Direito Civil Atual

Teixeira de Freitas, o jurista que sedimentou o Direto Privado em prol da sociedade

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23 de outubro de 2017, 7h00

Os pilares históricos da arquitetura jurídica pós-moderna devem ser sempre rememorados, pois jamais se consegue construir um futuro com êxito sem que se tenha um profícuo conhecimento acerca dos que iniciaram aquela tarefa. Os trabalhos doutrinários atuais são importantes, porém, há que se valorizar o que servira de espeque para que o direito alcançasse o seu estágio presente. Augusto Teixeira de Freitas é um dos maiores exemplos desta empreitada, eis que foi o responsável pela consolidação das diversas normas que compunham o arcabouço civil brasileiro, sendo também o autor da proposta de um código que regeria as relações jurídicas entre os sujeitos[1].

Não obstante a magnitude deste jurista, muitos acadêmicos e operadores do direito brasileiro não têm dado a devida e imprescindível importância para as obras da lavra deste corifeu. Nascido na Bahia[2], cuja estátua encontra-se nas arcadas principais da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, muitos discentes soteropolitanos sequer detêm o conhecimento de que o dito monumento retrata o intitulado "Jurisconsulto do Império"[3]. Com o objetivo de realizar a meta acima exposta, em 2017, deliberou-se pela realização do seminário "Os 201 anos de Teixeira de Freitas e a sua Importância para a Sociedade e o Direito", na FDUFBA.

Sem ilações e quaisquer dúvidas, assevera-se que o notável baiano contribuiu para cinco vertentes essenciais, quais sejam: a) a unificação do Direito Privado Brasileiro; b) a análise crítica do direito português, francês e alemão para a elaboração do Esboço do Código Civil; c) a apresentação de posicionamentos originais e vanguardistas nesta seara; d) a influência nos sistemas jurídicos de demais países; e e) a contribuição para o Direito Internacional Privado e outros ramos jurídicos.

Concitado, em 1855, para a organização e reunião de todas as normas jurídicas civis que, à época, vigoravam no Brasil, deparou-se Teixeira de Freitas com as Ordenações Filipinas, bem como diversas leis, regimentos, alvarás, decretos e resoluções[4] que existiam apartadamente. Em 1858, a Consolidação das Leis Civis foi apresentada e aprovada, culminando, em 1859, com a contratação do jurista para que fosse confecionado o Projeto de um Código, cujo primeiro fascículo foi entregue em 1860 e o derradeiro, em 1864. Entretanto, o “Esbôço” do eminente doutrinador foi, lamentavelmente, rejeitado pelo Governo e, em 1872, rescindiu-se o contrato firmado com o jurista. Mesmo diante deste episódio, em 1876, ele publicou o "Prontuário das Leis Civis"; em 1877, editou um "Aditamento à Consolidação das Leis Civis"; em 1882, o “Formulário dos Contratos e Testamentos” e as “Regras de Direito Civil”. Em 1883, o Brasil termina sendo agraciado com a obra “Vocabulário Jurídico”.

Destacam-se como ideias inovadoras e originais de Teixeira de Freitas, a concepção de que o Código Civil deveria dispor de uma parte geral e que as normas comerciais também o integrassem. A sugestão foi acatada pela lei japonesa "Ho-rei", de 1898, bem como pela "Lei sôbre Fontes de Direito", do Estado do Vaticano, de 1929, e, ainda, em parte, pelo Código Civil italiano, de 1942. Neste aspecto, René David[5] ressalta que Freitas antecedera de "quarante ans le Code Civil allemand (B.G.B.) auquel on atribue en général le mérite de cette innovation". Ademais, o Código Civil da Itália, dentre outros, açambarcou as normas jurídicas sobre o comércio, a indústria e o trabalho.

A produção jurídica brasileira, na segunda metade do século XIX, era exígua e Teixeira de Freitas teve contato com o método escolástico analítico dos portugueses, da precedente escola bartolista, e com o individualismo francês, representado pelo positivismo da escola da exegese. Analisou, de forma crítica, as obras de Domat e Pothier, tecendo, pela primeira vez e de modo original, críticas construtivas ao Código Napoleônico de 1804[6]. Compreendendo que as normas deveriam ser o produto das necessidades sociais, não importou estruturas externas de modo impensado, inovando, inclusive perante o Código Civil Português[7].

Com esteio nos ensinamentos de Leibniz[8], combateu a divisão tripartida em personae, res e actiones, constante nas Institutas, e asseverou que a classificação jurídica deve estar fundada nas diferenças entre os direitos subjetivos e as obrigações correlatas). Conquanto reconhecesse a relevância do Volksgeist para a produção normativa, preconizado por Savigny[9], à frente deste, de maneira original, diferenciou a capacidade de direito e de fato. Propôs a unificação do regime legal das obrigações e que os direitos reais deveriam decorrer de explicitação formal na lei, além de defender a possibilidade de a mulher requerer a mutação do regime de bens diante da insolvência do marido.

As obras elaboradas por Teixeira de Freitas exerceram inquestionável influência nos sistemas jurídicos da América Latina. Na Argentina, o jurista Dalmacio Vélez Sarsfield estruturou o Código Civil com base nas suas ideias, vislumbrando-se também influência no Uruguai, Paraguai e Venezuela. Como acentuou Pontes de Miranda[10], o jurisconsulto muito concorreu para “as leis de outras repúblicas hispano-americanas”, espraiando-se para o Chile[11] e a Nicarágua[12]. Na Europa e na Ásia, traços das ideias originais de Teixeira de Freitas são também notados, conforme exposto nas linhas precedentes.

Em outros ramos jurídicos, constata-se também a influência de Teixeira de Freitas, contribuindo para o Direito Internacional Privado[13], Direito Comercial e Processo Civil[14]. Reconheceu Clóvis Beviláqua que Teixeira de Freitas sedimentou “um edifício de grandes proporções e de extraordinária solidez”[15]. Rui Barbosa referiu-se a ele como “o maior civilista morto” e segundo Orlando Gomes,[16] “pagou pela audácia de ter sido original e autêntico ao passar à frente do seu tempo, e, por isso, não foi esquecido. Nem será”. Fundamental, pois, sempre reviver e frisar a magnitude deste nobilíssimo jurista baiano para o Direito e toda a sociedade!

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).


[1] SÁ VIANNA, Manoel Alvaro de Souza. Augusto Teixeira de Freitas: traços biográficos. Rio de Janeiro: Typographia Hildebrandt, 1905.

[2] Nasceu em 19 de agosto de 1816 na Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto de Cachoeira, situada no Recôncavo baiano.

[3] MEIRA, Sílvio Augusto de Bastos. Teixeira de Freitas: o Jurisconsulto do Império – vida e obra. 2. ed. Brasília: Cegraf, 1983.

[4] TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Consolidação das Leis Civis. 3. ed. Rio de Janeiro: B.L. Garnier, 1876.

[5] DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. 2. ed. 1949, p. 258.

[6] Cf. DOMAT, Jean. Les loix civiles dans leur ordre naturel; le droit public et legum delectus. Paris: Savoye, 1756. POTHIER, Robert Joséph. Pandectes de Justinien mises dans un nouvel ordre. Paris: Dondey-Dupré, 1818.

[7] TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Nova Apostilla à Censura do Senhor Alberto de Moraes Carvalho sobre o Projecto do Código Civil Portuguez. Rio de Janeiro: Typographia Univsersal de Laemmert, 1859.

[8] Cf. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm Freiherr von. Methodi Novae discendae docendaeque iurisprudentiae. Pars II. Neapoli: Typographia Mutiana, 1754.

[9] Cf. SAVIGNY, Friedrich Karl von. System des heutigen römischen Rechts. Trad. Vittorio Scialoja. Roma: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1886-1898.

[10] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

[11] CARVALHO, Orlando de. Teixeira de Freitas e a Unificação do Direito Privado. In: SCHIPANI, Sandro. Augusto Teixeira de Freitas e il diritto latinoamericano. Padova: CEDAM, 1988.

SCHIPANI, Sandro. Augusto Teixeira de Freitas e il diritto latinoamericano. Padova: CEDAM, 1988.

[13] VALLADÃO, Haroldo. Teixeira de Freitas, o jurista excelso do Brasil e da América. Revista do IAB n°61, p.105.

[14] Cf.:“Aditamentos ao Código de Comércio" (1878-1879); "Primeiras Linhas sôbre o Processo Civil" (1879) e "Doutrina das Ações" (1880).

[15] BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado I. 4.ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1931.

[16] GOMES, Orlando. Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro. 2. ed. são Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 107.

Autores

  • é promotora de Justiça do Consumidor do Ministério Público da Bahia, professora-adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, diretora do Instituto Brasileiro de Politica e Direito do Consumidor (Brasilcon) para a Região Nordeste e coordenadora científica da Associação Baiana de Defesa do Consumidor (ABDECON).

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