Tratamento desigual

Proibir gays de doar sangue restringe direitos fundamentais, diz Barroso

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25 de outubro de 2017, 19h35

Proibir homossexuais de doar sangue restringe direitos fundamentais, em clara afronta à Constituição Federal. Esse é o entendimento do ministro Luís Roberto Barroso, que, nesta quarta-feira (25/10), votou pela procedência da ação direta de inconstitucionalidade em que são questionadas a Portaria 158/16 do Ministério da Saúde e a Resolução 34/14 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que restringem a doação dependendo da orientação sexual.

Rosinei Coutinho/SCO/STF
Para Barroso, estabelecer como critério a abstinência sexual de um ano é algo claramente excessivo.
Rosinei Coutinho/SCO/STF

Na regra atual, gays só podem doar sangue se ficarem 12 meses sem transar com outro homem. Para Barroso, porém, estabelecer como critério a abstinência sexual de um ano é algo claramente excessivo. O ministro salientou que, se o problema é a janela imunológica, a regra que impõe esse prazo impede o desfrute de uma vida sexual normal, sendo absolutamente desnecessária. A norma peca pelo excesso, caracterizando uma violação do mandamento da proporcionalidade, sustentou.

Como reforço de sua tese, Barroso citou o caso da Espanha, país que não restringe a doação por homossexuais e que não detectou a transmissão de HIV por transfusão de sangue nos anos de 2014 e 2015. E o exemplo do México, onde também não se restringe esse tipo de doação e desde 2009 não houve transmissão de HIV pela via sanguínea.

Ele acompanhou o relator, ministro Luiz Edson Fachin, que votou, na semana passada, a favor da ação proposta pelo Partido Socialista Brasileiro. Na ADI, a sigla sustenta que as normas são preconceituosas, uma vez que é o comportamento, e não a orientação sexual, que determina o risco de ser infectado por uma doença sexualmente transmissível.

O julgamento foi suspenso em razão do horário e será retomado nesta quinta-feira (26/10). Nesta quarta, além de Barroso, os ministros Luiz Fux e Rosa Weber também seguiram Fachin, enquanto o ministro Alexandre de Moraes divergiu ao votar pela parcial, e não total procedência da ação.

Rosa Weber argumentou que as normas questionadas promovem um tratamento discriminatório quando elegem como critério de inaptidão para doação de sangue a orientação sexual do doador, e não a conduta de risco. Tais normas, segundo a ministra, desconsideram, por exemplo, o uso de preservativo ou não, o fato de o doador ter parceiro fixo ou não, informações que para a ministra fariam toda diferença para se poder avaliar condutas de risco. Rosa considerou que, no caso, foi desatendido o princípio da proporcionalidade.

O ministro Luiz Fux também se manifestou pela inconstitucionalidade das normas, que, para ele, em vez de terem eleito determinadas condutas de risco como critério de inaptidão para doação, elegeram um grupo de risco, exatamente por sua orientação sexual. De acordo com o magistrado, a premissa do legislador foi no sentido de que a maioria dos homossexuais seria portador de HIV, enquanto pesquisas dizem que atualmente os gays são bem mais cuidadosos, e que o citado aumento de infectados estaria ocorrendo entre homens heterossexuais. Por fim, o ministro disse entender que a norma é desproporcional ao impor o prazo de 12 meses, levando-se em conta que, atualmente, a janela imunológica abrange um tempo bem menor, na casa de 10 a 15 dias.

Fellipe Sampaio/SCO/STF
Alexandre de Moraes destacou ser necessário, no caso, separar fatos técnicos de preconceitos.
Fellipe Sampaio/SCO/STF

Divergência
O ministro Alexandre de Moraes explicou que a legislação que trata da política nacional de sangue, componentes e derivados no país (Lei 10.205/2001 e Decreto 3.990/2001) aponta a necessidade de proteção específica ao doador, ao receptor e aos profissionais envolvidos. Essas normas, contudo, não foram questionadas na presente ação. E, para o ministro, a leitura dos atos questionados fora do contexto dessa legislação faz parecer que se tratam de atos discriminatórios contra homossexuais masculinos. Mas, de acordo com o ministro, desde 2001 as normas sobre essa questão vêm progredindo, limitando restrições a partir de estudos técnicos.

Em que pese o fato de os textos impugnados serem relacionados à questão relativa a orientação sexual, frisou, os dispositivos estabelecem uma série de limitações fixadas a partir de estudos técnicos e científicos, não tendo sido editadas por conta de orientação sexual. O ministro citou, como exemplos, a vedação a portadores de piercings e tatuagens, desde que não haja possibilidade de verificar a segurança de como foram feitas, de portadores de hepatite tipo B e C, e até de pessoas que pularam de paraquedas nas últimas 48 horas.

No Direito Comparado, o ministro citou a legislação de diversos países, principalmente europeus, que vedam a doação de sangue para homens que mantiveram relações sexuais por diferentes períodos. O ministro entendeu que, se a diferenciação for baseada na orientação sexual, haverá uma discriminação absurda e uma norma inconstitucional. Mas se for uma norma editada a partir de conduta de risco, como tantas outras dispostas na resolução e na portaria, aí será preciso analisar se há proporcionalidade no tratamento dessa conduta de risco.

Nesse sentido, o ministro Alexandre de Moraes disse ser necessário, no caso, separar fatos técnicos de preconceitos. E, segundo o ministro, o Boletim Epidemiológico de 2016 relata um aumento de casos de Aids entre homens e redução de casos entre as mulheres. Além disso, o ministro ressaltou que foi informado pelo reconhecido infectologista David Uip que a possiblidade de transmissão do vírus nas relações sexuais entre homens é muito maior do que nas relações entre homens e mulheres. Por fim, revelou que informações do Hemocentro de Ribeirão Preto (SP) dão conta de que 15,4% das doações feitas por homens que fizeram sexo com outros homens apresentaram o vírus HIV, enquanto que nas demais doações esse índice foi inferior a 0,03%.

Por esses fatos, disse entender que as normas questionadas não pretenderam discriminar a orientação sexual de homens que fazem sexo com outros homens, mas se fundaram em critérios técnicos, com o objetivo de evitar maiores riscos de contaminação aos receptores de sangue, garantindo um efetivo direito a proteção à saúde e dignidade humana. E também para garantir a segurança dos profissionais, até para evitar eventual responsabilização de autoridades médicas que não tomarem esses cuidados, salientou o ministro, revelando que já houve casos de condenação a profissionais da área por transfusões que não foram bem verificadas.

Em seu voto, Moraes disse que é possível garantir o direito do homossexual em doar sangue, apesar da restrição da abstinência sexual por 12 meses, o direito do receptor, que tem direito de receber um sangue da melhor qualidade possível para proteção da sua saúde, bem como o direito do profissional em ver minimizado o risco de transmissão de doenças por transfusão, evitando, em relação a ele, eventual responsabilização profissional e judicial.

Assim, o ministro votou no sentido de julgar parcialmente procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade do inciso IV do artigo 64 da Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde, segundo o qual consideram-se inaptos para a doação, por 12 meses, homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais. Votou, também, para fazer declaração parcial de nulidade, com redução de texto, do inciso XXX do artigo 25 da resolução da Anvisa, para retirar o prazo de 12 meses de abstinência.

Por fim, dar interpretação conforme a Constituição à alínea "d" da mesma resolução, para dizer que é possível a doação por homens que fizeram sexo com outros homens, desde que o sangue somente seja utilizado após o teste imunológico, a ser realizado depois da janela sorológica definida pelas autoridades de saúde.

Nesses casos, explicou, após a necessária triagem, incluindo a realização do questionário individual, o material coletado de homens que fizeram sexo com outros homens, independentemente do prazo de 12 meses, deve ser identificado, separado, armazenado e submetido a teste sorológico somente após o período da janela imunológica, a ser definida pelos órgãos competentes, para afastar qualquer possibilidade de contaminação.

Com isso, concluiu o ministro, fica respeitando o direito do doador, que quer auxiliar o próximo, tirando o obstáculo legal, mesmo que fundamentado, garantindo o direito do receptor, que saberá que os exames foram feitos após a janela sorológica, e estaremos embasando profissionais que atuam na área, para que não sejam responsabilizados. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF. 

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