Tribuna da Defensoria

Defensoria Pública, crise econômica e a Emenda Constitucional 80

Autor

  • Rômulo Luis Veloso de Carvalho

    é defensor público do Estado de Minas Gerais conselheiro penitenciário estadual mestre e doutorando em Direito Penal pela PUC-MG e professor de Direito Penal na graduação e em cursos preparatórios.

24 de outubro de 2017, 7h05

Foi com alegria que Defensoria Pública recebeu em 2014 a promulgação da Emenda Constitucional 80. A alteração na norma de maior envergadura do ordenamento jurídico nacional veio para transformar o artigo 134 da Constituição da República e acrescentar ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias o importante artigo 98.

A conquista normativa foi, sem dúvida alguma, um momento de esperança para o futuro da casa da cidadania e especialmente para os destinatários do seu serviço. A mudança no ADCT trouxe a regra de que o número de defensores públicos nas unidades jurisdicionais do país será proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população.

Destaque inicial é o de que o dispositivo foi oportuno. Já decorria do sistema constitucional que a Defensoria Pública era a instituição competente para defesa individual e coletiva, extrajudicial e judicial, de todos os vulneráveis do país, mas o direito dos marginalizados insistia em ficar no papel.

Para confirmar, basta citar que, em 2013, a Associação Nacional dos Defensores Públicos e o Ipea lançaram documento que revelou a presença da Defensoria Pública em apenas 28% das comarcas do país[1].

É já vetusta a lição, constatada sem dificuldades, de que de nada adianta enunciar que as portas da Justiça estão abertas a todos quando se sabe que, enquanto a Defensoria Pública estiver incipiente, elas verdadeiramente permanecerão fechadas justamente para os que dela mais precisam.

Nesse contexto é que fica claro o desejo do constituinte reformador de vencer a recalcitrância — especialmente no Poder Executivo de diversas unidades da federação — em não destinar recursos à instalação e desenvolvimento minimamente digno às Defensorias Públicas espalhadas pelo território nacional.

Não é objeto do presente trabalho tratar da essencialidade da Defensoria Pública e da sua importância para dar densidade ao próprio regime democrático reconquistado em 1988.

Ainda assim, importa consignar que a Defensoria Pública — instituição que representa para os descamisados, miseráveis, aflitos e excluídos —, verdadeiro bálsamo nos momentos de maiores angústias, recebeu, ao longo da sua história no período democrático, tratamento de menoscabo diante de qualquer comparativo estrutural e em número de pessoal que se faça com as instituições irmãs do sistema de Justiça.

Apesar de ser da competência da Defensoria Pública a absoluta maioria do atendimento dos vulneráveis, em um país com dados constrangedores de miséria social, os poderes constituídos, sem a intervenção do constituinte, raramente se animaram a viabilizar meio de crescimento institucional às Defensorias.

A quem duvida, basta lançar os olhos nas diferenças orçamentárias impostas em todas as unidades da federação às Defensorias Públicas, castradas em sua missão por um sufocamento financeiro que não encontra paralelo com outras instituições nem mesmo durante os momentos de crises mais agudas.

Em suma, em um cenário de normalidade financeira do país, as Defensorias raramente foram encaradas como uma pauta relevante na agenda política dos poderes constituídos, prevalecendo a omissão.

Com o advento da emenda constitucional de 2014, as responsabilidades felizmente mudaram de patamar, e, mesmo com a crise financeira que atravessa o país, as Defensorias não podem, sob a égide do atual texto constitucional, continuarem inviabilizadas de possibilidades de exercer com mínima dignidade sua missão no país.

Cumpre lembrar, como ensina Luís Roberto Barroso[2], que a Constituição é dotada de superioridade jurídica em relação a absolutamente todas as normas do sistema e, como consequência, nenhum ato pode subsistir validamente se for com ela incompatível. O raciocínio é a regra de ouro do constitucionalismo moderno.

O futuro do presente do indicativo se refere a um fato que necessariamente acontecerá num momento posterior ao discurso[3]. Na alteração de 2014, foi esse o tempo e modo verbal escolhido pelo reformador constitucional.

Pertinente o esclarecimento para não deixar nenhuma dúvida de que, no caso da alteração em comento, o constituinte assegurava em 2014 que, na forma do parágrafo primeiro do artigo 98[4], em no máximo oito anos todas as unidades jurisdicionais do país contarão com defensores públicos em número proporcional à efetiva demanda pelo serviço.

O dispositivo em discussão, na festejada classificação das normas constitucionais de José Afonso da Silva[5], encerra norma constitucional de eficácia plena, aquela que, desde a entrada em vigor, reúne todos os efeitos essenciais enunciados.

Ou seja, foi imposta em 2014, aos poderes constituídos no país, a instalação e o desenvolvimento da Defensoria Pública ao longo de oito anos, em regime que permita, ao fim desse prazo, existir um defensor público em cada unidade da federação, na forma do caput do citado dispositivo.

Não se trata de norma com eficácia contida em que o legislador deixa margem à atuação restritiva por parte dos destinatários ou ainda norma de eficácia limitada porque precisam de outra norma para lhes completar o sentido (como o artigo 7º, XI, da Constituição Federal, que prevê participação dos empregados nos lucros conforme lei).

Inegável que a norma impõe aportes financeiros proporcionais para contratação de pessoal e realização de periódicos concursos. É inconstitucional, por óbvio, tanto a inércia quanto qualquer pretensão de corte nos recursos de pessoal.

É também Barroso quem destaca que as normas constitucionais têm aplicabilidade direta e imediata às situações que contemplam, que a Constituição funciona como parâmetro de validade de todas as demais normas jurídicas do sistema e que os valores e fins previstos na Constituição devem orientar o intérprete e o aplicador do Direito[6].

Por tudo isso, preocupa que justamente durante agudas crises econômicas os poderes constituídos façam indicativos de tentar massacrar ainda mais as possibilidades de atendimento dos cidadãos vulneráveis.

É intuitivo que durante os períodos de crise os serviços dos defensores públicos são singularmente mais demandados. Aumentam as demandas da população por ações de saúde, cobranças de alimentos não quitados e renegociações de dívidas bancárias, entre tantas outras necessidades.

Portanto, na crise, ainda por maior razão, os poderes descumprem o mandamento constitucional quando deixam de oferecer gradual aumento na verba de pessoal destinada às Defensorias para que se viabilize a paulatina realização de novos concursos. Mais de três anos já se passaram e os poderes estão longe de proporcionalmente estarem dando cumprimento ao mandamento constitucional.

Mais grave: em movimento absolutamente inconstitucional, há tentativas esporádicas até mesmo de diminuir os já parcos recursos ofertados aos gestores das Defensorias para, ao menos, lograr a manutenção dos serviços no patamar alcançado.

Para exemplificar, em Minas Gerais, segundo estado mais populoso da federação, existem 652 cargos de defensores públicos providos em um total de 1.200 abstratamente existentes. A Defensoria Pública mineira se encontra atuando em 113 das 296 comarcas do Estado.

Mesmo nesse cenário, contrastante com o que impõe o texto constitucional, especialmente depois do advento da Emenda Constitucional 80, não há indicativo de assunção de compromissos orçamentários claros para cumprimento da regra constitucional.

É verdade que o constituinte reformador não disciplinou patamares financeiros específicos de aporte, sobretudo considerando o pacto federativo e as diferentes necessidades estaduais na viabilização das Defensorias Públicas, mas de certo o texto constitucional impõe progressivo avanço, impõe aumento gradual, em patamar a ser definido de acordo com a conveniência soberana dos Poderes Legislativo e Executivo nas respectivas áreas de atribuições constitucionalmente delimitadas.

Situação absolutamente inconstitucional tem suportado a Defensoria Pública do Espírito Santo[7], vendo seu número de membros diminuir em escala constante em um cenário de absoluta escassez de força de trabalho humano, quadro que se repete em outros estados da federação.

Em suma, não pode o Estado, mesmo diante de crise econômica, impor restrições por meio de legislação infraconstitucional diretamente conflitante ao que impõe a Constituição Federal.

Vale destacar que nem uma pretensa isonomia formal socorre tentativas limitadoras de crescimento. As instituições do sistema de Justiça possuem constrangedoras diferenças orçamentárias, assim não se pode — sem tornar a Constituição letra morta — impor restrições financeiras de órbitas análogas a entes em posição de consolidação absolutamente diferentes.

Mesmo em períodos de grave e reconhecida crise econômica, não pode o Estado com validade constitucional firmar pactos que imponham restrições inconstitucionais às Defensorias Públicas dos diferentes entes da federação, sob pena de ferir diretamente o que impõe o texto constitucional, especialmente a partir do advento da EC 80.

Não se descuida que a ofensa ocorre também ao direito de acesso eficiente à Justiça, ao princípio que veda o retrocesso social e ao próprio conceito de democracia. Sem mencionar que a ação descuida dos objetivos da república, como o de construir uma sociedade mais livre, solidária e justa. Óticas de afronta ao texto da norma maior que, apesar de não menos graves, merecem análise esquadrinhada em futuras oportunidades pelo relevo.

De modo específico sobre sociedade justa, conceito complexo que instiga análise, recorre-se à lição do professor de Harvard Michael J. Sandel[8]: para saber se uma sociedade é justa, basta perguntar como ela distribui as coisas que valoriza — renda e riqueza, deveres e direitos, poderes e oportunidades, cargos e honrarias. Uma sociedade justa distribui esses bens de maneira correta […].

Não é justa a paralisia imposta forçosamente às Defensorias Públicas, nem constitucional.

A ausência de sanção a uma inconstitucionalidade chapada como a presente converte o conceito de inconstitucionalidade a uma censura, mera crítica, sendo necessário que os aludidos atos e omissões dos poderes públicos para com as Defensorias Públicas sejam devidamente corrigidos nas esferas de competência constitucionalmente traçadas — políticas e jurídicas.


[1] Acessado em 15 de outubro de 2017:<https://www.anadep.org.br/wtksite/mapa_da_defensoria_publica_no_brasil_impresso_.pdf>
[2] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 84.
[3] RIBERIO, Manoel Pinto. Gramática aplicada da Língua Portuguesa. 19ª ed. Rio de Janeiro: Metáfora, 2010. p. 213.
[4] Art. 98. O número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população. § 1º No prazo de 8 (oito) anos, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais, observado o disposto no caput deste artigo.
[5] SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 89/91.
[6] Ob. cit. BARROSO, Luís Roberto. p. 197.
[7] Acessado em 15 de outubro de 2017: http://seculodiario.com.br/36137/12/ijna-epoca-que-houve-crescimento-orcamentario-grande-a-defensoria-continuou-a-ser-relegada-e-quando-ha-corte-e-tratada-de-forma-isonomicaij
[8] SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa / Michael J. Sandel; [tradução 23ª ed. De Heloisa Matias e Maria Alice Máximo] – 23ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. p.28

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    é defensor público de Minas Gerais, professor convidado da Escola Superior da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, mestrando em Direito Penal da PUC Minas e membro da Câmara de Estudos em Direito Penal e Processo Penal da Defensoria Pública de Minas Gerais.

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