Opinião

Existe uma clara linha divisória entre a moral e o moralismo

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24 de outubro de 2017, 10h07

*Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo desta terça-feira (24/10) com o título Moral, moralismo e direito.

Existe uma clara linha divisória, nem sempre percebida nitidamente, entre a moral e o moralismo. Aquela, grosso modo, revela um conjunto de valores e princípios que deve reger a conduta humana, variando no espaço e no tempo.

Todas as sociedades, em algum momento de sua história, adotaram determinadas normas de comportamento, não raro resultantes de práticas multisseculares, as quais reputaram essenciais para a convivência harmônica de seus integrantes.

Embora destituída de sanções materiais, a moral corresponde a um código de procedimentos que sujeita os transgressores à reprovação, velada ou explícita, dos membros da coletividade a que pertencem, acarretando, por vezes, a própria exclusão dos recalcitrantes de seu convívio.

Já o moralismo representa uma espécie de patologia da moral. Enquanto nesta há um certo consenso das pessoas no tocante à distinção entre o certo e o errado, no moralismo alguns poucos buscam impor aos outros seus padrões morais singulares, circunscritos a certa época, religião, seita ou ideologia.

Os que discordam são atacados por meio de injúrias, calúnias ou difamações e até agressões corporais. No limite, são fisicamente eliminados. Paradoxalmente, quase sempre os moralistas deixam de praticar aquilo que exigem dos demais.

A ética, por sua vez, derivada da palavra grega traduzida por "bons costumes", corresponde a uma disciplina comportamental que estuda as escolhas morais sob o prisma da razão, com vistas a orientar as ações humanas na direção do bem comum.

O direito para alguns juristas, a exemplo do clássico Georg Jellinek (1851-1911), equivaleria a um "mínimo ético", isto é, a determinado número de preceitos morais considerados indispensáveis à sobrevivência pacífica de dado grupo social e transformados em lei.

No campo do direito, os moralistas expandem ou restringem esse conceito conforme lhes convém, interpretando as regras jurídicas segundo sua visão particular de mundo. Sobrevalorizam a "letra" da lei, necessariamente voltada ao passado, em detrimento do "espírito" da lei, que abriga interesses perenes.

Aplicam as normas legais fria e burocraticamente, trivializando a violência simbólica que elas encerram. Não hesitam em incorrer, proposital ou inconscientemente, no risco da "banalização do mal" de que nos falava a filósofa Hannah Arendt (1906-1975).

A crônica da humanidade é pródiga em desvelar o trágico fim de moralistas que empolgaram o poder e exercitaram aquilo que consideravam direito a seu talante. Basta lembrar a funesta saga do monge Girolamo Savonarola (1452-1498), o qual, com pregações apocalípticas, extinguiu o virtuoso capítulo do Renascimento florentino. Acabou seus dias ardendo numa fogueira.

Ou a do deputado jacobino Maximilien de Robespierre (1758-1794) que, durante a libertária Revolução Francesa, mandou executar arbitrariamente centenas de opositores reais ou imaginários. Terminou guilhotinado, abrindo caminho para Napoleão Bonaparte (1769-1821).

Quer tenham sobrevivido por mais tempo ou deixado a vida precocemente, os moralistas jamais foram absolvidos pela posteridade.

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