Opinião

Cabe ao Supremo não se deixar pressionar pela opinião pública

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25 de outubro de 2017, 14h23

Conforme anunciado, o jornal O Estado de S. Paulo levou a cabo um debate sobre a operação "mãos limpas”, da Itália, mais correlação com a “lava jato”, do Brasil, sendo convidados dois magistrados italianos, um ocupando importante cargo, outro já aposentado e, segundo consta, trabalhando na iniciativa privada. Além disso, participou dos debates o procurador da república Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa atuando na operação “lava jato”, em Curitiba. O ponto alto foi a presença do juiz Sergio Moro, debates administrados pela jornalista Eliane Cantanhêde, da rede Globo de Televisão. Aquilo teve platéia cheia. Conforme noticiário posto nesta quarta-feira (25/10), o juiz Moro foi comedido nos seus comentários, cabendo ao jovem representante do Ministério Público a parte mais agressiva, com críticas, inclusive, ao Supremo Tribunal Federal. Não houve presença entre os debatedores de qualquer advogado, não se sabendo se algum foi convidado e se, por hipótese, teria recusado.

A tônica das manifestações foi o incentivo a que a sociedade civil contribuísse no sentido de a punição dos corruptos se tornar efetiva, cabendo ao representante do Ministério Público manifestação para que as penas fossem enrijecidas, sobressaindo naquilo recomendação a que as prisões se consolidassem imediatamente após a decisão do segundo grau.

Não se faça crítica à posição do juiz Moro, bastando reforçar opinião do cronista no sentido de que juiz não fala. Processa e silencia até para manter a imparcialidade que, na verdade, é uma ficção. O ser humano já nasce com preferências. Até criança de colo prefere o cheiro da mãe ao do pai. Precisando escolher entre o abraço dos dois, procura o aconchego do peito daquela que o pôs ao mundo. Aliás, isso consta, ou deve constar em obra, hoje best seller, constituindo seu ápice no título Homo Deus. Os seres humanos, milhares de anos atrás, tinham olfato aguçadíssimo. Perderam-no no tempo mas até hoje o cronista se diverte, de vez em quando, prestando atenção às narinas de um ou outro interlocutor (ou interlocutora?). Aquelas pilosidades mínimas, herança dos primórdios, às vezes se movimentam quase imperceptivelmente. Na verdade, nós todos vivemos cheirando o todo, embora não conscientes. Dirão os doutos que tal reflexão apequena o ensino e o estudo do Direito, mas é básico.

Volte-se ao tema: ao ler o resumo dos debates, o cronista voltou no tempo. Revendo os idos de 25 de outubro de 1975, vem à memória a imagem de Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura. Os juízes italianos que aqui estiveram são mais antigos, vê-se pelas figuras, mas o moço Deltan, procurador da república, tem apenas 37 anos. O próprio magistrado Sergio Moro mal chegou aos 45 anos. O primeiro estava nascendo, o segundo passava pela adolescência. Os dois, da ditadura, têm apenas o conhecimento teórico do que leram agora, diferentemente dos herdeiros daquela época podre da história do Brasil. Assim, quando um deles prega o enrijecimento do processo penal, a mensuração maior da prisão preventiva e severidade extrema na distribuição da Justiça, o medo começa a chegar às narinas do velho marinheiro.

Evidentemente, tudo agora se faz dentro de um processo democrático, concitando-se o povo a cobrar com rigor extremo o endurecimento das sanções de natureza criminal e mesmo civil. É claro que a comunidade precisa exigir o retorno a uma possível dose de honestidade da classe política em relação ao tratamento a ser dado às questões postas em relevo, mas é preciso notar, também, haver um incentivo proveniente de alguns setores no sentido de que o militarismo volte a tomar conta da nação, embora se deva refletir, agora, que tal saudosismo não passa de ficção.

Os velhos, ditos sobreviventes, se lembram, e muito bem, de que o Supremo Tribunal Federal, ao tempo, foi intimidado, inclusive, quando se cortaram os pescoços de Evandro Lins Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima, tornando-se aquela Corte um mero instrumento do autoritarismo vigendo. Admita-se que as chamadas lideranças endurecedoras pretendam usar a força popular a título de pressão contra a magistratura em geral, levando o temor às proximidades da toga. Nesse sentido, independentemente da vontade, presente em todos os brasileiros, de reatamento das condições éticas que devem presidir a todas as formas pelas quais as classes dirigentes se relacionam com a chamada administração pública, cabe à Suprema Corte brasileira a difícil tarefa de não se deixar pressionar pela chamada opinião pública além dos limites apropriados ao convívio democrático entre a jurisdição e os jurisdicionados.

Hoje em dia, a aplicação do justo pode ser impopular, sim, embora o magistrado precise respeitar as garantias e direitos vigendo na lei processual penal. A expectativa de intimidação já aconteceu, sim, nos idos dos anos 70. O cronista se lembra muito bem, como se fora agora. Conheceu Nélson Hungria, um dos maiores penalistas que o Brasil já teve, atualmente meio posto ao lado, mas ainda importante na dogmática penal. Indagado por alguém, durante uma aula que ministrava, sobre as relações entre o Poder Judiciário e a comunidade, Hungria respondeu: “— O que pode fazer o juiz frente à boca dos canhões?”. Modifique-se um pouco a resposta, adaptando-se à modernidade: “— O que pode o juiz fazer frente a uma compulsão advinda de extremismo na repressão?”.

Em outros termos, numa época em que a própria sociedade é levada a reivindicar obsessivamente mais do que aquilo que o magistrado pode e deve dar dentro da lei, qual é a atitude a ser corporificada pela magistratura? É difícil, nas hipóteses vigendo, a retribuição adequada. Dentro de tal contingência, no fim das contas, a Suprema Corte tem 11 ministros (dentro dos quais duas mulheres) encarregados de dizer em última instância qual a direção a tomar. As decisões têm sido objetivadas, às vezes, por maioria ínfima, mormente em se tratando de enristamento das condições de encarceramento dos réus. Há entre os ministros quem encare os obstáculos corajosamente, respeitando as garantias constitucionais, mesmo sob fogo concentrado de pretensões censoras da liberdade. Dentro de tais contingências, o passado relembra o que já foi, advertindo os intérpretes sobre o futuro em chegança. O tempo que vem por aí tem sempre dois pesos. É esperar para ver.

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