até um eventual futuro pronunciamento.


[1] Para registro: Lembro também que José Renato Cella e Dimitri Dimoulius também trabalham o positivismo no Brasil. Há também uma tentativa de dar um cunho prescritivo ao positivismo, feito por Bruno Torrano. No exterior, positivistas como Waldrom e Campbell flertam com um quase-textualismo para dar cunho normativo às suas teses. E Horácio Neiva acaba de lançar um belo livro criticando Raz.

[2] Venho desenvolvendo a questão do DNA do positivismo, levando em conta a preocupação de Hume com a “sua lei” que não pode ser violada (Lei de Hume). A partir disso, elaboro a “guilhotina de Lenio”, que mostra a impossibilidade, bem vista por Kelsen e Dworkin, da separação entre direito e moral. Tenho discutido essa questão com dois interlocutores da cepa: Tomás Bustamante e Marcelo Cattoni.

[3] MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: A Study in Moral Theory. 3. ed. 2007, p. 57-58.

[4] STRECK, Lenio Luiz. Die Irrtümer des Supremo Tribunal Federal bei der Auslegung des Amnestiegesetzes.. In: Ulfrid Neumann; Cornelius Prittwitz; Paulo Abrão; Lauro Joppert Swensson Jr.; Marcelo D. Torelly;. (Org.). Transitional Justice – Das Problem gerechter strafrechtlicher Vergagenheitsbewältigung. 1 ed. Frankfurt: Frankfurter briminalwissenschaftliche Studien 143, 2013, v. 1, pp. 237-255.

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