Opinião

Legalidade dos meios é tão importante quanto a nobreza dos fins

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24 de outubro de 2017, 12h32

*Editorial publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo nesta terça-feira (24/10) com o título Dos fins e dos meios.

O diligente combate à corrupção em todas as suas fases, da investigação policial até a execução das eventuais penas impostas aos condenados, deve ser uma das preocupações de todos os cidadãos imbuídos de boa-fé e espírito público. É a intolerância diante da corrupção, financeira e moral, praticada em todas as esferas da vida social, pública e privada, que há de levar o país à superação de uma de suas mais renitentes mazelas.

No entanto, em nome desse futuro longamente almejado pela nação, excessos, ilegalidades e usurpação de papéis institucionais — cuidadosamente concebidos para a harmonia das relações entre sociedade e Estado — têm sido cometidos como se estivessem autorizados pelo respaldo popular e pela justeza da causa. No combate ao crime, nunca é demais lembrar, a legalidade dos meios é tão importante quanto a nobreza dos fins.

Ao se abrir espaço para criativas interpretações da lei em nome de uma suposta “justiça”, pavimenta-se o tortuoso caminho que pode nos levar a um estado de arbítrio em que uns poucos agentes públicos, autoungidos por um dom quase messiânico, têm o poder de decidir o que é melhor para a sociedade e, assim, ditar quais os mecanismos que são mais adequados para atingir os resultados pretendidos.

Um sinal evidente da ameaça à democracia representada por essa sanha saneadora que se impõe aos limites da lei é a distorção, feita por alguns membros do Ministério Público (MP), da natureza do instituto da colaboração premiada. O que deveria servir meramente como base para o início de uma investigação criminal tem sido convertido em sentença condenatória com uma frequência alarmante. E, o que é pior, uma sentença condenatória da qual o “acusado”, ou seja, o delatado, não pode recorrer por não contar com os instrumentos do contraditório previstos no processo judicial regular.

Vale dizer, hoje vigora no país um princípio segundo o qual, uma vez delatado, um fato supostamente criminoso é imediatamente tomado como verdadeiro e seu agente considerado culpado. Qualquer um que ouse questionar a prática é logo tido como leniente com a corrupção.

Em documento enviado ao ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, em setembro, a Polícia Federal aborda importantes questões em relação aos métodos pouco ortodoxos do Ministério Público na condução das chamadas delações premiadas. A manifestação dos policiais federais, incluindo o diretor da PF, Leandro Daiello, foi encaminhada ao STF nos autos da ação que tramita na corte para decidir sobre a constitucionalidade dos acordos de colaboração firmados pela Polícia Federal.

Em um dos trechos do documento de 39 páginas, os delegados federais sustentam que “a colaboração é apenas uma técnica operacional destinada a acelerar os caminhos da investigação policial”, enquanto o uso do instituto pelo MP é um mero “atalho entre o fato e a condenação”.

A despeito das eventuais disputas pelo protagonismo das ações públicas no combate à corrupção, acentuadas em virtude da popularidade que advém do sucesso da operação "lava jato", merecem atenção as ponderações feitas pela PF. De fato, a colaboração premiada deve servir tão somente como um catalisador da investigação criminal, não como um cabal atestado de culpa sem o devido processo legal.

Da forma como vêm atuando alguns membros do MP, o equilíbrio que deve prevalecer na condução de um processo judicial fica gravemente prejudicado na medida em que uma única instituição — o próprio Ministério Público — detém todos os papéis exercidos na persecução criminal. Ou seja, a instituição que deveria ser parte do processo também investiga, acusa e às vezes até mesmo exerce a função judicante, estabelecendo penas e multas nos acordos de colaboração por ela celebrados.

O Brasil não será um país melhor se, vencida a corrupção que há tanto nos aflige, deixar em ruínas os pilares que sustentam o Estado Democrático de Direito consagrados pela Constituição. Terá sido um preço alto demais.

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