Academia de Polícia

A infiltração policial no combate aos crimes de corrupção

Autor

  • Márcio Adriano Anselmo

    é delegado da Polícia Federal doutor pela Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela UCB e especialista em investigação criminal pela ESP/ANP e em Direito do Estado pela UEL.

24 de outubro de 2017, 7h10

Spacca
Circulou pela imprensa no último final de semana notícia sobre a utilização do instituto da infiltração policial em operação de combate à corrupção.

A infiltração policial (técnica conhecida como undercover agent) trata-se de meio de obtenção de provas e foi prevista inicialmente no ordenamento pátrio com a Lei 9.034/95, que tratava dos “meios de operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas”, embora apenas mencionasse o instituto, sem trazer qualquer regulação quanto ao procedimento de utilização.

O tema foi mantido em diversos diplomas posteriores, como a Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), até ser tratado de maneira mais completa pela atual lei do crime organizado. O instituto pode ser conceituado como:

"Técnica especial de investigação excepcionalíssima e sigilosa em que, após previa autorização judicial (guardada a devida proporcionalidade com a medida), um ou mais policiais, que sem revelar suas respectivas identidades ou condição de policiais, são inseridos de maneira dissimulada no bojo da engrenagem delitiva da Organização Criminosa, com vistas a escaneá-la e colher provas ou fontes de provas suficientes a permitir a desarticulação da referida Organização (…)[1]".

Francisco Sannini Neto a conceitua como:

"Técnica especial, excepcional e subsidiária de investigação criminal, dependente de prévia autorização judicial, sendo marcada pela dissimulação e sigilosidade, onde o agente de polícia judiciária é inserido no bojo de uma organização criminosa com objetivo de desarticular sua estrutura, prevenindo a prática de novas infrações penais e viabilizando a identificação de fontes de provas suficientes para justificar o início do processo penal[2]".

Deve ser destacado ainda que nosso ordenamento jurídico passou a regular, a partir da Lei 13.441/17 também o instituto da “infiltração virtual”, destinada à investigação dos crimes de: a) pedofilia (artigos 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D do ECA); b) crimes contra a dignidade sexual de vulneráveis: estupro de vulnerável (artigo 217-A do CP), corrupção de menores (artigo 218 do CP), satisfação de lascívia (artigo 218-A do CP) e favorecimento da prostituição de criança ou adolescente ou de vulnerável (artigo 218-B do CP); e c) invasão de dispositivo informático (artigo 154-A do CP), conforme bem colocado por Henrique Hoffmann.

Interessante anotar que a figura do agente infiltrado não se confunde com o agente provocador, que atuaria como um agente indutor da prática criminosa. Na infiltração, seu(s) agente(s) passam a integrar a estrutura criminosa e executam as atividades que lhe incumbem, sem induzir terceiros a cometer crimes.

O instituto, embora de utilização restrita, sobretudo pelas dificuldades que lhe são inerentes, tinha sua atualização mais comum nos crimes de tráfico de entorpecentes. Via de regra, em razão dos riscos de sua utilização, com frequência é substituído pelo instituto da ação controlada.

A regulamentação instituída pela Lei 121.850/2013 (artigos 10 a 14) trouxe maior segurança na aplicação do instituto, cabendo o destaque de alguns pontos.

A legitimidade para requerer a medida é concorrente entre o delegado de polícia ou membro do Ministério Público, devendo, na segunda hipótese, ser objeto de manifestação técnica por parte da autoridade policial, enquanto responsável pela execução da medida:

Art. 10. A infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação, representada pelo delegado de polícia ou requerida pelo Ministério Público, após manifestação técnica do delegado de polícia quando solicitada no curso de inquérito policial, será precedida de circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites.

Ainda sobre o pedido, necessária sempre a autorização judicial, que por óbvio deve se dar em processo sigiloso, em decisão motivada e que estabeleça claramente os limites do ato a ser executado.

A lei estabelece ainda, como requisitos para sua decretação, a existência de indícios do crime previsto no artigo 1° da lei (organização criminosa), bem como de que a prova não possa ser produzida por outros meios (parágrafo 2°). Portanto, como é comum em uma ampla gama de crimes, a estrutura da organização criminosa tem como características a compartimentação e a divisão de tarefas, de forma que somente aos integrantes se torna possível a compreensão da mesma.

Na solicitação da medida conforme dispõe o artigo 11, deve ser demonstrada sua necessidade, o alcance das tarefas dos agentes que serão responsáveis por sua execução e, quando possível, os nomes ou apelidos das pessoas investigadas e o local da infiltração. Por óbvio, muitas vezes sequer se tem conhecimento dos nomes dos membros investigados ou, ainda da mesma forma, a descrição do local da prática da medida deve ser visto com ressalvas, uma vez que seria irrazoável, por exemplo, uma autorização judicial para uma infiltração judicial circunscrita a determinado bairro, ou mesmo a uma cidade. No exemplo citado, caso o agente infiltrado necessitasse se deslocar para além da área “autorizada”, deveria interromper a medida, o que não parece adequado.

Quanto ao prazo, a lei estabeleceu um prazo de até seis meses, conforme dispõe o parágrafo 3°: “A infiltração será autorizada pelo prazo de até 6 (seis) meses, sem prejuízo de eventuais renovações, desde que comprovada sua necessidade”, que, conforme se observa, pode ser prorrogado enquanto necessário. Há ressalva aqui quanto à infiltração virtual, prevista na Lei 12.441/2017, que prevê que “não poderá exceder o prazo de 90 (noventa) dias, sem prejuízo de eventuais renovações, desde que o total não exceda a 720 (setecentos e vinte) dias e seja demonstrada sua efetiva necessidade, a critério da autoridade judicial”.

A documentação da diligência deve ser consubstanciada em relatório circunstanciado, que deve ser oferecido ao juiz, ao término do prazo da medida ou ainda poderá ser solicitado a qualquer tempo, seja por parte do delegado de polícia ou do membro do Ministério Público.

Como parece lógico pela natureza da medida, o procedimento é sigiloso, sendo reforçado pelo artigo 12 que “o pedido de infiltração será sigilosamente distribuído, de forma a não conter informações que possam indicar a operação a ser efetivada ou identificar o agente que será infiltrado”.

O sigilo é elemento de natureza fundamental para tal meio de investigação, uma vez que é de sua natureza que o procedimento seja sigiloso, sobretudo para resguardar a segurança do agente infiltrado.

A lei dispõe ainda que o juiz decidirá no prazo de 24 horas, após manifestação do Ministério Público, reforçando a necessidade de urgência na apreciação da medida que, em caso de descumprimento, pode acarretar danos irreparáveis à investigação.

Um dos pontos mais relevantes no instituto da infiltração policial diz respeito à segurança do agente executor da medida. Para tanto, a lei é clara no sentido de que, “havendo indícios seguros de que o agente infiltrado sofre risco iminente, a operação será sustada mediante requisição do Ministério Público ou pelo delegado de polícia, dando-se imediata ciência ao Ministério Público e à autoridade judicial”. Trata-se de medida invasiva e que acarreta indiscutível risco ao agente, merecendo, portanto, preocupação legal.

Outro ponto crucial no instituto diz respeito aos seus limites, tendo sido objeto de tratamento no artigo 13, ao dispor que “o agente que não guardar, em sua atuação, a devida proporcionalidade com a finalidade da investigação, responderá pelos excessos praticados”. Para tanto, parece óbvio que o agente infiltrado, no curso da ação, será alvo da prática de condutas típicas, como quando submetido ao ritual de inicialização. Em regra, o agente encontra-se acobertado por uma causa de exclusão de ilicitude do delito, pela atipicidade da ação em razão da ausência de dolo ou mesmo, como entende parte da doutrina, por uma escusa absolutória.

Entretanto, a lei estabeleceu que o agente “não é punível, no âmbito da infiltração, a prática de crime pelo agente infiltrado no curso da investigação, quando inexigível conduta diversa”.

Luiz Flávio Gomes e Marcelo Rodrigues da Silva, ao tratarem da perspectiva da necessidade da prática de crimes pelo agente infiltrado, posicionam-se pela não utilização da medida para crimes violentos[3], com o que não concordamos, tendo em vista a inexistência de vedação legal.

Por fim, a Lei 12.850, no artigo 14, assegura alguns direitos ao agente executor da medida, onde cabe destacar:

I – recusar ou fazer cessar a atuação infiltrada;

II – ter sua identidade alterada, aplicando-se, no que couber, o disposto no art. 9º da Lei 9.807, de 13 de julho de 1999, bem como usufruir das medidas de proteção a testemunhas;

III – ter seu nome, sua qualificação, sua imagem, sua voz e demais informações pessoais preservadas durante a investigação e o processo criminal, salvo se houver decisão judicial em contrário;

IV – não ter sua identidade revelada, nem ser fotografado ou filmado pelos meios de comunicação, sem sua prévia autorização por escrito.

Assim, observa-se que a legislação brasileira, a partir da edição da Lei 12.850/2013, passa a contar com uma disciplina, ainda que mínima, para a execução da medida.

Como resultado, a tendência é que seja mais um dos meios de obtenção de prova disponíveis no enfrentamento à criminalidade organizada, como exemplo do citado no início do presente texto, cuja matéria relata a utilização da figura do agente infiltrado para investigação de crimes contra a administração pública.

Curioso, na matéria já referida, que trata do caso da infiltração de agentes em órgão público, seu encerramento com a manifestação do advogado de um dos investigados:

“A infiltração de agentes é o método mais invasivo de investigação. Envolve conquista de confiança e é coroada com a traição, é absolutamente desleal”.

Sem dúvida, trata-se de instituto inovador e cuja utilização pode se apresentar de grande valia num Estado dominado pelo crime organizado em que cada vez mais os meios de investigação têm sido dificultados.

Assim, a utilização da infiltração policial, em conjunto com outros meios de investigação e obtenção de provas, como a ação controlada e a colaboração premiada, deve marcar as grandes ações de enfrentamento ao crime organizado nos próximos anos, sobretudo em razão das dificuldades encontradas na utilização dos meios tradicionais de investigação. O caso mencionado no decorrer do presente texto é um claro exemplo da utilização dessa ferramenta, sobretudo em razão da dificuldade inerente às investigações da prática de crimes de corrupção por parte de agentes públicos.


[1] GOMES, Luiz Flávio; SILVA, Marcelo Rodrigues da. Organizações Criminosas e Técnicas Especiais de Investigação. Salvador: Juspodivum, 2015, p. 392.
[2] SANNINI NETO, Francisco. Infiltração de agentes é atividade de polícia judiciária. Disponível em https://canalcienciascriminais.com.br/infiltracao-de-agentes-e-atividade-de-policia-judiciaria/ . Acesso em 22 out. 2017.
[3] Op. Cit., p. 410.

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